sábado, 22 de setembro de 2012

Os valores (des)conhecidos

Ontem, numa aula, veio a propósito a expressão "Valores humanos". Perguntei aos alunos, em bloco, como poderiam tornar mais específico esse conceito abrangente. Repeti a pergunta e continuei a não ter resposta da turma. Reformulei a questão e o silêncio continuou.

Se eu não conhecesse a maioria dos alunos, até pensava que o diálogo entre nós era difícil.

Até que uma aluna disse: "é isso da dignidade e não sei quê?"

Felizmente, depois surgiram outros: solidariedade, honestidade, responsabilidade...

Alguns rostos pareciam dizer que eram palavras que lembravam catequese antiga de que já pouco se falava.

Isto assim não tem jeito!

Acabo de ouvir que entraram pessoas para lugares de direção, no Ministério da Saúde, com dados falsos nos seus curriculos. A palavra frequentemente adotada nestes casos é lapso.

Será lapso dizer que que se tem mestrado ou doutoramento sem os ter feito? Para o comum dos mortais - e honestos - isso é uma grande mentira. E um insulto a quem trabalha muito para fazer pós-graduações.

Nas escolas básicas e secundárias, exigimos que os alunos estudem e não copiem trabalhos da net. Porém, os mais jovens conhecem também o que se passa à sua volta e essas recomendações vão soando a estranho. 

Há cada vez mais trabalhos, que são entregues e classificados, que foram feitos por outrem. Há licenciados cujo ganha-pão é fazer trabalhos para alunos universitários que os entregam como se fossem seus. Existem teses de mestrado e doutoramento com plágio. Para não falar de políticos que conseguiram licenciaturas quase sem pôr os pés na Faculdade.

E como os enganos - os tais lapsos - se fazem com um mero e natural encolher de ombros, lá estão os altamente beneficiários de cargos, apenas porque se pertence a um partido poderoso. Ou se conhece A ou B que também detém muito poder e pode fazer um jeito porque também dá jeito.

Isto assim não tem jeito!


A música do taxista

Ela entrou no táxi para uma viagem curta. A luz amarelada do fim da tarde acetinava-lhe os cabelos negros. Os brincos compridos tombavam em ousadia.

Ouviam-se as chamadas constantes para a rua X, nº Y.

Ela ia vendo a paisagem que raramente olhava, porque habitualmente passava a conduzir.

O taxista olhava a cliente pelo retrovisor onde refletiam os seus óculos Ray-Ban. 

Quando ela entrou, a música de fundo era o som da rádio. Poucos minutos depois, era jazz, cantado por voz feminina e em língua inglesa.

Ela olhava a paisagem amarelada pelo fim da tarde e início do outono que a música mais harmonizava.

Ele olhava pelo retrovisor e via que a cliente estava a gostar, apesar de se manter em silêncio.

Durante o dia, o taxista já tinha posto Tony Carreira, Xutos e Pontapés, Amália...

Os seus óculos Ray-Ban eram como o algodão: nunca enganavam!

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A Criança e a Vida

Júlio Resende

Companheira do sol e das raízes, cheguei à grande cidade. Numa mão levava o diploma, na outra, o medo. O resto era a história antiga da minha solidão e da minha esperança...

A escola que me deram não era um desses poéticos lugares, brancos e cheios de flores com que sonhamos no fim do curso: era um velho primeiro andar, de uma rua suja de sal, pregões e humidade. Os rapazes que me deram também não tinham nada de comum com esses meninos de bata branca, normais, nos primeiros dias de aula, e que as mãezinhas nos entregam como se fossem de porcelana.

Lembro-me desse nosso primeiro encontro, tão comovidamente, que receio não encontrar a palavra exata para o esboçar. 

Abri a porta e eles entraram. Eram quarenta e cinco e faltavam carteiras. Faltavam muitas carteiras, mesmo quando os sentei três a três e pus cinco na mesa que me destinaram para secretária. O diretor chegou e disse: — Este é o seu reino e aqui tem os seus «meninos». E sorria. — Se tiver sarilhos há de tê‑los, mas não estranhe – a esquadra da polícia fica no fim da rua. E eu estou ao seu dispor. Para as necessidades imediatas, aqui tem isto. Tem de escolher desde o princípio: ou a Senhora, ou eles. Sem complacências, se quiser sobreviver. Lamento dar-lhe a escória. Mas, paciência.

Desceu a escada.
E eu fiquei ali, face à nova aventura.

O silêncio que me envolveu era um silêncio pesado, expectante. E, no meio do silêncio, eles ali estavam, na manhã que nascia. Esculpidos em vento e mar. Vinham dos barcos ancorados no cais, do bairro de lata, de sabe-Deus-donde. Traziam nas mãos, em vez de mala e livros – não sei porquê, mas traziam – folhas de plátano e ramos de amendoeira florida. O outono dourava-lhes os cabelos. Eram sementes vivas da mais autêntica liberdade e não sabiam nada de preconceitos, nem de palavras, nem de coisa nenhuma.

Olhei-os também em silêncio. Um por um. Longamente. Depois, peguei na régua que o diretor acabara de oferecer-me como apoio e dei-a ao que me pareceu mais velho: Toma! Vai atirar fora. E depois, não sei o que lhes disse. Mas a fome de ternura era neles como o sol, a chuva e o desconforto. E como éramos primários, pobres e sozinhos, estabelecemos desde aquela hora um entendimento lúcido e discreto.

E foi assim que ficámos solidários e Amigos – Para – Sempre.

Aprendi então que a Verdade é uma palavra real.
E a Lealdade, também.

Depois, muitos vieram: da Europa, da África, das ilhas perdidas do Atlântico. Mas ali, na escola húmida e despojada, é que aconteceu o milagre que nunca mais se repetira. 

Tenho-me perguntado muitas vezes porquê. E cada vez vou tendo mais a certeza que o excesso de conforto destrói o Rosto Iluminado do Homem. Aqueles não tinham, não esperavam, nem pediam nada: por isso, estavam disponíveis para tudo. Os passeios que demos, as notícias que comentámos, os poemas que lemos, a vida que conscientemente os ajudei a desventrar, foram a sua primeira riqueza e fizeram crescer na «escória» uma branca flor de fraterna alegria. 

Foi como se um vento de loucura nos tivesse perturbado a todos, e o mundo estivesse suspenso do que fizéssemos. E nas paredes sujas da sala, pintámos o sol e pássaros verdes. E nos buracos dos tinteiros partidos nasceram flores. Eles eram a Terra quente e aprenderam a amá‑la também. E a pobreza que os esboçava começou a ser um pretexto, não para a sua derrota, mas para a sua dignidade e a sua força. 

A alegria daqueles rapazes contagiava os indiferentes e as pessoas, muitas, muitas: poetas, professores, pintores, operários, sentiam que junto deles as manhãs eram mais claras e a fome mais terrível. Hoje, alguns serão operários honestos, ardinas apressados, vendedores ambulantes; outros serão marinheiros, outros, sei lá o que serão! Sei lá o que a vida fez deles!

Estas páginas são uma homenagem que lhes devo. Guardei-as, dia após dia, ano após ano, até os perder nos novos caminhos que tive de pisar, como um testemunho. Oxalá alguns deles possam ler estas linhas e reencontrar-se nelas.

Não eram génios, nem poetas, nem meninos-prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas... essenciais-ao-dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio. Alimentavam­‑se de um bocadinho de pão, de um peixe assado e às vezes de água. Apenas. Tinham oito, nove, dez, onze, quinze anos, mas conheciam as mil maneiras de escapar aos polícias, de viajar de borla, de sobreviver. 

Os dias eram-lhes duros e comprados com muita coragem e destemor. Por isso custei a entender – ENTENDI!? – como a Poesia foi para eles tão violenta e tão fácil. Pediam para fazer poemas, como quem pede o pão da fome. A princípio a medo, ingénuos. Depois, a mergulharem na aventura da palavra com uma dor e uma lucidez já adultas.

Quando expus a primeira coletânea de textos destes rapazes, ilustrados por alguns dos nomes mais válidos da nossa pintura, o ambiente que cercou a exposição, ao verem a idade dos autores, foi de suspeita e dúvida. Quando eles apareciam, desgrenhados e sujos – a hilaridade era quase completa. E eram eles que me confortavam, soberanos: —Deixe lá. Têm a cabeça cheia de vento. Não percebem nada.

E ficava tudo certo, outra vez.

Mas ensinaram-me que, quando se é humilhado naquilo que em nós é claridade e certeza, aprende-se mais depressa o sentido exato da liberdade, da paz, do ódio, do amor e do ridículo do quotidiano. Eles revelaram-me que a miséria transforma as crianças, mais que os adultos, em anjos implacáveis de lucidez, e que a fome os ateia e lhes faz crescer nos olhos brancas e terríveis asas de sonho ou destruição. 

E há, nestes anjos de fogo, uma voz oculta e violenta em que é preciso, é urgente, meditarmos. Ela pode denunciar, construir ou semear a alegria, a vergonha ou o remorso.

Ela pode ser a semente da Esperança, da Paz entre os homens.
Ela pode ser o ódio.
Ela pode ser o Amor.
Maria Rosa Colaço
A Criança e a Vida
Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1996
(Adaptação)

Bem ou mal do século?

Há uma expressão antiga de que me lembro às vezes.

A propósito das turmas, alguns professores diziam: é uma turma certinha. Muitas vezes ouvia a expressão e ficava a pensar no que a palavra "certinha" poderia representar: pessoas que falavam todas ao mesmo tempo e no mesmo tom de voz? Pessoas que se sentavam e levantavam ao mesmo tempo? Pessoas que usavam roupa das mesmas cores? Pessoas que diziam as mesmas coisas e aderiam às mesmas ideias?

Agora julgo que ninguém o diz. Cada vez "certinha", neste contexto, é palavra pouco certa. Se é que alguma vez o foi.

Uma das razões é o facto de ser natural a existência de diversidade na sala de aula. De facto, cada aluno tem uma história de vida bem diferente das demais. Algumas bastante  difíceis.  Muitas vezes só os diretores de turma é que se vão apercebendo de problemas familiares e económicos graves.

O direito à diferença é um bem do século. Porém, tanta desigualdade já é um mal.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O diário de Mariana

Querido diário

18 de setembro 2012

Já tinha saudades de te escrever uma página, querido e amigo diário. Não sei, mas às vezes, apetecia-me dizer tanta coisa que nem sei como começar.

As férias terminaram, já tenho aulas, a turma está maior e a sala de aula hoje parecia mais pequena e mais quente porque está muito calor. Eu por acaso não gosto de estar sempre a dizer mal, mas não acho nada bem que as portas das salas sejam tão pesadas que nem se mantêm abertas. As profs mais velhotas é que se devem ver gregas porque sempre ouvi as minhas tias e as minhas avós a falar dos calores. Ai que calor! Ai que calor!

Eu ainda não conheço bem os outros alunos que entraram para a minha turma. Às vezes, acho que as pessoas pensam que nos conhecemos todos muito bem mas nem por isso.

Amanhã vai ser a avaliação diagnóstica. A minha dêtê já falou dos relatórios que vai receber de todos os profs. Vai ser gastar papel até mais não. Claro que sou eu a dizer isso, porque a dêtê diz sempre: meninos, têm de estudar muito. Não imaginam como é bom quando há sucesso!
Ela até é fixe.

Hoje, depois da escola, fui lanchar com a minha mãe (que mania que ela tem de me dizer: anda lanchar comigo, Mariana, sem me perguntar se posso e se quero!). Por acaso até foi bom porque ouvi uma coisa muito fixe. Uma amiga que ela encontrou disse que andava à procura do pão-de-deus. Pelos vistos é um pão com coco ou açúcar por cima. E o pão era um miminho para o filho que tinha sido eleito delegado. Ela queria esse pão porque ele gosta muito. Achei mesmo altamente.

Eu um dia que tenha filhos vou-lhes fazer muitas festinhas. E não só enquanto são bebés. Eu conheço pessoas que são infelizes toda a vida porque não tiveram miminhos pelo menos quando eram pequenos.

Hoje fico-me por aqui, querido diário, porque estou muito contente e quando estou contente escrevo menos.

Talvez amanhã diga por que estou tão contente.

Muitos abracinhos, querido diário.

Mariana

domingo, 16 de setembro de 2012

Sabores de Lisboa (A Brasileira do Chiado e os Pastéis de Belém)




Pormenores do Museu dos Coches - Belém



Douro - Ouro do Nosso Património (Mundial da Unesco)



No rescaldo das férias

Não me posso queixar. Pude ter férias, dei alguns passeios no nosso belo país, aproximei-me do mar, estive mais tempo e mais perto da minha família mais chegada e fundamental para mim, convivi com amigos também muito importantes na minha vida. E sabia que continuava a ter trabalho e salário ao fim do mês, apesar da supressão de subsídios.

Mas sei que milhares (se calhar, milhões) de portugueses não poderão dizer o mesmo, sobretudo em relação ao trabalho e à possibilidade de deslocações, ainda que curtas. Ontem, as ruas de muitas cidades mostraram-no bem. Com ou sem cor partidária, as pessoas manifestaram-se pacificamente, mostrando os seus rostos para que os governantes saibam que o país tem identidade e não é uma massa amorfa a quem se aplicam sucessivas experiências.

Eu não participei das manifestações, mas, ao ver as reportagens, senti que os cidadãos não podem continuar sempre do outro lado. E louvei quem foi porque o país é de todos e não apenas de alguns que mal conhecem as realidades profundas.

Dos cartazes que vi - mostrados pelas televisões - chamou-me a atenção um com um espelho. Segurava-o uma jovem, com uma bolinha vermelha no nariz, e que dizia com um sorriso empático e expressivo: "Sorria, estar a ser roubado"

As inquietações manifestadas pelas pessoas, para além de muitos desgovernos, nasciam do desemprego, da necessidade de emigração, da redução de salários, da falta de esperança, da descrença nos governantes...

Oxalá os políticos tenham visto estas imagens (a tática habitual é dizer que não viram o que não lhes interessa) e tenham alguma sensibilidade para as ter em conta em algumas medidas, até agora  tomadas às cegas.

Sei que muitos portugueses nem férias puderam ter. Até o mar, que está tão próximo, foi-se tornando mais distante.

Será que um dia se poderá dizer: Sorria, não está a ser roubado!?


Maria Clara Miguel partilhou O Tesouro, na Feira do livro de Gondomar - 2012



sexta-feira, 14 de setembro de 2012

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

LISBOA



No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas
subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.

"Mas aqui", disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,

"aqui estão ois políticos". Olhei para a fachada, a fachada, a fachada, 
e no último andar, a uma janela, vi um homem
com um binóculo a olhar para o mar.

Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos

muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
"Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?"

Tomas Transtromer
http://www.livrariapoetria.com/livro.php?m=2&l=2704

O PAPAGAIO QUE DIZIA “AMO-TE”


Talvez por ser órfã de mãe e por o seu pai estar sempre fora de casa, Beatriz crescera triste e solitária. Na escola, chamavam-lhe “Beatriste”, porque se sentava sempre sozinha e não queria brincar com os colegas.
Em casa, depois de feitos os deveres, metia-se no quarto e lia até adormecer.
Beatriz tinha um pesadelo frequente: estava numa ilha deserta e não avistava nenhum barco. À noite, tinha frio e, de dia, fome e sede, pois o único alimento que havia na ilha era o coco. Ao acordar, Beatriz dizia para consigo: “Afinal, a minha vida é igual à do meu pesadelo”.
Não tinha amigos e os dias sucediam-se sem sentido, uns atrás dos outros, como cocos a cair de palmeiras.
Como dormia mal de noite, Beatriz acordava com sono e com poucas forças para falar com o pai. Este via o noticiário e saía logo a correr para o escritório, onde ficava a trabalhar até muito tarde. Quando voltava, já Beatriz estava a dormir, ou melhor, acordada, na sua ilha deserta cheia de coqueiros.
A menina interrogava-se se o pai gostaria mesmo dela ou se viera a este mundo por acaso, já que ele nunca a abraçava, beijava ou dirigia palavras de carinho. As conversas com ele eram sempre do género:
— Beatriz, não te esqueças, como ontem, do caderno dos deveres.
— Sim, papá.
— Já puseste o lanche na pasta?
— Sim, papá.
— Não atravesses a rua com o sinal vermelho ou amarelo!
— Sim, papá.
As trocas de palavras entre ambos não passavam disto, porque o pai, se calhar, era tão tímido como ela. Talvez ele também vivesse numa ilha, que barco algum jamais visitava…

******
Contudo, numa segunda-feira de manhã, aconteceu algo extraordinário que mudaria para sempre a vida de Beatriz.
Ainda não bem desperta, a menina teve a impressão de estar a ser observada. Todavia, ao abrir os olhos, viu que não havia ninguém no quarto. Nem se ouvia sequer o barulho da televisão, sinal de que o pai já tinha saído e lhe deixara o pequeno-almoço em cima da mesa.
Mas, quando olhou para a janela, Beatriz viu um papagaio grande e verde, pousado nas cordas do estendal. A ave olhava para ela de esguelha. Recuperada do susto, a menina perguntou-se de onde teria vindo aquele papagaio e o que faria ali, a espiá-la. Cheia de curiosidade, saltou da cama e abriu a janela para o ver melhor.
— Papagaio, pequenino, vem cá! — chamou-o em voz baixa, para não o assustar.
Tinha certamente escapado da casa de algum vizinho, pois logo respondeu ao convite de Beatriz, acercando-se dela.
— Perdeste-te? — perguntou a menina. — Vens de alguma ilha longínqua, cheia de palmeiras?
A ave pousou no braço de Beatriz, que a princípio se assustou. Porém, quando viu que o papagaio não a picava e que queria ser seu amigo, pô-lo no seu quarto, onde colocou um copo de água e um prato com migalhas de pão. Em seguida, saiu para a escola, muito feliz.

******
Ao meio-dia, telefonou ao pai para lhe contar o que se tinha passado e para lhe pedir que a deixasse ficar com o papagaio. Ia chamar-lhe Tequilha porque imaginava que ele tinha vindo de um país longínquo onde bebiam esse licor.
O pai falava pouco mas era muito atento. Por isso, quando Beatriz voltou da escola, já encontrou Tequilha instalado numa gaiola dourada, com o comedouro cheio de sementes de girassol.
— Olá! — cumprimentou-a, na sua voz estridente.
— Sabes falar! — exclamou a menina, admirada. — Ora vê se consegues dizer o meu nome: Beatriz, Beatriz, Beatriz…
Tequilha seguia atentamente a lição e movia o bico, mas não conseguia repetir o nome. Beatriz, que lera que os papagaios e os periquitos têm muita facilidade em pronunciar o “t”, disse-lhe:
— Chama-me então Beatriste, como fazem na escola. Beatriste, Beatriste…
Nem precisou de o repetir pela terceira vez, porque o papagaio logo exclamou:
— Beatriste!
A dona, orgulhosa, pulou de alegria. Depois de um dia tão bonito e emocionante, e logo após a empregada lhe ter servido o jantar, Beatriz deitou-se e adormeceu, cansada. Quando a luz da manhã a acordou, Tequilha estava a descascar uma semente, que segurava com uma pata.
— Bom dia, Tequilha! Não cumprimentas a tua Beatriste?
O papagaio acabou de descascar a semente, comeu-a com prazer e bradou:
— Amo-te!
Quando ouviu isto, Beatriz não conteve um grito de emoção. Depois, pensou que não era normal que o papagaio tivesse dito uma expressão típica de um galã de telenovelas. Será que vira muitas ou teria pertencido a algum par de recém-casados?
Podia ser apenas uma casualidade. Os papagaios brincam com as palavras que vão ouvindo e, por vezes, dizem coisas com sentido.
“Deve ser isso”, pensou Beatriz.
Contudo, na manhã do dia seguinte, Tequilha acordou-a com uma saudação igual:
— Amo-te!
— Quem te ensinou isso? — disse Beatriz. — Só os adultos usam essa palavra.
Como os papagaios falam, mas não conversam, Tequilha continuou a olhar para a sua dona e amiga com grande interesse, sem, contudo, dizer mais nada. Depois descascou outra semente.
Quando na quinta-feira, logo de manhã, o papagaio voltou a exclamar “Amo-te”, Beatriz resolveu investigar. Era estranho que as declarações de amor do papagaio só ocorressem de manhã. Quer de tarde quer à noite, Tequilha só dizia “Olá!”, “Beatriste” ou “Caramba!”.
******
Sabendo que o pai ainda estava a tomar o pequeno-almoço, Beatriz correu a expor‑lhe o mistério. Mas o pai, muito vermelho e quase a engasgar-se, nada respondeu. Levantou-se, apressado, despediu-se da filha com um beijo e saiu de casa com a pasta.
De repente, Beatriz compreendeu o que acontecera e teve vontade de chorar. Só que de felicidade, desta vez! É que Tequilha repetia, cada manhã, o que o pai de Beatriz lhe dizia à noite, quando ela já dormia.
******
Agora reflete…
O Afeto
“O amor é a cura de todos os males”.
Leonard Cohen

Os sábios da Índia dizem que, quando olhamos para o mundo, o colorimos com as nossas próprias cores. Por isso, se olharmos os outros com ódio ou desconfiança, iremos receber ódio e desconfiança. Pelo contrário, se os virmos com amor, viveremos sempre rodeados de carinho.
E tu, como preferes viver?
Há quem tenha vergonha de expressar os seus sentimentos, mas isso não significa que não gostem de nós. Muitas vezes basta que lhes mostremos o nosso amor (com palavras amáveis, com um beijo, com um presente inesperado…) para nos abrirem o coração.
Se te custa dar carinho a alguém de quem gostas, imagina que o mundo vai acabar amanhã. O que farias hoje? Certamente correrias a abraçar os teus pais, irmãos e amigos. Dir-lhes-ias o quanto gostas deles, e falarias dos bons momentos que passaram juntos… Para fazeres isso, não é preciso esperar pelo fim do mundo! Podes começar hoje mesmo a dar-lhes afeto… mesmo que seja à tua maneira!

Mostra o teu carinho
Há muitas maneiras engraçadas e originais de demonstrar amor a quem te rodeia. Eis algumas:
a) Escrever um lindo poema no frigorífico com letras magnéticas.
b) Colocar um desenho muito alegre e bem colorido no seu quarto.
c) Compor uma canção para ele/a.
d) Oferecer-lhe um trabalho manual feito por ti.
Etc., etc.,…
Dr. Eduard Estivill; Montse Domènech
Cuentos para crecer: Historias mágicas para educar con valores
Barcelona: Editorial Planeta, 2006
(Tradução e adaptação)
s
 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Uma boa mensagem!

Como tenho dito nos últimos dias, a minha relação com a minha Seguradora, após ter tido um acidente (violento choque na traseira do meu carro) não tem sido boa.

Sou cliente há muitos anos da mesma Seguradora e sempre fui cumpridora. Também não tenho dado prejuízo. Esperava, por isso, em caso de acidente, ter uma melhor assistência.

Às vezes parece um pesadelo. Já não bastava ter tido o acidente e recebo várias vezes ao dia mensagens sobre a possiblidade de ter de entregar o carro de substituição, estando implícito que tal acontece porque a reparação do carro não se efetua numa das oficinas ligadas à Seguradora.

Será injusto generalizar, mas a experiência que estou a ter diz-me que as Seguradoras querem receber sempre a tempo e horas mas, se há problemas, tentam descartar-se o mais possível.

Também neste setor se parte do princípio que o cliente é corrupto e aproveitador das situações. 

Pois bem, após troca de e-mails e mensagens com muitos sublinhados, resolvi, ontem, mandar um e-mail mais amistoso, dizendo que esta situação de instabilidade quanto a ter ou não carro de substuição me estava a provocar desgaste e talvez também na minha interlocutora.

Não sei se foi também por me ter posto no papel do outro que recebi, hoje logo pela manhã, uma mensagem: o prazo de utilização da viatura de substuição foi prorrogado por uma semana!

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Mais devagar, Songogolo!



Há muito barulho em casa. Uzuti, o bebé, chora, Adelaide grita:
— Mongi, devolve-me a minha caneta amarela!
Na casa ao lado, o cão ladra para um transeunte. A mãe zanga-se:
Vem já aqui, Malusi!
Malusi gosta de andar devagar. Canta um pouco enquanto veste a blusa. Brinca um pouco enquanto calça as sapatilhas. As sapatilhas muito velhas. Quando eram novas, eram de Mongi. Agora, estão cheias de buracos e pertencem a Malusi. O cão do Sr. Motiki continua a ladrar. Malusi interroga-se:
Quem será que vem aí tão devagar? Só pode ser uma pessoa idosa.
O cão deixa de ladrar e começa a abanar a cauda. A senhora de idade que se aproxima pára de vez em quando, apoiada na bengala. É Gogo, a avó de Malusi. Gogo é idosa, mas a sua pele brilha como uma maçã. As mãos são grandes e gastas pelo trabalho, mas têm um toque suave. Apoia as mãos nos ombros de Malusi e diz-lhe:
Hoje preciso de ti.
Malusi cala-se e ouve com atenção.
Tenho de fazer compras na cidade e não gosto nada do trânsito e dos semáforos.
A mãe diz:
O Malusi vai contigo. Já é um homenzinho.
Malusi gosta de andar devagar. Anda um pouco e pára, para dar um pontapé numa lata de cerveja velha. Pang! A lata rola pelo passeio abaixo. Atrás dele, Gogo caminha devagar.
Ai, ai suspira a avó.
Está já sem fôlego quando chegam à paragem de autocarro. Malusi dá um último pontapé na lata e esta aterra na rua. Quando chega o autocarro, a lata é esmagada e Malusi ri-se.
Deixa-te de risotas e ajuda-me a subir para o autocarro ralha Gogo.
Malusi nem sabe o que fazer: será que deve empurrar ou puxar a avó? Esta apercebe-se do seu olhar preocupado e sorri.
Segura a minha bengala, Malusi. Sou velha demais para dar pontapés numa lata, mas ainda consigo subir para um autocarro.
O autocarro vai cheio. Só há lugar de pé. Malusi fica junto de Gogo. A avó vestiu o seu melhor vestido, cheio de cores, que o neto conta: vermelho, verde, rosa, preto, azul, amarelo e laranja. O autocarro pára e algumas pessoas descem. Avó e neto encontram lugar junto de uma janela.
Olha! Vê como aqueles carros vão depressa!
Malusi sabe tudo sobre carros. Conhece todas as marcas e vai-as dizendo a Gogo:
Volkswagen… Ford… Morris…
Gogo sente orgulho do neto, que não se cala até chegarem à cidade. De repente, ei-los na rua principal, barulhenta e animada.
Tanta gente! exclama Gogo.
A multidão adensa-se em torno deles.
Malusi caminha diante da avó e vai esperando por ela. Repara como parece mais velha, agora que está na cidade. Às vezes, enquanto espera por ela, vai olhando para as montras das lojas. Pára diante de uma loja de brinquedos. Olha só, um Volkswagen pequenino! Em seguida, chama-lhe a atenção uma sapataria. Vejam só! Sapatilhas! Malusi olha para as suas velhas sapatilhas e depois contempla as novas da montra. São vermelhas e têm riscas brancas de lado.
Para onde estás a olhar? pergunta Gogo, que chega finalmente junto do neto.
Olha, Gogo! diz Malusi. Sapatilhas vermelhas! Não são bonitas?
Gogo olha para as sapatilhas e depois vê as sapatilhas velhas do neto.
São, pois! comenta.
Têm de atravessar a rua para ir até aos grandes armazéns.
Lá está aquele homenzinho verde! exclama Malusi.
Gogo parece preocupada. O neto pega-lhe na mão e guia-a pela passadeira até ao outro lado da rua. Quando chegam ao outro lado, o semáforo muda e passa a vermelho.
Ai! lamenta-se Gogo. Estas mudanças constantes afligem-me.
Nos grandes armazéns, Gogo olha para a lista de compras que fez. Tem de comprar alguns artigos de mercearia, uma toalha de plástico nova, uma chávena e um frasco para pôr os feijões. É tudo tão caro! Gogo guarda o dinheiro numa pequena bolsa, que traz presa com um alfinete ao interior da sua manga. Aí está sempre segura.
São horas de regressar à rua barulhenta. O semáforo está verde e avó e neto apressam-se a atravessar. Passam pela florista e pela loja de roupas. E lá está a sapataria com as sapatilhas novas! Malusi cola a cara à montra para as ver pela última vez.
Anda daí, Songolo! chama Gogo.
Songololo é o nome especial que Gogo dá ao neto. Mas, em vez de passar diante da loja, Gogo entra. Malusi olha para os sapatos da avó. Parecem os pneus velhos de um carro.
Quanto custam as sapatilhas vermelhas da montra? pergunta Gogo.
O vendedor responde e Gogo pede:
Pode ver se servem a este rapaz?
Malusi tira as sapatilhas velhas e enfia os pés nas novas, com todo o cuidado. O homem apalpa os dedos dos pés do rapaz.
Servem-lhe perfeitamente diz.
Malusi sente-se tão feliz que mal se segura quieto. Olha para a avó e sorri.
Gogo tira as notas da bolsa e conta-as. Depois, diz ao neto que leve as sapatilhas já calçadas, e o vendedor põe as velhas na caixa nova.
Quando começa a andar depressa, cheio de orgulho, a avó avisa Songololo:
Vai mais devagar!
Na paragem do autocarro, Gogo senta-se e descansa.
Malusi senta-se junto dela, com os pés em cima do banco, para poder admirar as sapatilhas novas.
Sabes, Gogo, diz com ternura são mesmo muito bonitas!
Gogo olha para os seus sapatos velhos e diz:
Tens razão. Se eu tivesse umas sapatilhas vermelhas com riscas brancas de lado, talvez caminhasse tão depressa como tu!
Niki Daly
Not so Fast, Songololo
London, Frances Lincoln Ltd, 2001
(Tradução e adaptação)

 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

"Procura-se..."

 

Este é um título enviado pelo Museu de Serralves, com vista à organização de uma exposição de obras de Julião Sarmento.

Se a intenção era publicitar o evento, a ideia é simples e excelente.

Se o quadro é, de facto, procurado, comunico que, quanto a mim, não o vi nem o tenho (não me importava nada de ter)!!!

 O jornal posso arranjar, o candeeiro também, as figuras geométricas também as poderia alinhar.

 Ah, também felizmente tenho as minhas mãos. Que seguram no jornal, que apagam e acendem a luz, que desenham no papel, mas que nunca seguraram este quadro. 

E, sobretudo, nunca o saberiam  pintar nem reunir tantas sugestões.

Também existe o olhar. Presente enquanto ausente.

Nada disto é ficção

Na passada 5ª f, dia 30 de agosto, tive, como referi no último post, um acidente. Felizmente não estava habituada a estas coisas nem ninguém se feriu. 

Para se tratar destes assuntos, perde-se um tempo incrível em contactos telefónicos, em explicações dos factos. Quem sofre o acidente parece ficar numa situação de pedir favores porque, do outro lado, acenam com palavras frias e certeiras iniciadas, neste caso, por D. Maria, ...

Logo após o acidente, houve ligação para o número fornecido pela Seguradora, sendo comunicada a ocorrência e perguntando-se o que fazer. Do outro lado, apenas quiseram saber qual a Oficina para onde deveria ir o carro depois de rebocado. Assim se fez.

Posteriormente, já com o veículo na oficina, foi comunicado que os dias de utilização de carro de substituição serão reduzidos, porque o carro acidentado não foi conduzido para oficina proposta pela Seguradora.

Perguntei se se pode ser penalizado por não utilização de um serviço que não é divulgado aquando de um acidente. Para além disso, já mostrei a intenção de mudar de Seguradora (tenho Fidelidade Mundial), mas já me avisaram que é sempre assim.

Tal como disse Miguel Sousa Tavares numa das últimas crónicas no Expresso, "estamos indefesos".

E o pior é que nada disto é ficção.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

"Mulheres ao volante"

Hoje, seguia na estrada com uma das minhas filhas e uma carrinha em grande velocidade embateu contra a traseira do meu carro. Por outras palavras, tive um acidente. O choque foi de tal modo violento que ambos os carros tiveram de ser rebocados, embora, felizmente, ninguém tenha ficado ferido.

Após o embate, logo que saímos do automóvel, o outro condutor, que logo depois se deu como  culpado, reagiu:
- Se calhar, vinham a falar ao telefone!

Por acaso nem telefone tínhamos connosco, o que, na verdade, fez bastante falta para resolver os problemas burocráticos.

Quando chegou o reboque,  ao preencher o documento, o motorista perguntou:
- Sabe o seu número de telefone?

Já na Companhia Seguradora, o funcionário, depois de ter verificado a descrição da ocorrência, exclamou sorridente:
- Pois vamos ver então. A solução que tenho para vocês é espetacular.

Sem pretender ser feminista, interrogo-me: se fossem homens, o discurso seria o mesmo?



Nota - Vou sugerir às minhas filhas, ao jantar, brindarmos por não nos termos magoado. Também brindaremos a um homem que passou e tentou prestar ajuda, partilhando o que sabia sobre estas situações.

Ou seria apenas por ver "mulheres ao volante"?!
.