quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

As flores do supermercado

Como habitualmente, a avó foi buscar a neta à escolinha. Como habitualmente, a Clarinha não queria vir no carrinho.
- Não, não e não, quero ir a pé, ia dizendo  na pequenez grande dos dois aninhos.
A avó já não sabia o que fazer. Tirou da carteira uma garrafinha de sumo. Orgânico como habitualmente. Nem assim.
- Quero ir a pé, não quero ir no carrinho. Não é divertido, acrescentou.
A avó sorriu pela palavra dita, mas logo se seguiram mil expressões para convencer a neta.
- Passamos pelo supermercado. Queres?
- Não, não é divertido.
E a avó foi dizendo que não estava a achar piada nenhuma e que não a podia levar pela mão e, ao mesmo tempo, empurrar o carrinho.
E disse com desejo de convencimento:
- Vamos comprar flores para a mamã no supermercado.
Aceitou. Finalmente. Também já era tempo. E o carrinho começou a rolar.
- Vamos olhar, Clarinha se vem algum carro. E o sinal está vermelho, vês? Temos de esperar.
Chegaram ao supermercado.
- Olha que flores bonitas, Clarinha, para dares à mamã.
- E também ao papá, corrigiu a Clarinha, apontando para um raminho de tulipas,  cujas cores começou a indicar.
A avó sorriu um pouco comovida.
E era capaz de jurar que a Clarinha se ia habituando a achar divertidos momentos simples como aqueles.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Numa escolinha em Londres

Há um menino que é filho de uma vietnamita e de um alemão, outro menino que nasceu em Espanha e que vive agora em Londres, uma menina de pai português e mãe inglesa...
E os meninos são acompanhados por educadoras europeias, africanas, asiáticas...
A uni-los está a língua inglesa. Que conta as histórias, que canta as canções, que ensina as letras e os números, que transmite regras...
Uma grande parte dos infantários de Londres terão igualmente meninos das mais variadas proveniências e os profissionais que lá trabalham também nasceram longe. Um dia resolveram emigrar para terem uma vida melhor.
Tal como muitos pais das crianças. E as diferenças, se elas existem, passam a não ser diferenças aos olhos dos meninos, ou de quem lá trabalha, ou de quem lá entra.
Talvez o mundo futuro seja assim e oxalá que assim seja para boa memória futura.
Alguns pais e muitos avós destes meninos não tiveram acesso à escolaridade tão longa como seria necessário. Talvez estas crianças tenham, por direito, esse direito, nem sempre facilmente conquistado pelos progenitores.
Ah, e a unir todos eles está também a maravilha da comunicação.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

As raposas

Nos arredores de Londres, há noites de frio cortante e de gritos de raposas que ainda mais cortam a noite. Parecem gatos angustiados em luta pelo cio ou pela fome. 
Vêm à procura de comida e às vezes é fácil encontrá-la se os sacos do lixo não estão dentro do contentor. É só rasgá-los que as unhas estão sempre nesse modo. 
Se há janelas iluminadas, a luz pode ajudar. Ou então a lua ou as estrelas se as nuvens consentirem.
Apesar de já as ter ouvido com frequência, nunca vi nenhuma. Dizem que fogem se veem pessoas. Preferem a fuga e os esconderijos, muitas vezes nos parques que raramente perdem a cor verde. Os arbustos servem de apoio e disfarçam a presença.
De madrugada, voltarão aos esconderijos.
Ao contrário de outras raposas que circulam à luz do dia, como se a luz do sol brilhasse sobre si.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A segunda- feira

Tocou à campainha e logo a porta alta se abriu. Sorriram e disseram bom-dia. Ambas eram estrangeiras, mas a que chegava falava menos a língua do país para onde tinha imigrado havia cinco anos.
Com a família, falava a sua própria língua; em casa das senhoras, estava habitualmente sozinha a fazer os trabalhos domésticos, quase nem precisando de falar. Nos trabalhos da casa, não havia grandes diferenças. Também já sabia que se a porta do fogão estava aberta, era preciso lavar o forno; se a torradeira estava na banca, precisava de ser limpa por dentro. O resto fazia como habitualmente se faz.
 Ía para uma casa onde lhe ofereciam café. Habituara-se a não aceitar. Para mais, o café mexia-lhe com os nervos e queria andar calma para poder trabalhar e mandar dinheiro para a família.
E como trabalhava quase sempre só, levava um pequeno rádio para ouvir a música do seu país. Só podia fazê-lo à segunda-feira porque, nos outros dias, ia para casas em que os donos entravam e saíam quase sem nada dizerem e tinha receio de incomodar.
A segunda-feira era, assim, o dia que demorava menos a passar. Ouvir rádio tornava tudo mais leve e alegre.
De regresso a casa, caminhava junto ao Tamisa e sentia a falta de o seu país, a Moldávia, não ter sido bafejado pelo mar.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Responsabilidade? Eis uma questão.

Um dia destes, ou melhor, uma noite destas, ouvi a atriz Ana Bola dizer, num programa de televisão,  que na idade em que está, 65 anos, apetecia-lhe não ter responsabilidades. E acrescentou que tem mãe e um filho que adora, que sabe precisarem dela e a quem quer ajudar, mas que também ela existe, tal como existiu muito trabalho já realizado.
Ora, dizendo isto, era como se reproduzisse o sentir de muitas pessoas dessa idade, sobretudo mulheres.
Tenho uma amiga que refere muitas vezes que faz parte da geração sanduíche, porque está aberta aos pais, aos filhos e aos netos.
E nem sempre é fácil ter a sábia paciência nem aplicar o necessário ajuste a tão diferentes situações. Quando surge a questão: e eu?, logo aparecem garras de culpabilidade. Estarei a ser egoísta? Dizer 'eu' não poderá ser entendido como desejo de afastamento daqueles que têm toda a importância para mim?
São dilemas que se juntam a outros de uma pessoa que se sente viva.
Sim, também acho que às vezes apetecia não ter responsabilidades, mas talvez fosse como representar uma peça num palco cheio de buracos.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Os talentos dos outros

Hoje de manhã, enquanto tomava o pequeno almoço, vi uma pequena entrevista com os D.A.M.A., na SIC radical. Num registo muito jovem e descontraído, falaram da "Bolsa de Talentos", aberta a todos, independentemente da idade e do género, para apoiarem pessoas que se querem afirmar na arte. 
Reconhecendo que o grupo singrou graças a apoios que não faltaram, os três sabem que grande parte das pessoas não é bafejada pela mesma sorte, apesar de haver muitos e grandes talentos desconhecidos do grande público. E, com grande entusiasmo, os três rapazes diziam poder fazer aquilo de que gostavam, e querer ajudar a que outros também o façam.
O café com leite e a torrada, habitualmente, sabem-me bem logo pela manhã, mas, perante o programa a que assistia, ainda me souberam melhor.
Os D.A.M.A. de alegre e humana alma. Ah, utilizavam, no meio de bué, fixe... a palavra Verdade. E também ela me pareceu verdadeira.


D.A.M.A - Oquelávai (Lyric Video)

domingo, 28 de janeiro de 2018

Uma a uma, chegaram sete

Vieram de sete sítios diferentes. Cada uma com uma história para contar. Cada uma delas contá-la-ia à sua maneira. Nuns casos, demoraria mais tempo; noutros, seria mais rápida.
A umas apeteceria contar tudo o que as tinha trazido ali; a outras, as poucas forças tinham tirado a vontade de falar do que vinham sentindo.
Ah, as idades também eram diferentes. A cor e o comprimento dos cabelos logo o dizia. E a lisura ou as rugas dos rostos também o mostravam. E a rapidez do olhar também contava.
Quando uma chegava, as outras recebiam-na com um sorriso no rosto que estava a descoberto.  Para dizerem que ajudariam no que pudessem. E umas estavam mais disponíveis do que outras. E umas estavam mais aptas a ajudar. Uma delas até fazia movimentos com as pernas que não queria sentir enferrujadas. Outras não poderiam prestar qualquer auxílio e seria até arriscado fazê-lo.
Havia horas certas para tudo e também muito calor, apesar de estarmos em finais de janeiro.
Em vários momentos da tarde, chegavam umas poucas pessoas e abeiravam-se de umas, ficando outras sem companhia. Olhavam e sorriam para quem elas sorria.
Ah, e havia uma janela larga que deixava entrar o sol naquela enfermaria do hospital.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Cores e dimensões naturais

Em todos os sentidos
Da cor das pedras
Círculo (s)
Magnólia à espera de sol
Leques de cores

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A noite dos três relógios!

Amadeo Souza-Cardoso

A velha casa tem três relógios. Todos adiantados mas a dar horas em minutos diferentes. Um soa as badaladas quando faltam uns quinze minutos para a hora certa; outro, uns vinte e tal minutos e outro ainda, exatamente, meia hora mais cinco minutos.
Este último é o que conta para as horas das refeições que são sempre a horas certas, ou melhor, certas pelo relógio adiantado meia hora mais cinco minutos. Os cinco minutos são para qualquer distração, para alguém que bate à porta, para atender o telefone, para responder à chamada da vizinha, para fechar uma janela se o vento sopra ou a chuva não para de cair... Os trinta minutos são um dos hábitos intocáveis da casa.
Se é estranho durante o dia ouvir badaladas de três relógios, muito mais estranhas são as noites  dormidas na casa. Isto é, mal dormidas.
E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.
Talvez fixar os toques dos diferentes relógios ajude a adormecer. 
Ou tenha ficado alguma janela aberta para poder olhar a paisagem noturna. E como se ouvem muitas badaladas dispersas na noite, ninguém acorda.
Ou continue sem adormecer. Como as badaladas dos três relógios.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eugénio de Andrade faria hoje 95 anos

Cedro solitário (1907), de Tivadar Kosztka

 

O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

"O tempo, esse grande escultor"!