Ela entrou no consultório. Há muito que lá não ia. Os seus dados pessoais nem sequer estavam introduzidos no computador.
Enquanto o médico fazia o registo, ela olhou a sala e fixou-se num livro de poemas de Fernando Pessoa sobre a mesa. E, passados minutos, anda a ler Fernando Pessoa? Gosta? Eu gosto muito.
Não, no seu tempo não se dava Fernando Pessoa. Eram
Os Maias, e do resto do programa já mal se lembrava.
Fernando Pessoa, oh, tinha-o descoberto há semanas. Tudo começou ao abrir aquele livro que tinha em casa há muitos anos. Foi um acaso.
- O que faz?
- Fui professora de Francês e Português.
- Então, compreende. Veja este poema. Eu sinto isto. Eu já escrevi isto, sem nunca ter lido isto. Como é possível? Leio estes poemas e parece que estão a falar de mim. É a minha vida que está aqui. Sou eu que aqui estou.
- É bom quando assim é.
- Não, causa dor e sofrimento.
- Pessoa também fala da dor de pensar.
- Isto tira-me o sono, porque queria escrever. Tenho tantas ideias na cabeça. Mas não tenho tempo nem técnica, apesar de o gosto pela escrita não ser apenas de agora.
- Há muitos médicos escritores.
- Eu não sou escritor, mas precisava de escrever mais. Foi ao ler isto que descobri que preciso de escrever a sério. Mas não tenho tempo.
- Alguns escritores isolam-se para escreverem.
- Não sabia, mas eu não posso. Há tantas coisas que senti e agora me vêm ao pensamento.
- Talvez o sentir e o pensar também de Pessoa. Ou o seu fingimento poético.
- Não sei nada disso. No meu tempo de escola, não se falava disso. E sei pouco de Literatura. Veja só este poema. Desculpe o tempo que lhe estou a tomar. Já lhe dei a receita? Sim, em duas semanas, volta ao normal.
- Veja só mais este. Ah, se eu pudesse escrever tudo o que eu queria. E sabe que tenho medo de ler estes poemas? Parece que roubei as ideias e nem sequer tinha ouvido falar disto.
- Desculpe, sr doutor, ter aberto a porta. Como era a última consulta, pensei que já tivesse ido embora.
- Precisava mesmo de escrever à minha vontade. E sabe que já idealizei o lugar?