Simplex
Há vários dias que queria escrever, mas o trabalho
da Repartição e compromissos familiares apenas lhe tinham reservado curtos
momentos de sossego.
Não é que tivesse grandes histórias a contar. As
mesmas coisas simples de sempre. Se calhar, complicadas ou inúteis para os que nelas nem
reparavam.
Às vezes, olhava as pessoas que atendia na
Repartição e, apenas por intuição, logo lhe parecia ver se eram pessoas que
tinham sido amadas na infância ou não. Talvez fosse um perfeito disparate, mas
julgava quase sempre acertar. Apesar de dizer que muitas vezes se enganava. Havia momentos em que via nas pessoas - e muitas vezes nos homens já de uma certa idade - a influência da educação ministrada pelas mães. E tal era motivo para escrever se tivesse tempo e o computador por perto.
Uma outra coisa que lhe vinha aflorando muitas vezes
ao pensamento era o preconceito que o levava a não dizer nunca que era feliz. E
era-o, de facto, à sua maneira, apesar da idade da reforma estar à porta. Gostava do que
fazia. Não ligava muito às críticas que se ouviam sobre os funcionários
públicos. Gostava de atender bem as pessoas e com a eficácia possível.
Reconhecia a importância do conceito Simplex e de não enredar o tempo dos
cidadãos nem de os tratar como se fossem de segunda, simplesmente porque não
sabiam preencher bem os documentos.
Custava-lhe dizer que gostava da vida que levava, porque, se o dissesse, parecia esquecer os problemas de fome, de miséria, de medo, de terror que persistiam e se avolumavam velozmente.
Crescera no freio religioso que rejeitava qualquer excesso de satisfação. Nem que fosse aparente.
Quando podia, gostava de tratar do jardim, de ler,
de ir ao cinema, de seguir os assuntos da atualidade, mas nunca se habituara a
dizer que gostava da vida que tinha - uma ousadia que poderia dar
azar. E, no entanto, o correr dos seus dias dava-lhe prazer.
Hoje deu consigo a pensar que à sua vida também
devia chegar o conceito Simplex. E sorriu, enquanto acertava um relógio que
não usava há muito tempo.