Com o Natal ainda tão próximo, partilho a história que escrevi para os Lugares e Palavras de Natal, da editora Lugar da Palavra.
Que esta quadra natalícia traga, para todos, saúde, bons lugares, boas palavras... E assim continue!
'Ao
entardecer e no regresso a casa, escuta
a
canção do rouxinol e depois com o olhar
segue
o caminho de uma pequena nuvem'
John Keats
O guia japonês e o
rouxinol ou um belo presente de Natal
Quando me preparava para
sair do pequeno museu, a minha autoestima parecia aparada rente como a relva do
jardim circundante. O que valeu foi a rececionista que, simpaticamente, me fez esquecer o que me desagradara na
visita guiada. Enquanto eu pagava uns postais, perguntou-me, gentilmente, de
que país eu era natural. Quando referi Portugal, abriu um sorriso e falou-me dos
vinhedos do Douro e da praia da Nazaré, lugares que ela já tinha visitado. Do
Douro, recordou os laboriosos socalcos e da Nazaré, a vastidão alta do mar e as
saias pujantes das Nazarenas. Realçou também sabores do vinho e do peixe fresco.
Mas voltemos ao início da
minha história.
Durante umas férias de Natal
em Londres, resolvi ir a Hampstead, para visitar a casa-museu de John Keats, o famoso
poeta romântico do século XIX, celebrizado por poemas como «Ode a um Rouxinol».
À chegada, apreciei a
arquitetura da casa, sóbria e integrada na verdejante região. Para além do imóvel,
queria conhecer um pouco da vida e obra do poeta inglês, de quem tinha lido apenas
um ou outro poema.
Quando entrei, fui
informada que haveria em breve uma visita guiada e logo me inscrevi. Como tinha
tempo, deambulei pelas poucas divisões da casa, percorrendo os espaços devagar,
parando em retratos do poeta, da mulher amada, dos amigos, e em objetos de
Medicina - área em que ele havia trabalhado antes de se dedicar inteiramente à
poesia. Detive-me também em frases do poeta, dispersas pela casa, que celebravam
a vida e os sentidos:
«Dê-me
livros, vinho francês, fruta, bom tempo e um pouco de música ao ar livre...»
A visita guiada
prometia. Seria um presente de Natal que me dava a mim
própria.
Um pouco antes do início
da visita, perto de mim e também à espera, já estavam dois homens e uma mulher,
todos de aparência nórdica: muito altos e muito brancos. A um canto da loja,
integrada na sala de entrada, estava sentado um jovem magro e de baixa estatura,
camisa branca, cabelo preto espetado, ar tímido, e rosto com traços orientais.
À hora certa, levantou-se, aproximou-se, cumprimentou-nos, e disse ser o nosso
guia. A visita ia começar.
Vi logo que nós, os quatro
visitantes, deveríamos ter idades similares, que os três nórdicos se expressavam
muito bem em língua inglesa e que conheciam bem a época do Romantismo, assim
como a vida e obra de Keats, sobretudo o casal. O outro homem era bastante reservado,
talvez menos conhecedor daquelas matérias, preferindo receber a informação de
forma menos ativa. Tal como eu.
A visita foi-se
desenrolando e fui dando conta de pormenores que me tinham escapado na deambulação
anterior, o que me agradava porque me acrescentava saberes. Porém, o meu
conhecimento da língua inglesa não me permitia captar todas as palavras ditas
ao ritmo normal de um falante inglês, o que se refletiria nos meus olhos. Ora,
o guia, nas suas explicações, olhava sobremaneira para o casal mais interventivo
e para o outro homem quando este se manifestava. A mim, porém, nunca dirigia o
olhar, talvez por eu não intervir com questões ou achegas. É que quase tudo
para mim era novo e estava ali essencialmente para ouvir e aprender.
O facto de nunca ser
olhada lembrou-me a existência de tanta gente anónima por quem se passa sem
olhar, como se não estivesse ali uma vida, uma história, um rosto. Tornei-me
assim um pontinho nessa multidão tão próxima, mas que julgamos tão diferente e distante.
Eu seguia o pequeno grupo,
ao longo das poucas salas e corredores, mas sentia-me uma frágil medusa entre
seres enormes e invencíveis.
Eu era um peixe que podia
nadar dentro ou fora da água, com ou sem ruído, mas que ninguém tentaria pescar,
porque era impercetível.
Eu era um aluno nunca olhado
na sala de aula e cujo nome é ignorado ou confundido.
Eu era alguém que espera
a sua vez numa fila qualquer, vendo pessoas mais seguras a passarem-lhe à
frente e logo atendidas.
Eu era o menino pequeno e
moreno que quer jogar, mas a quem não passam a bola porque tem menos treino.
Eu era o velho de quem
desviam a atenção e o olhar, porque não está a perceber.
Eu era a criança que se
distrai porque se sente esquecida.
A visita continuava e a
minha imaginação ia voando como o rouxinol do poema de Keats ou da pintura de Joseph
Severn, que vi na sala grande que dava para o jardim.
E, nestas divagações, imaginei
o guia em criança, de rosto redondo e calças muito largas, a caminhar com o pai,
lado a lado e em silêncio, debaixo de cerejeiras floridas, dando passos lestos
e miúdos. O rapazinho precisava de um olhar, mas como o pai não o ouvia, não
alterava o rumo dos passos nem dos olhos.
Talvez o jovem repetisse agora o que vira
fazer durante muito tempo.
Ainda lhe faltariam
muitos Natais para inovar?
Apenas na despedida da
visita guiada, vi o seu olhar distribuído por todos os elementos do grupo,
bastando esse pequeno gesto para se acenderem luzes na árvore da humanidade.
À minha saída, a amável
rececionista perguntou-me se eu tinha gostado da visita. Respondi-lhe que sim, apesar
de não ter compreendido muitas coisas. Ela, talvez pela experiente empatia, elogiou
a minha expressão em língua inglesa. Sorrindo, agradeci e desejamo-nos um Feliz
Natal.
Bem perto dela, estava o
jovem guia de novo sentado na cadeira do canto à espera de novos visitantes.
Com a luz a incidir-lhe na cabeça negra, ele parecia uma figura mística de
olhos voltados para a janela alta e larga.
Pudesse ele estar a olhar
os diferentes pássaros que por lá se cruzavam, sem buscar apenas o rouxinol.
Se tal
acontecesse, seria também um belo presente de Natal.


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