domingo, 8 de abril de 2012

PÁSCOA


Hokusai 
  
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.

Miguel Torga: Poesia Completa

 

sábado, 7 de abril de 2012

Os meus óculos partiram-se e o mundo ficou menos nítido

Mas será que o mundo está menos nítido ou será da falta dos óculos?
Pus uns óculos mais antigos que às vezes utilizo, porque ainda vejo bem com eles. Ou melhor, via, porque, apesar de o mundo se tornar mais nítido, ainda tem pouca nitidez.
Que chatice, em ano sem subsídio, vou ver de comprar novos óculos.
Mas será que o mundo está baço apenas porque não vejo bem sem óculos?
No entanto, estou a escrever com os óculos que usei durante uns anos.
Será que o mundo foi ficando mais baço ou o problema é só da minha vista?
Não posso responder claramente porque parti os meus óculos.
Hoje mesmo, vou tentar arranjar novos óculos.
Na esperança de ver que o mundo não perdeu nitidez e o problema é  só da minha vista.
Será?

Um dia



 Monet
              Um dia, mortos, gastos, voltaremos

              A viver livres como os animais

              E mesmo tão cansados floriremos

              Irmãos vivos do mar e dos pinhais

              

              O vento levará os mil cansaços

              Dos gestos agitados, irreais

              E há-de voltar aos nossos membros lassos

              A leve rapidez dos animais.

              

              Só então poderemos caminhar

              Através do mistério que se embala

              No verde dos pinhais, na voz do mar,

              E em nós germinará a sua fala.



Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 6 de abril de 2012

PIETÁ

Pietá -Michelangelo

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga, Poesia Completa,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 117.

Cafezinho e lapso


Ele é um jovem americano que está a aprender português. Perguntou: porquê cafezinho? É menos quantidade de café? Foi-lhe explicado que é um diminutivo habitual quando dizemos certas palavras em sinal de carinho.
Ele perguntou (julgo com ironia) se se aplicava a outras palavras: aeroportozinho, pilotozinho, chãozinho… Deu risota.
Ontem, uma das palavras mais repetidas nas televisões era lapso – a propósito do prolongamento do período em que os funcionários públicos não vão receber subsídio de férias nem de Natal. A maioria, é claro, porque prevê-se que instituições como a TAP e a CGD continuem como dantes. A este propósito, na altura da decisão da manutenção dos subsídios, alguns ministros disseram que não se tratava de regime de exceção mas de uma adaptação. Também deu risota, mas com riso amarelo, como é bom de ver.
Voltando à palavra lapso, se o jovem americano a conhecesse, talvez perguntasse se se podia dizer lapsozinho!
Se fosse ao Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, veria que a palavra provém do “latim lapsus ‘escorregadela’. 1. Ato de escorregar, de cair em falta. 2. Falta, erro, engano, por distração, descuido ou esquecimento. Falha”…
Os governantes que utiliza(ra)m a palavra ‘lapso’ insistem, imaculadamente, que ter dito que os subsídios não seriam aplicados  durante dois anos foi um lapso. Um erro? Não, um lapso? Um engano? Não, um lapso. Uma falha? Não, um lapso.
Os humoristas vão ter assunto. Nós, os funcionários públicos de brandos costumes, vamos comentando estes erros enquanto tomamos o nosso cafezinho.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Se às Vezes Digo que as Flores Sorriem

 Renoir

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXI"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Seleção (natural?)




Em grande grupo





Entre a segurança e a ousadia


Quase todas as cores


Sobre um rio carregado


Sob um céu pesado


quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Ovo

(Imagem retirada da net)
Nasruddin ganhava a vida a vender ovos.
Um belo dia passou alguém pela sua loja e disse: «Adivinhe o que trago na mão».
«Dê-me uma pista, pelo menos», disse Nasruddin.
«Pois dou-lhe várias e até muitas», disse o outro. «Tem forma de ovo, tamanho de ovo, aparência de ovo; tem cheiro de ovo, tem gosto de ovo e, por dentro, é branco e amarelo. É líquido antes de cozido… E é a galinha que o põe!»
«Ahaaa! Já sei!», exclamou Nasruddin: «É uma espécie de bolo!»
Quantas vezes também nós não entendemos o óbvio!
Falta-nos talvez a simplicidade e a atenção plena ao presente.
Anthony de Mello
O canto do pássaro
Lisboa, Ed. Paulinas, 1998
(Adaptação)
Texto enviado por: 
 http://contadoresdestorias.wordpress.com







Por falar em ovo…
Quando eu era pequena, a minha mãe criava galinhas e coelhos. Quando não tinha ovos que chegassem, eu ou a minha irmã íamos a duas casas de lavoura, na nossa aldeia, comprar os ovos. Ensinaram-nos a dizer: ovos para botar. Aqui, o sentido de botar era chocar e deles saírem novos pintos.
De ambas as casas tenho recordações.
As casas de lavoura tinham habitualmente os currais, a que chamávamos aidos, por baixo e no piso de cima ficava a parte da habitação.
Ora, quando chegávamos a uma das casas, chamávamos pela dona – era uma senhora muito alta, muito magra  que usava sempre saias compridas e um avental – e ela vinha à janela. Nós dizíamos que queríamos ovos. Ela desaparecia da janela e daí a nada tinha nas mãos uma cestinha com os ovos que fazia descer, cuidadosamente, por uma corda fina. Nós, em baixo, recolhíamos os ovos, colocávamos o dinheiro na cestinha que era de novo içada.
Da outra casa recordo a graciosidade da senhora que nos vendia os ovos, em contraste com a palha seca, o estrume, as hortaliças cheias de terra, os bois a chegar, pesados e tristonhos…
Dos ovos nasciam pintos que cresciam e se reproduziam, através de novos ovos. Também davam uma bela canja, arroz de frango, um bom assado a perfumar muitos domingos…
É curioso que deles no prato não me lembro, mas dos ovos e da capoeira nunca esqueci.


terça-feira, 3 de abril de 2012

Por que é que a EDP e PT se enganam sempre contra o consumidor?

Ontem, recebi uma fatura exorbitante de gás natural. Hoje, contactei os serviços, pedindo um esclarecimento.  Do outro lado, dizem-me que houve um erro na estimativa, que a fatura vai ser cancelada e substituída por outra. Pergunto quando irei receber nova fatura. Repetem-me num tom "soberano" que só sabem que a fatura vai ser cancelada. Interpelo a assistente se o erro foi meu e o porquê do tom. Reduz o volume de voz. Diz-me para aguardar. Aguardo. De vez em quando interrompe a música para me agradecer a espera. Após uns minutos, diz-me que poderei consultar os dados pretendidos no site da EDP. Digo-lhe: este tempo todo para me dizer que posso consultar o site? Desejo-lhe bom trabalho e um bom dia.

Lado mau da situação: apesar de muitos avanços, o consumidor ainda é o elo mais fraco.
Lado bom da situação: A conta que quase me assustara vai ser cancelada.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O lobo, a raposa, a cegonha...


Imagem retirada da net

Quando eu era pequena, o meu pai comprava-nos livros de histórias na feira do Livro do Porto.  Para mim e para os meus irmãos. Chegava a casa, contente, com vários livrinhos pequenos com capas coloridas e folhas com desenhos também de muitas cores.
Quase todas as histórias metiam lobos, raposas e cegonhas. Pelo menos foram os animais que me ficaram na memória. O lobo era feroz; a raposa, matreira e a cegonha vingativa.  
Convidavam-na para almoçar e apresentavam-lhe a comida num prato raso. O bico bem se abria mas não apanhava nada. Saía de casa dos amigos (se os amigos eram assim, como seriam os inimigos?), cheia de fome e desencanto. Não tardava muito a convidar a raposa, apresentando a comida em altas jarras...
Quando vejo livrinhos semelhantes, olho logo a ver se encontro o lobo, a raposa e a cegonha da minha infância.
E, por instantes, dura a ilusão.