As folhas das videiras ainda não estão vermelhas. Querem continuar a viver. Ainda que menos belas.
Há cachos de uvas que escapam aos cortes.
17 de outubro
Querido diário,
Já disse que é muito difícil ser adolescente. Ainda não mudei de ideias e acho que nunca vou mudar. É duro mesmo. Eu chego a esta conclusão muitas vezes. Às vezes fico calada e as pessoas pensam que eu pareço na lua, mas estou mais atenta do que se julga.
Os adultos pensam que para nós é tudo altamente, mas não sabem o resto. Ser adolescente dá muito trabalho. Eu acho que é mais do que isso: eles já se esqueceram dessa trabalheira. Pensam que estamos no quarto só a jogar computadoe ou no mensager, mas às vezes estamos tristes, sentimo-nos sós e temos medo de que não gostem de nós. Se nos veem chorar, ficam aflitos mas só pensam que podemos estar doentes. Se estamos tristes, pensam assim: isso passa. Isso é mimo.
Os adultos dizem que os jovens só querem sair, mas esquecem-se de todos aqueles que nunca saem e quase que não têm amigos. Conheço um rapaz que passa os fins de semana sempre sozinho e a mãe a dar-lhe cabo da cabeça: por que não tens amigos ou uma namorada? Coitado, ainda pior fica. Uma vez contou que até fechou a porta do quarto à chave.
Ano passado, tive uma colega que tinha a mesa cheiinha na festa dos anos dela. Convidou a turma toda e só foram quatro colegas ao aniversário porque os outros preferiram ir ao Cais de Gaia nessa noite. O pai dela até leitão tinha comprado. E que cena, uma das raparigas que foi à festa era vegetariana e outra não comia doces porque estava a fazer dieta. Destes casos ninguém fala.
E quando não acreditam em nós, ou então acreditam em tudo para não perderem tempo nem se chatearem?! Isto custa, embora, às vezes até dê jeito. Há uns dois anos tive um colega que chateava todos os dias os setores. Uma vez, no recreio, debaixo da palmeira, ele contou que só lhe apetecia chorar porque em casa estavam sempre a ralhar com ele e na escola ouvia as mesmas coisas.
Para não falar do Ricardo que ou anda eufórico ou de cabeça baixa sem falar com ninguém, porque o pai bate na mãe e ele acha que não a pode ajudar como ele gostava.
Lembrei-me agora da Marta. Parece que tudo lhe corre mal. O namorado zangou-se com ela e os pais ficaram desempregados. Fogo, que lhe irá ainda acontecer?
Eu acho que muita gente olha, mas não vê. Ou então faz de conta porque assim não há mais chatices. E depois somos nós, os adolescentes, que somos os maus da fita. E ainda dizem que a gente não sabe o que é a vida. Não, não, o que não andamos é sempre a pensar na morte.
Um xi muito apertadinho
Aqui vai, meu amigão
Não te esqueças que um miminho
Evita muita solidão.
Mariana
PS – Hoje estou poeta. Ou diz-se poetiza? Oh, sei lá.
Altamente (se a minha mãe me ouvisse, dizia logo: Mariana, utiliza outras palavras – sugestivo, apelativo, telúrico…) é este poema de Miguel Torga:
BUCÓLICA
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
17 de Outubro
Querido diário,
Não imaginas as saudades que tinha de ti. Parece que já não te escrevia há tanto tempo. E só passaram uns dois dias.
Vou contar-te o meu domingo. Fui com a minha mãe a um passeio a casas de escritores. A minha mãe disse-me a semana passada: Mariana, gostava que fosses comigo ao passeio do próximo domingo. Bem, eu já sei que “gostava” é uma ordem.
Partimos de manhãzinha cedo. Um dos locais que visitámos foi S. Martinho de Anta, onde viveu Miguel Torga quando era pequeno. A minha mãe disse-me assim: repara, Mariana, para a cor das janelas e da porta verde clarinho; que suave e que bonito. E para o quintal com árvores e sítios fresquinhos à sombrinha. Ainda bem que a filha do poeta continua a vir cá.
Eu vi mas reparei melhor no grupo da excursão e cheguei à conclusão de que eu era a mais nova de todos. Por que é que as pessoas um bocado idosas gostam tanto de viajar em grupo tão grande? – pensei eu.
Ainda me falta muito tempo para eu ter esta idade, mas não queria descer as escadas como eu também vi. As pessoas põem-se de lado e no último degrau agarram-se bem e descem para trás para não se magoarem nem caírem Fogo.
A minha prof de física (eu digo só física, mas é educação física) diz que a gente tem de fazer muita ginástica para não ter artroses nem avêcês no futuro. Eu ontem até ouvi as palavras dela, mesmo longe da escola.
A minha avó diz que por dentro se sente uma rapariga, embora por fora esteja muito velhinha. Se calhar é por isso que não acho nada bem quando alguém diz como uma vez um tio meu contou: estás velho. E o pior é que ele também estava velhote. Pelo menos, o meu tio disse isso, porque eu não conheço e nem tenho vontade de conhecer porque deve ser estúpido.
Voltando à visita que fiz ontem a casas de escritores, a minha mãe disse assim, Mariana, vamos ao Café Central porque era frequentado pelo Miguel Torga. A minha mãe ainda disse: quero sentir o espírito do lugar. Não percebi lá muito bem, mas lá fui com a minha mãe e as amigas dela.
Eu andava um bocado muda, mas até gostei de ter conhecido aquele sítio. É mesmo fixe. E achei altamente o tronco super-largo que está mesmo à beirinha da estátua de Miguel Torga. É pena é estar com cara de chateado, mas ouvi um senhor a dizer que ele era um homem de pouca risota.
A minha mãe tem a mania de me dizer que eu devia estudar mais. Eu acho é que ela ainda não reparou que para mim aprender coisas novas é altamente. Eu não gosto é de ser obrigada a estar muito tempo vergadinha sobre os livros, como se estivesse a vigiá-los. Coitados, também têm de parar um bocadinho e ficar sós.
Quando estávamos a sair do café da pracinha, uma senhora já um bocado idosa não viu o degrau e caiu esticadinha no chão. Fiquei a olhar meio parva. Coitada, pensava eu. Vieram pessoas a correr. Então é que percebi melhor por que é que as pessoas idosas gostam tanto de viajar em grupo tão grande. Assim, se caírem, têm sempre quem as levante.
Um xi-coração
E como gosto de rimar
Se um dia cair no chão
Ajuda-me a levantar
Mariana
PS – Hoje, ainda gostava de te escrever outra vez. Mas só mais tarde, porque tenho u8ns trabalhos urgentes.
Por que é que a gente não faz mais vezes as coisas de que gosta?
Confesso que não gostei de saber que fui trocada por dinheiro. Preferia – sempre fui um pouco ingénua e idealista – que me tivessem levado para casa só por amor. Fui adquirida como um bibelô, um jogo ou um boneco qualquer.
Parecia dócil e era vegetariana. Por isso, não provocaria nem atrito nem rombo na carteira de quem me adotasse. A ideia de juntar o útil ao agradável estava bem presente. Como sou fêmea, podia amamentar ninhadas de filhotes e a minha reprodução também não complicaria a vida dos meus anfitriões.
Não me recordo de ter ouvido alguém dizer que queria tornar a minha vida mais feliz ao retirar-me do mini-zoo, onde eu estava em grande exposição sob brancas luzes fluorescentes. Sobre isso nem uma palavra. Mas também fui reparando que isso era comum.
A mais pequenina da família dizia que eu era gorduchinha e fofinha. A mãe respondia com um sorriso de quem estava contente e de acordo. A alegria era partilhada pelo pai. Fui-me apercebendo de que ele fazia as vontades à filha, porque, assim, os jogos de futebol não eram interrompidos nem os telejornais.
Sem qualquer pompa, porque a circunstância também não o exige, sempre me senti próxima dos peixes do Sermão de Santo António. Tal como eles, oiço e não falo, enquanto que os homens falam mas, muitas vezes, não ouvem.
Tenho ainda bem presentes algumas palavras dos pais da minha dona: filha, olha que a cobaia não gosta de mudanças nem sequer alimentares. Mesmo sem querer, eu esmorecia, porque se reafirmava a minha rigidez, a minha inadaptação à mudança, o meu fechamento a outros mundos. Do que nunca gostei foi que me mudassem o sexo: meu porquinho da Índia! Que riquinho! Apetecia-me gritar-lhes que uma cobaia não é um mero adorno doméstico a quem se fala como se fosse apenas um ser felpudo, esquisito e estúpido. Sem ela, muitas descobertas científicas não tinham sido alcançadas.
Um outro aviso que os pais da menina faziam era que as cobaias adultas, quando zangadas, batem com os pés no chão, podendo ferir os filhotes. Quando eu ouvia este reparo, eu própria me sentia um potencial perigo. Como se o céu claro pudesse, de repente, tornar-se escuro e desabar em tempestade.
Desde muito nova habituei-me a ouvir discursos contraditórios. Às vezes, eu era uma beleza e regalo para o olhar, outras um estorvo. Na velhice, aí pelo meu quinto ano de vida, confesso que esta ambiguidade continuava a afetar-me. Criei, porém, as minhas próprias defesas.
Ao longo do tempo, ouvia convocar a minha natureza em muitas situações que eu até então desconhecia. A menina dizia arreliada: nós, os alunos, somos sempre as cobaias. A mãe referia o desconforto de fazer parte da cobaia humana. Confesso que me inspirava um certo orgulho o facto de os seres da minha espécie serem tão conhecidos e referidos, mas sabia-me quase a insulto penetrar em tantas situações. Sentia-me ordinária sem esquecer que uma parte da evolução da ciência também nos é devida.
Entretanto, a minha dona cresceu e já não olhava para mim com a mesma atenção. Quando me escolheu no mini-zoo, eu era como que um pequenino e macio cobertor de que a menina precisava para aprender a aquecer as mãos e os sorrisos. Depois, tornei-me num pequeno agasalho já gasto e habitual.
Mas uma vez que estou num tom confessional, gostava de dizer o seguinte: tenho um grande desejo: conhecer a Índia para saber por que me chamam porquinho desse país. Estou a viajar através da leitura. A minha dona gosta de ler em voz alta e, talvez por acaso, às vezes fá-lo perto de mim. Quando se levanta, costuma deixar o livro aberto. Está a ser uma boa experiência. E confesso que até me dá vontade de rir quando penso que podia ter um título esta minha pequena história: «A experiência da cobaia».
Se os humanos soubessem, alguns mudariam logo a preposição: «A experiência com cobaia».
Pelos vistos, só eu é que não mudo!
Ateliê de Escrita – Serralves (2009)
Tema sugerido pelo escritor Mário Cláudio