quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Há tantas raposas na terra!

 
 Em muitas noites, nos arredores de Londres, é frequente ouvir as raposas que regougam, roncam, uivam, gritam.

 Paula Rego, numa entrevista, com o seu  encantamento infantil, confessou: "Em Londres, não saio à noite porque tenho medo das raposas" (talvez por, na calada da noite, saírem das tocas, nos parques, e procurarem alimento nas ruas onde encontram sacos de lixo acessíveis).
Na minha infância, em que o tempo era mais de castigo do que prémio, ouvia-se: "Se não estudares, tens uma raposa" (reprovação).
E, por falar em raposas, lembrei-me da fábula de Esopo "A raposa e o queijo".
Recordei-a:
Estava um corvo num ramo de uma árvore e, no bico, segurava um queijo. Passando uma raposa, logo desejou a iguaria que não estava ao seu alcance por se encontrar demasiado alta. Para tal, elogiou a voz do corvo, pedindo que cantasse. O corvo, ingenuamente seduzido, abriu a boca para começar o seu canto, deixando logo cair o queijo. A esperta raposa, tendo conseguido o que pretendia, fugiu veloz levando consigo o desejado pitéu.
Também sobre uma raposa é um conto de Teolinda Gersão, incluído no livro  A mulher que prendeu a chuva,  "O casaco de raposa vermelha".
Não esqueço esta narrativa que me fascinou, tendo, muito resumidamente, dela retido:
Uma bancária deseja intensamente comprar um casaco de pele de raposa vermelha que viu numa montra de uma loja. Faz todos os cálculos do dinheiro de que pode dispor e o desejo de adquirir o casaco torna-se obsessivo.
Chega, finalmente, o dia tão desejado em que vai buscar o casaco e, vestindo-o, começa a correr em direção à floresta, tal qual uma raposa verdadeira.
Paralelamente a estes pensamentos, surgem os pequenos livrinhos que o meu pai nos comprava na Feira do Livro do Porto e cujas personagens eram, recorrentemente, as raposas, as cegonhas e os lobos. Parece que me estou a ver sentada na soleira da porta segurando um desses livrinhos na mão.
Um dia, ouvi uma vizinha falar de outra vizinha chamando-lhe manhosa e vingativa e logo me lembrei de uma história em que a raposa convidou a cegonha para almoçar, servindo a comida em pratos rasos, uma vez que a cegonha lhe tinha oferecido um almoço em jarras altas onde só um longo bico caberia.
Mesmo de raposa. 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

ANA MOURA - FADO LOUCURA

"Conscientemente escrevo..."

Poema do Futuro

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'

Do Amor - Paulo de Carvalho

Outro filme que revi: "Café Society" de Woody Allen



Gostei particularmente de rever ambientes e adereços dos anos trinta; o desempenho do ator Jesse Eisenberg, que aprecio bastante, no papel do jovem Bobby, que, querendo singrar na vida, sai de Nova York e vai para Hollywood, onde um tio é um famoso agente ligado à indústria do cinema.
O guarda-roupa, a música (não podia faltar o som encantatório do saxofone), os diálogos, nomeadamente no espaço da família judia de Bobby, contribuem para contar histórias em que sobressai a do jovem Bobby e de Vonnie, Kristen Stewart, por quem se apaixona, tal como o tio rico, Phil, com quem ela, secretária, vem a casar, depois de este se ter separado da mulher.
Bobby, apesar de casar com uma mulher adorável, também chamada Verónica, não consegue esquecer o seu grande amor, Vonnie. Esta parece sentir igualmente grande prazer nos passeios que dá com Bobby, aproveitando a ausência do marido e o desconhecimento de Verónica, grávida pela segunda vez.
Para além disto, senti a falta do fino humor mais contundente dos primeiros filmes de Woody Allen. 
O facto de, aparentemente, Vonnie amar os dois homens, Phil e Bobby, tão diferentes, incluindo a idade, poderá ser interpretado como uma espécie de completude que se busca e que raramente coabita numa única pessoa. Será?
E Phil, a entrar no outono da vida e a pretender viver cenários primaveris com Vonnie, tão bela e tão jovem.
Quando o filme terminou, desliguei o computador. Bastavam-me as imagens que acabava de ver.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Chavela Vargas - Si No Te Vas (Banda Sonora de "JULIETA" de Pedro Almodó...

Rever "Julieta"


   Revi o filme "Julieta" de Almodóvar. 
No ecrã, reencontrei rostos recorrentes em filmes deste realizador, como é o caso de Rossy de Palma, que, neste caso, faz o papel de uma empregada doméstica numa casa junto ao mar, onde vive uma mulher, ainda jovem, doente, em coma, cujo marido trabalha na pesca.
Este homem, Xoan, vai conhecer Julieta no comboio, numa viagem noturna, e apaixonam-se, vindo a viver juntos e a ter uma filha, após a morte da primeira mulher.
Nessa viagem em que se conheceram, segue também um homem mais velho, desesperando de solidão. Dirige a palavra a Julieta, mas esta inquieta-se e muda de lugar. Numa das paragens seguintes, o homem sai do comboio e suicida-se.
Anos mais tarde, Xoan, quando a filha é adolescente, depois de uma discussão com Julieta por ciúmes que esta demonstra, vai para o mar e morre, porque o barco naufraga devido a uma grande tempestade.
Entretanto, a filha, muito ligada ao pai, depois de um retiro, afasta-se da mãe e, propositadamente, não permite que ela saiba onde se encontra.
Já no outono da vida, Julieta começa a procurar a filha, numa busca ansiosa e contínua.
Ora, neste filme, existem temas recorrentes de Almodóvar: a doença (como o coma), os conflitos entre pais e filhos, a homossexualidade, a busca do passado, a solidão, a culpabilidade...
Julieta sente culpa pelo suicídio do velho homem que queria comunicar com alguém e de quem ela, assustada, se afastou; pela morte do companheiro após uma discussão; pelo desaparecimento da filha com quem poderia ter dialogado mais...
Comove-me a canção final, em tom plangente, na voz de Chavela Vargas: "Si no te vas".
É necessário viver intensamente, sentir muito, conhecer muito para realizar filmes que são espelhos em que, por uma questão ou por outra,  muitos de nós se reveem.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

"A luta entre o Carnaval e a Quaresma"

Pieter Bruegel (1525/1569)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

"Quando penso que uma palavra"


Enviado por:
http://contadoresdestorias.wordpress.com

Leonard Cohen - Dance Me to the End of Love

Ne me quitte pas, Jacques Brel

'Cet amour'

Clã | Problema de Expressão

O fogo e a água na expressão do amor!

O tempo ainda era de cartas de amor. Em papel. Às vezes com tinta de tinteiro. Azul, de preferência. Ele escrevia-lhe cartas de amor e ela queria responder, mas não sabia a fórmula certa desejada. As coisas faladas eram mais fáceis. Bastava sorrir, abraçar, beijar. Às escondidas porque essas coisas tinham de ser sem ninguém ver.
E as cartas que recebia eram bonitas e intensas. Gostava de as ouvir ler em voz alta. Ouvir porque a primeira leitura era difícil e quase nunca era dela.
Ele escrevia com letra muito miudinha e havia palavras que não se percebiam bem. Ela, apesar do seu amor,  tinha preguiça de decifrar tudo, mas queria saber tudo o que as cartas diziam.
Ora, tinha uma amiga que era dada a leituras e a escritas. Era ela que lhas lia. Depois de as ouvir, então relia-as vezes sem conta sozinha, porque sabia as linhas onde estavam as frases que a tinham emocionado mais e confirmado a sua paixão por ele.
E era também a amiga que escrevia as respostas.
- É isso mesmo que eu quero dizer, mas não digas nada a ninguém.
- Nem tu vais dizer que não és tu que escreves.
E sorriam. E voltavam a ler. E emendavam algumas coisas.
- Não ponhas essa palavra. Ele ainda me pergunta o que significa e eu não sei.
E voltavam a rir.
Depois de tudo concluído, metiam a carta num envelope que era fechado com um bocadinho de saliva.
- E se pusesse bâton e desse um beijinho na carta? Ele devia gostar. Pensava que era nele.
- É melhor uma gotinha de água e ele julga que estás a chorar de saudades.
- É isso mesmo.
- Vou buscar.
- Oh, deitei de mais e ficou tudo borratado.
- O poeta é que não viu esta, senão é que diria que as "cartas de amor são ridículas".


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Ensinamento

Kay Sage

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

Adélia Prado 

A enfermeira que vinha de Londres

É sempre assim. Quando viajo de avião e sinto turbulência, começo a falar com a pessoa do lado. O tempo passa mais depressa e oiço com menos ansiedade: "Como estamos a atravessar uma zona de turbulência, pedimos aos senhores passageiros que apertem os cintos...". 
Foi o que aconteceu recentemente num regresso de Londres.
Eu vinha a ler uma revista e, ao meu lado, uma jovem dormia a bom dormir.
Que pena não me acontecer o mesmo, pensei eu.
Como o voo era da TAP, serviram "uma pequena refeição", como costumam anunciar. A minha vizinha de lugar acordou quando passou o carrinho com os alimentos. Devia ser a fome a dar horas. E, logo a seguir, outro período de turbulência. Antes que ela voltasse a dormir, eu ataquei:
- Isto está a tremer bastante, não acha?
- Nem tinha reparado, disse ela.
E, ingerindo a sandezinha de alface e fiambre, o sumo Compal, o chocolate Regina e o cafezinho, fomos falando. 
Era enfermeira, trabalhava em Londres, gostava muito do que fazia, vinha a Portugal sempre que podia, não aguentava estar muito tempo sem ver a família e os amigos e o sol... Não, não pensava voltar. De maneira nenhuma. Não teria as mesmas oportunidades de trabalho.
- Pois, também por isso a minha filha emigrou. Sempre que posso e é necessário, passo uns dias em Londres para a ajudar.
A mãe também a visitava às vezes. Enquanto trabalhava, sem nada lhe pedir, a mãe arrumava a casa e fazia compras e cozinhava e lavava roupa, disse a sorrir.
Eu também sorri.
- Quase todas as mães são assim.
Um dia, quis que a mãe fosse apenas para passear e conhecer Londres. Tirou férias e foi a cicerone. A mãe adorou e ela também.
E continuámos a falar destas coisas simples mas luminosas da vida.
Veio a descida, a aterragem e a despedida.
- Muito prazer. Muitas felicidades.
- Gostei muito de a conhecer. Também para a sua filha.
Pode ser que nos encontremos de novo num avião.
Ah! Não lhe perguntei o nome. Era a enfermeira que vinha de Londres.

Sinais londrinos de primavera


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A enfermeira de olhos azuis

Eu estava como visitante de um hospital e encontrava-me junto do doente. Era necessária a presença da enfermeira. Toquei e apareceu uma senhora de bata, mas não era a enfermeira que prestava seviço ao doente daquela cama.
Não, tinha ido a outra enfermaria. Não demorava.
Esperei algum tempo e como receasse esquecimento, dirigi-me à sala da enfermagem. Procurei-a com os olhos, mas não a vi. Como não sabia o nome dela, indiquei a cama e acrescentei que era uma enfermeira de olhos azuis.
Duas enfermeiras que se encontravam na sala entreolharam-se e, com cara de poucos amigos, disseram que lhe diriam logo que chegasse.
Senti-me um pouco invasora de um espaço que não me era destinada e pouco hábil  por ter usado palavras informais.
Passados uns minutos, chegou a enfermeira por quem esperávamos. Pedi-lhe desculpa por ter indicado a cor dos olhos para a identificar, mas não sabia o nome.
- Enfermeira Vitória, disse com alguma secura.
Apresentei a razão de a ter chamado, dizendo:
- Senhora Enfermeira Vitória...
Em segundos, aprendi então que, sem se conhecer a pessoa, é melhor não falar da cor dos olhos, nem que seja delicadamente.
Por isso, sobre a cor dos olhos da enfermeira Vitória, aqui se acaba a pequena história.

Nota- É claro que a enfermeira não se chamava Vitória, mas os olhos eram azuis.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

As flores do supermercado

Como habitualmente, a avó foi buscar a neta à escolinha. Como habitualmente, a Clarinha não queria vir no carrinho.
- Não, não e não, quero ir a pé, ia dizendo  na pequenez grande dos dois aninhos.
A avó já não sabia o que fazer. Tirou da carteira uma garrafinha de sumo. Orgânico como habitualmente. Nem assim.
- Quero ir a pé, não quero ir no carrinho. Não é divertido, acrescentou.
A avó sorriu pela palavra dita, mas logo se seguiram mil expressões para convencer a neta.
- Passamos pelo supermercado. Queres?
- Não, não é divertido.
E a avó foi dizendo que não estava a achar piada nenhuma e que não a podia levar pela mão e, ao mesmo tempo, empurrar o carrinho.
E disse com desejo de convencimento:
- Vamos comprar flores para a mamã no supermercado.
Aceitou. Finalmente. Também já era tempo. E o carrinho começou a rolar.
- Vamos olhar, Clarinha se vem algum carro. E o sinal está vermelho, vês? Temos de esperar.
Chegaram ao supermercado.
- Olha que flores bonitas, Clarinha, para dares à mamã.
- E também ao papá, corrigiu a Clarinha, apontando para um raminho de tulipas,  cujas cores começou a indicar.
A avó sorriu um pouco comovida.
E era capaz de jurar que a Clarinha se ia habituando a achar divertidos momentos simples como aqueles.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Numa escolinha em Londres

Há um menino que é filho de uma vietnamita e de um alemão, outro menino que nasceu em Espanha e que vive agora em Londres, uma menina de pai português e mãe inglesa...
E os meninos são acompanhados por educadoras europeias, africanas, asiáticas...
A uni-los está a língua inglesa. Que conta as histórias, que canta as canções, que ensina as letras e os números, que transmite regras...
Uma grande parte dos infantários de Londres terão igualmente meninos das mais variadas proveniências e os profissionais que lá trabalham também nasceram longe. Um dia resolveram emigrar para terem uma vida melhor.
Tal como muitos pais das crianças. E as diferenças, se elas existem, passam a não ser diferenças aos olhos dos meninos, ou de quem lá trabalha, ou de quem lá entra.
Talvez o mundo futuro seja assim e oxalá que assim seja para boa memória futura.
Alguns pais e muitos avós destes meninos não tiveram acesso à escolaridade tão longa como seria necessário. Talvez estas crianças tenham, por direito, esse direito, nem sempre facilmente conquistado pelos progenitores.
Ah, e a unir todos eles está também a maravilha da comunicação.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

As raposas

Nos arredores de Londres, há noites de frio cortante e de gritos de raposas que ainda mais cortam a noite. Parecem gatos angustiados em luta pelo cio ou pela fome. 
Vêm à procura de comida e às vezes é fácil encontrá-la se os sacos do lixo não estão dentro do contentor. É só rasgá-los que as unhas estão sempre nesse modo. 
Se há janelas iluminadas, a luz pode ajudar. Ou então a lua ou as estrelas se as nuvens consentirem.
Apesar de já as ter ouvido com frequência, nunca vi nenhuma. Dizem que fogem se veem pessoas. Preferem a fuga e os esconderijos, muitas vezes nos parques que raramente perdem a cor verde. Os arbustos servem de apoio e disfarçam a presença.
De madrugada, voltarão aos esconderijos.
Ao contrário de outras raposas que circulam à luz do dia, como se a luz do sol brilhasse sobre si.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A segunda- feira

Tocou à campainha e logo a porta alta se abriu. Sorriram e disseram bom-dia. Ambas eram estrangeiras, mas a que chegava falava menos a língua do país para onde tinha imigrado havia cinco anos.
Com a família, falava a sua própria língua; em casa das senhoras, estava habitualmente sozinha a fazer os trabalhos domésticos, quase nem precisando de falar. Nos trabalhos da casa, não havia grandes diferenças. Também já sabia que se a porta do fogão estava aberta, era preciso lavar o forno; se a torradeira estava na banca, precisava de ser limpa por dentro. O resto fazia como habitualmente se faz.
 Ía para uma casa onde lhe ofereciam café. Habituara-se a não aceitar. Para mais, o café mexia-lhe com os nervos e queria andar calma para poder trabalhar e mandar dinheiro para a família.
E como trabalhava quase sempre só, levava um pequeno rádio para ouvir a música do seu país. Só podia fazê-lo à segunda-feira porque, nos outros dias, ia para casas em que os donos entravam e saíam quase sem nada dizerem e tinha receio de incomodar.
A segunda-feira era, assim, o dia que demorava menos a passar. Ouvir rádio tornava tudo mais leve e alegre.
De regresso a casa, caminhava junto ao Tamisa e sentia a falta de o seu país, a Moldávia, não ter sido bafejado pelo mar.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Responsabilidade? Eis uma questão.

Um dia destes, ou melhor, uma noite destas, ouvi a atriz Ana Bola dizer, num programa de televisão,  que na idade em que está, 65 anos, apetecia-lhe não ter responsabilidades. E acrescentou que tem mãe e um filho que adora, que sabe precisarem dela e a quem quer ajudar, mas que também ela existe, tal como existiu muito trabalho já realizado.
Ora, dizendo isto, era como se reproduzisse o sentir de muitas pessoas dessa idade, sobretudo mulheres.
Tenho uma amiga que refere muitas vezes que faz parte da geração sanduíche, porque está aberta aos pais, aos filhos e aos netos.
E nem sempre é fácil ter a sábia paciência nem aplicar o necessário ajuste a tão diferentes situações. Quando surge a questão: e eu?, logo aparecem garras de culpabilidade. Estarei a ser egoísta? Dizer 'eu' não poderá ser entendido como desejo de afastamento daqueles que têm toda a importância para mim?
São dilemas que se juntam a outros de uma pessoa que se sente viva.
Sim, também acho que às vezes apetecia não ter responsabilidades, mas talvez fosse como representar uma peça num palco cheio de buracos.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Os talentos dos outros

Hoje de manhã, enquanto tomava o pequeno almoço, vi uma pequena entrevista com os D.A.M.A., na SIC radical. Num registo muito jovem e descontraído, falaram da "Bolsa de Talentos", aberta a todos, independentemente da idade e do género, para apoiarem pessoas que se querem afirmar na arte. 
Reconhecendo que o grupo singrou graças a apoios que não faltaram, os três sabem que grande parte das pessoas não é bafejada pela mesma sorte, apesar de haver muitos e grandes talentos desconhecidos do grande público. E, com grande entusiasmo, os três rapazes diziam poder fazer aquilo de que gostavam, e querer ajudar a que outros também o façam.
O café com leite e a torrada, habitualmente, sabem-me bem logo pela manhã, mas, perante o programa a que assistia, ainda me souberam melhor.
Os D.A.M.A. de alegre e humana alma. Ah, utilizavam, no meio de bué, fixe... a palavra Verdade. E também ela me pareceu verdadeira.


D.A.M.A - Oquelávai (Lyric Video)

domingo, 28 de janeiro de 2018

Uma a uma, chegaram sete

Vieram de sete sítios diferentes. Cada uma com uma história para contar. Cada uma delas contá-la-ia à sua maneira. Nuns casos, demoraria mais tempo; noutros, seria mais rápida.
A umas apeteceria contar tudo o que as tinha trazido ali; a outras, as poucas forças tinham tirado a vontade de falar do que vinham sentindo.
Ah, as idades também eram diferentes. A cor e o comprimento dos cabelos logo o dizia. E a lisura ou as rugas dos rostos também o mostravam. E a rapidez do olhar também contava.
Quando uma chegava, as outras recebiam-na com um sorriso no rosto que estava a descoberto.  Para dizerem que ajudariam no que pudessem. E umas estavam mais disponíveis do que outras. E umas estavam mais aptas a ajudar. Uma delas até fazia movimentos com as pernas que não queria sentir enferrujadas. Outras não poderiam prestar qualquer auxílio e seria até arriscado fazê-lo.
Havia horas certas para tudo e também muito calor, apesar de estarmos em finais de janeiro.
Em vários momentos da tarde, chegavam umas poucas pessoas e abeiravam-se de umas, ficando outras sem companhia. Olhavam e sorriam para quem elas sorria.
Ah, e havia uma janela larga que deixava entrar o sol naquela enfermaria do hospital.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Cores e dimensões naturais

Em todos os sentidos
Da cor das pedras
Círculo (s)
Magnólia à espera de sol
Leques de cores

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A noite dos três relógios!

Amadeo Souza-Cardoso

A velha casa tem três relógios. Todos adiantados mas a dar horas em minutos diferentes. Um soa as badaladas quando faltam uns quinze minutos para a hora certa; outro, uns vinte e tal minutos e outro ainda, exatamente, meia hora mais cinco minutos.
Este último é o que conta para as horas das refeições que são sempre a horas certas, ou melhor, certas pelo relógio adiantado meia hora mais cinco minutos. Os cinco minutos são para qualquer distração, para alguém que bate à porta, para atender o telefone, para responder à chamada da vizinha, para fechar uma janela se o vento sopra ou a chuva não para de cair... Os trinta minutos são um dos hábitos intocáveis da casa.
Se é estranho durante o dia ouvir badaladas de três relógios, muito mais estranhas são as noites  dormidas na casa. Isto é, mal dormidas.
E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.
Talvez fixar os toques dos diferentes relógios ajude a adormecer. 
Ou tenha ficado alguma janela aberta para poder olhar a paisagem noturna. E como se ouvem muitas badaladas dispersas na noite, ninguém acorda.
Ou continue sem adormecer. Como as badaladas dos três relógios.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eugénio de Andrade faria hoje 95 anos

Cedro solitário (1907), de Tivadar Kosztka

 

O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

"O tempo, esse grande escultor"!


Flores em dia de sol


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Fernando Pessoa sobre a mesa

Ela entrou no consultório. Há muito que lá não ia. Os seus dados pessoais nem sequer estavam introduzidos no computador.
Enquanto o médico fazia o registo, ela olhou a sala e fixou-se num livro de poemas de Fernando Pessoa sobre a mesa.  E, passados minutos, anda a ler Fernando Pessoa? Gosta? Eu gosto muito.
Não, no seu tempo não se dava Fernando Pessoa. Eram Os Maias, e do resto do programa já mal se lembrava.
Fernando Pessoa, oh, tinha-o descoberto há semanas. Tudo começou ao abrir  aquele livro que tinha em casa há muitos anos. Foi um acaso. 
- O que faz?
- Fui professora de Francês e Português.
- Então, compreende. Veja este poema. Eu sinto isto. Eu já escrevi isto, sem nunca ter lido isto. Como é possível? Leio estes poemas e parece que estão a falar de mim. É a minha vida que está aqui. Sou eu que aqui estou.
- É bom quando assim é.
- Não, causa dor e sofrimento.
- Pessoa também fala da dor de pensar.
- Isto tira-me o sono, porque queria escrever. Tenho tantas ideias na cabeça. Mas não tenho tempo nem técnica, apesar de o gosto pela escrita não ser apenas de agora.
- Há muitos médicos escritores.
- Eu não sou escritor, mas precisava de escrever mais. Foi ao ler isto que descobri que preciso de  escrever a sério. Mas não tenho tempo.
- Alguns escritores isolam-se para escreverem.
- Não sabia, mas eu não posso. Há tantas coisas que senti e agora me vêm ao pensamento.
- Talvez o sentir e o pensar também de Pessoa. Ou o seu fingimento poético.
- Não sei nada disso. No meu tempo de escola, não se falava disso. E sei pouco de Literatura. Veja só este poema. Desculpe o tempo que lhe estou a tomar. Já lhe dei a receita? Sim, em duas semanas, volta ao normal.
- Veja só mais este.  Ah, se eu pudesse escrever tudo o que eu queria. E sabe que tenho medo de ler estes poemas? Parece que roubei as ideias e nem sequer tinha ouvido falar disto.
- Desculpe, sr doutor, ter aberto a porta. Como era a última consulta, pensei que já tivesse ido embora.
- Precisava mesmo de escrever à minha vontade. E sabe que já idealizei o lugar?

domingo, 14 de janeiro de 2018

O sábio

Era uma vez um sábio, mas só ele era sábio, porque os que estavam à sua volta nada sabiam, como pensava o sábio, e de quem se ria e voltava a rir.
Quando os outros - que para o sábio não eram sábios - falavam, o sábio afinava a garganta, interrompia e muitas vezes punha a mão no braço dos não sábios para que esperassem, ou melhor, para que o ouvissem porque só o sábio sabia o que dizer sobre os mais variados assuntos.
E assim viveu o sábio durante alguns anos e os não sábios também. Quando estes viam o sábio, sabiamente faziam de conta que o não viam, porque o sábio demoraria muito tempo a dizer o que os não sábios já sabiam e também tinham mais que fazer.
O sábio partiu então para terras mais sábias onde haveria outras sabedorias que não encontrava nem perto nem longe; nem na cidade nem na aldeia, e muito menos numa vila que era um misto neutro de um espaço e de outro.
Os anos passaram, passaram e o sábio teve oportunidade de conhecer um sábio, apenas um, e esse era mesmo sábio e não pensava que só ele era sábio e não punha a mão no braço do interlocutor para lhe mostrar que era sábio e que, por isso, o melhor era não falar porque não era sábio e não era bem assim como dizia. E nunca se ria com ironia para mostrar tudo o que sabia e que os outros ignoravam.
E o primeiro sábio passou a admirar muito o sábio que conhecera. E, desta vez, ouvia e ouvia e, quando podia e o sábio não estava presente, tentava imitá-lo, mas não conseguia.
Porém, não foi o sábio que chegou a esta conclusão. Foram os que para ele não eram sábios.
Os anos passavam e passavam. O sábio continuou a achar-se sábio, sobretudo com aqueles que ele considerava não sábios e a quem queria sempre mostrar, prolongadamente, a sua sabedoria.
E os não sábios cansaram-se de tanta lição sobre assuntos e em momentos que não vinham nada a calhar.
Como a idade não perdoa, o sábio começou a cansar-se mais e a precisar dos não sábios que, perante tão demorada e previsível preleção, sem tempo de antena para contraditório, continuavam a viver a sua vida.
Era a solução mais sábia que encontravam. 
E o sábio foi procurando palcos avulsos para exibir a sua sabedoria. Um dia, ouviu alguém dizer a  palavra solidão. Sentou-se num banco frio de jardim e começou a chorar.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Nem todas as estrelas são iguais!


quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Aproximação


Era uma vez um cogumelo...


... que apareceu debaixo de um pinheiro e outras árvores.
Todos os anos, no tempo das chuvas, aparecia, com outros companheiros de diferentes dimensões, e, sem se aperceberem, davam mais cor à terra, onde iam morrendo restinhos secos do outono.
Um dia, ouviu-se o clic de um telemóvel e ouviu-se também uma recomendação:
- Atenção, são belos mas podem ser perigosos.
Veio uma chuvada e o silêncio colorido também.