segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A melhor cidade do mundo

 

No dia seguinte, fomos ao British Museum.

Quando saímos, disse-me com voz de encantamento:

- Gostei tanto, Saturnino, das exposições. Que bom estarmos os dois aqui e agora, sentindo tanto amor um pelo outro. Dizem que Paris é a cidade do amor. Para mim, é Londres.

Fiquei extasiado, abracei-a e o British Museum passou a ser o melhor museu do mundo.

No penúltimo dia em Londres, tomámos o english breakfast no hotel e começámos a programar o sábado. Como gostava muito de falar inglês, ela optou por dizer saturday, começou a rir-se  e disse com desvanecida ironia:

- Como não gostas de Saturnino, posso chamar-te Saturday!, pronunciando o tê como se fosse dê.

Não achei piada à graçola e disse-lhe que bastava de picardias. E que ela não gostava de ninguém para além de si própria. 

Continuou no mesmo registo de zombaria, dizendo que a ela lhe poderia chamar Sunday, porque era bem mais luminosa do que eu e que, felizmente, como os pais sempre a tinham amado, não lhe tinham posto um nome que tolhesse a sua alegria à nascença. Isto tudo enquanto engolíamos o resto do café azedo e já morno e terminávamos um sumo deslavado de laranja.

De repente, disse-me com voz risonha de menina a pedir colo depois de birra insuportável:

- Desculpa, Saturnino, estava a brincar.

E logo me recordou que tínhamos combinado andar na Roda Gigante, para vermos Londres bem do alto. Fomos a pé, ela deu-me a mão e, com encantamento, ia partilhando comigo o que ia vendo.

Quando entrámos na cabina, abraçou-me, dizendo:

- Adoro-te, Saturnino.

Eu abracei-a, mas como pressentiu alguma desconfiança da minha parte (eu começava a ter consciência da efemeridade dos seus gestos e das palavras corrosivas em tantos e repetidos momentos), afastou-se um pouco, criticando a minha insegurança, a não entrega ao momento, o facto de parecer que estava sempre à espera do pior e de não desfrutar consistentemente do que de bom a vida nos oferece a cada instante.

Agarrei-a pela cintura, abracei-a e pedi-lhe que vivêssemos, então, aquele momento bem juntos, como se fosse o último.

-  I love you, Saturnino, disse ela.

Ao almoço, fomos a um pub comer fish and ships com cerveja local.

O tempo estava fresco, o céu com muitas nuvens, mas, mesmo assim, preferimos ficar no exterior, saboreando os petiscos que nos iam pondo na mesa de madeira, de forma efusiva.

Aconchegou a si o casaco e achei que o rosto dela ficava ainda mais bonito com o rosado que a aragem fria lhe punha na pele. O cabelo esvoaçava e ela deixava-o em liberdade.

Eu disse-lhe que ela era linda. Retribuiu-me, pondo a mão dela sobre a minha e dizendo:

-  És o homem da minha vida, Saturnino.

Pela primeira vez não lhe respondi, o que estranhou, mas vivemos as restantes horas do dia sem discussões nem azedume.

À noite, continuava deslumbrante, alegre e meiga. Depois do jantar, ela quis  ir beber um copo a um pub que tinha visto numa Time Out, no hotel. A distância era significativa. Disse-lhe que estávamos cansados, que tínhamos de nos levantar muito cedo no dia seguinte e que o melhor seria passarmos o serão mais perto, já que não faltavam bares e pubs acolhedores nas imediações.

Lançou-me um olhar feroz, acusando-me de não saber ultrapassar os meus constrangimentos e sobretudo os meus traumas que me impediam de apreciar a vida em todo o seu esplendor. E que, de facto, a escolha do meu nome tinha sido premonitória. Fomos para o quarto, ouvindo-se apenas os nossos passos no corredor do hotel.

Quando acordei, ela surpreendeu-me com um desnudado abraço largo e lânguido:

-  Amo-te tanto, Saturnino.

 Estendida na cama, com volúpia, começou a rir-se dos próprios caprichos, de ser tantas vezes infantil e imprevisível, chamando-me, com os braços estendidos, espreguiçadamente, Sa-tur-ni-no. Como a um gato que não se quer ver fugir pela janela.

Foi quando ela me ouviu dizer, atónita e descrente da minha convicção:

-  Quando chegarmos a Portugal, o melhor para ambos é tratarmos da nossa separação.

Com mais segurança do que habitualmente, fechei a pequena mala.

E Londres passou a ser, de facto e para mim, a melhor cidade do mundo. Cinzenta, perplexa, mas liberta.

 

 

12 comentários:

  1. Para mim, LISBOA é a mais bela cidade do mundo. As outras são paisagem.
    .
    Saudações cordiais.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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    1. A sério, Ricardo? Olhe que todas as cidades têm o seu encanto e também paisagens bem bonitas e diferentes.
      E o que se vive nelas também ajuda a desenhar o seu retrato.
      Também gosto muito de Lisboa, embora goste igualmente de outras cidades.
      Um abraço

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  2. Depois de um belo passeio a (separação)? :))
    -
    Quero sentir o tremor do teu coração...
    .
    Beijo, e uma excelente semana!

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    1. Conheço um par de casos em que isso aconteceu. Nem sempre estarem juntos é sinal de que sempre assim será e que tudo está bem. E até as férias podem dar em separação. Nesses momentos, aparentemente mais disponíveis e libertos, pode acontecer a tal gota de água.
      Um abraço, Cidália, e bons passeios em forte união.

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  3. Respostas
    1. Obrigada, Gracinha.
      Um beijinho e continuação de sempre bons olhares.

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  4. Achei esta história um bocado esquisita, Maria. A personagem feminina parece pouco consistente, ora ama muito, ora desama em demasia. Não tem a versão feminina do assunto? Talvez explique melhor a história, já que esta é contada por ele.
    Boa semana

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    1. Sim, Bea, concordo consigo. Eu queria uma personagem que se chamasse Saturnino. Situei-o em Londres que era onde eu estava no momento. O par que lhe arranjei tinha talvez demasiados caprichos para ser verosímil, embora haja pessoas bastante assim.
      E achei piada ao desafio: ser ela a falar na primeira pessoa. Obrigada. Vou tentar, embora não saiba quando.
      Um abracinho, Bea

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  5. Obrigada, Elvira. Sempre generosa.
    Um abraço e desejos de saúde e alegrias

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  6. De facto, este é um conto excelente que comprova claramente a ária "La donna è mobile", da ópera Rigoletto , de Verdi.
    O último parágrafo é muito bom: curto e surpreendente!
    Parabéns, Dolores!

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  7. De facto, este é um conto excelente que comprova claramente a ária "La donna è mobile", da ópera Rigoletto , de Verdi.
    O último parágrafo é muito bom: curto e surpreendente!
    Parabéns, Dolores.
    beijinho,

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