Para a Crisa
Chega à aula
uns minutos depois do toque de entrada. Traz vestido um casaco camuflado. Entra
esbaforida. A professora faz um comentário.
- Vieste
da guerra?
- A menina cora.
E sorri. Com uma expressão de querer responder para mostrar a sua irritada
contrariedade. Nisto, cai-lhe o telemóvel do bolso. Pensa: um mal nunca vem só.
A professora
retoma a aula: estrutura externa e interna de Os Lusíadas.
Já sossegada, a
menina guerreira escreve o que está a ser registado no quadro.
Os olhos viajam
entre o quadro e o caderno. Quase nem ouve o que é dito. Ora, que pergunta:
vieste da guerra?! Sim, vim, apetecia-me dizer. A professora é que já passou a
adolescência há muitos muitos anos, senão devia saber que um adolescente tem de enfrentar muitas guerras. Não é por isso que uso o casaco camuflado, mas sinto-me
em guerra, sim, senhora, e depois? Não é fácil organizar as ideias sobre a
escola, sobre as pessoas que amamos, sobre as pessoas de quem gostamos, sobre
as pessoas de quem não gostamos… Se isto não é guerra, o que é então?
Apaixonei-me
pela poesia de Fernando Pessoa. A paixão foi avassaladora e ando sem vontade de estudar outras coisas. Eu gosto do Felizmente há luar e do Memorial
do Convento (parece que estou a ouvir a professora: meninos, sublinhem o título das obras!), mas custa-me
concentrar-me. Quando me sento para fazer os trabalhos, tenho fome, o telefone
começa a chamar-me, quero saber as novidades do facebook, preciso de falar com
a minha mãe... e também me apetece escrever, mas sobre outras coisas. Falar de
mim e de pessoas especiais. Sinto tanto para o pouco tempo livre de
que disponho!
E para as
guerras com que me debato. Algumas eu calo, outras não consigo. Fico ferida com
coisas que me dizem. Quem não sente não é filho de boa gente. Refilo muitas
vezes porque acho que tenho razão. Ou talvez não, nem sei. Vejo-me ao espelho e
gosto do meu rosto. Dizem que tenho um sorriso bonito e concordo, embora pareça
vaidade. Já publiquei dois contos em livros da escola. Os trabalhos foram a
concurso e foram selecionados. Não tive um primeiro nem segundo prémio, mas o
júri reparou no meu trabalho. E foi muito fixe.
Mas muito mais
fixe seria se eu não estivesse sempre em guerra. E não é com os outros, é
preciso que se diga, é comigo própria. Gosto de me rir, mas também preciso de chorar. Não sou só eu que sou assim, mas não o consigo esconder!
No final da
aula, fecha o caderno, veste o casaco camuflado, aproxima-se da professora e
diz sorridente: afinal, vou à visita de estudo!