Sábado, 24 de setembro
Uma joia
A vida é, de facto, como uma casa,
pensei eu, enquanto colocava as peças de louça nos armários, depois de terem
sido lavadas de tanto pó acumulado. E recordei como tinha sido bom o facto de
as casas ligadas à minha infância terem tido livros, árvores e flores. Tinha
sido bafejada pela sorte. Sorri pelo meu crescente otimismo.
Como tinha tempo, vagueei pelo exterior
da velha casa, passando pelo azulejo azul onde se pode ler: Casa do Laranjal.
Fotografei duas rosas vermelhas que
floriam, olhei as azáleas e as belas-donas, parei debaixo da figueira e comi
figos que colhi. Sob os meus pés, as folhas secas estalavam como vidro preso à
terra. Levantei os olhos para as janelas da casa que eram também olhos que se
abriam para dentro e para fora.
Também de mim, Madalena, ex-professora,
nascida nos anos cinquenta, amante de livros e de tantas outras coisas que a
vida vai revelando, tal como as diferentes estações.
Quero viver este tempo de outono
escrevendo e arrumando esta velha casa que remete para tantos retratos ainda
visíveis.
Julgo que não me voltarei muito para o
passado, porque dele não sou muito saudosa. Porém, sei que estas árvores, que
vejo à minha volta, se aguentam porque têm raízes. Eu, sem elas, também
tombaria como uma velha figueira que um dia vi ser arrancada pelo vento forte,
caindo sem proteção.
Nesta casa, olharei as árvores de fruto
que, como é natural, florescem e frutificam na estação certa. Neste final de
setembro, as laranjeiras abrem os braços onde se penduram bolinhas de um tom
verde carregado. Como dedos papudinhos que, crescentemente luzidios, crescerão
e se inclinarão, mais tarde, do céu para a terra.
Vamos lá, Madalena, digo para mim, está
mais do que na hora de começares a escrever. Sim, oiço esta espécie de
grilo-falante que me diz que não se deve adiar o que há muito se deseja. Que me
recorda a idade, a experiência acumulada e a necessidade de não perder
demasiado tempo. Que me lembra as palavras sábias do escritor Mário Cláudio:
"Escrever é expor-se", mas
que não me deixam vacilar.
Escreverei o que cada dia me for
ditando. E como um diário também pode implicar
disciplina, defini um tempo para a conclusão dos trabalhos: final do
outono. Conseguirei? Serei suficientemente perseverante para levar este meu
projeto até ao fim? Não surgirão obstáculos a impedi-lo?
Enquanto varria a eira da velha casa,
encontrei, por baixo de um vaso, um brinco com uma pedra azul. Sentei-me no
banco de pedra e olhei-o longamente, segurando-o entre os dedos. Parecia estar ali há muito tempo. Nunca o
tinha visto em ninguém. Caíra junto a um
velho vaso, com plantas agora ressequidas e já quase sem espaço para as raízes.
Aproveitei para arrancar a planta e substituí-la, assim como a terra. Deitei
água abundante e olhei de novo o brinco. A quem teria pertencido?
Pela forma do brinco e cor da pérola,
teria sido usado por uma pessoa discreta, pensei.
Uma pequena joia que jazia adormecida ou
que ficara perdida como o sapatinho de cristal. Um belo brinco à espera de um
príncipe encantado que o devolvesse à sua amada ou a uma princesa que o
voltasse a usar. Muitas outras histórias também convocaria aquele brinco de
pedrinha azul água.
Entrei em casa e coloquei-o dentro de
uma pequena caixa em cima da cómoda que tinha sido limpa de manhã.
Se eu tivesse mais imaginação, poderia
criar uma história à volta do brinco encontrado, mas chego à conclusão de que
sou mais contemplativa do que imaginativa. A realidade é tão fértil em
acontecimentos que prefiro prestar atenção ao real. Mas pode ser que a
realidade me conte a verdadeira história do brinco. Veremos.