quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A travessa-cavalinho



        Margarida olhou a antiga travessa, pendurada há anos, depois de ter sido substituída por loiça mais moderna, destacando-se na parede das recordações – se é que se pode chamar assim a um conjunto de objetos que trazem memórias e, neste caso, quase sempre felizes.
        A travessa, de cor parda pelo uso e pelo tempo, mantinha, no fundo, uma paisagem arborizada, em tons de verde, e, no centro, um cavalo veloz, guiado por um jovem e ágil cavaleiro.
Ao longo dos muitos anos em que Margarida viu a travessa-cavalinho no ativo, nunca reparou, com tanta nitidez, nos pormenores do desenho. No passado, via-o quase sempre coberto de batatas, hortaliças e bacalhau fumegantes, saídos da grande e pesada panela envolta em quentes vapores. Ou de aletria com carreirinhos de canela perfumada. Ou de louras rabanadas, polvilhadas de açúcar que a recente fritura aquecia.
        Passado, então, muito tempo e aproximando-se o Natal, Margarida estendeu os braços e retirou a travessa da parede, tomando-a nas mãos. A sala abriu-se a cheiros, gestos, silêncios do passado. E a vozes diretivas e urgentes também: Margarida, descasca as batatas; Margarida, cuidado com a travessa; Margarida, vai ao quintal apanhar couves; Margarida, vai a casa da senhora Clara buscar os ovos (Clara era uma velha senhora – ou sê-lo-ia apenas aos olhos de Margarida – que, debruçada da janela da grande casa de lavoura, fazia descer, devagarinho, ao seu chamamento, uma cestinha com os ovos. Voltava a elevá-la com as moedas que as mãozinhas ainda pequenas lá depositavam. A menina ficava a olhar a cestinha, acionada pelas mãos altas da senhora Clara, seguindo sempre o sereno prumo do fio).
         Agora, aproximando-se de novo dessa peça de loiça antiga, Margarida abeirava-se dos rostos das pessoas presentes ou ausentes e que daquela travessa tinham retirado prazeres deleitosos ao longo de muitos anos. Algumas tinham já partido, mas a travessa continuava a ser delas um espelho. Olhando a travessa-cavalinho, tantas lembranças eram convocadas! Tantas imposições reiteradas pela organização da casa e do trabalho: Margarida, faz isto; Margarida, faz aquilo; Margarida, vai ali; Margarida, vem cá…
A azáfama dos espaços e dos tempos foi-se impondo, os Natais sucederam-se num ápice e não lhe sobrava concentração para concretizar um gosto que sempre a animara: escrever histórias. E, no entanto, havia algumas ajudas temáticas, porque, à volta do Natal, ocorriam peripécias passíveis de serem encaixadas em contos, expandidos pela imaginação.
Margarida revia alguns desses momentos.
Uma vez, num longínquo Natal, chegando o momento de o avô receber os presentes, dos embrulhos só surgiam meias. Apenas as cores variavam: umas mais escuras, outras mais claras. O avô, de sorridentes olhos claros e pequeninos, ia juntando, num montinho, os pares de meias e disse não sem malícia: “Tenho meias para o resto da vida. Para o ano, se quiserem, podem dar-me outra coisa.”
Numa outra noite de Natal, a travessa-cavalinho ficara em cima da mesa. A mãe de Margarida, seguindo uma tradição de família, deixava sempre a toalha por sacudir na mesa, e sobre ela algumas das iguarias que restavam da ceia. Ora, Margarida, aproveitando o adormecimento da casa, foi à cozinha para ver se o Menino Jesus já tinha trazido os presentes. A crença era tão grande na Sua vinda que Margarida pensava ter visto os caracóis do Menino, ainda mais menino do que ela, a descer pela chaminé, onde estavam dispostos, em fila, os sapatinhos.
Na véspera de um outro Natal, a travessa-cavalinho segurava, dessa vez, as rabanadas loiras e quentinhas. De repente, chegou Margarida com a irmã e, sem contar nem querer, mexeram na porta e esta moveu-se, deixando ver o que estava bem mal escondido: dois guarda-chuvinhas, guarnecidos de um folhinho cor-de-rosa, para serem postos no sapatinho, como oferta do Menino Jesus. Acabava-se, assim, a magia dos presentes, trazidos por um ser de um reino fantástico ou divino. Tudo se desmoronara num abrir e fechar de uma simples porta de cozinha.
Num outro dia de frio dezembro, muito próximo do Natal, Margarida foi ao mato buscar musgo para o presépio. Levou uma cestinha, trazendo-a recheada com o tapetinho verde, em camadinhas leves para não ficar pisado. Entrando em casa, logo se aproximou da mãe, falando do cheiro húmido dos recantos onde as árvores e arbustos nunca têm sede de água, porque as chuvas a acumulam e conservam sob as árvores de eterna sombra, onde o musgo reverdece. Nesse momento, estava a mãe a lavar as loiças para o Natal e nas mãos tinha a travessa-cavalinho que mais verde parecia.
Também tinha sido diante da travessa-cavalinho que Margarida ouvira os avós e agora os pais dizerem com voz enfraquecida: “Este vai ser o meu último Natal.”
E, infelizmente, houve cadeiras que foram ficando quietas e vazias; outras vezes, felizmente, a frase de quase despedida voltou a ser silabada ainda por alguns Natais.
Tantas histórias ouvidas e vividas que Margarida queria partilhar, filigranando as palavras para que o todo tivesse a harmonia de uma doce e desejada ceia de Natal.
Tantas situações que se poderiam encaixar em histórias curtas e simples que Margarida gostava de já ter escrito. Talvez os filhos gostassem. Ou os sobrinhos. Ou os filhos dos amigos. Ou desconhecidos
que se abeirariam dela, chamados pelas palavras impressas. Gostava de já ter as histórias na mão, em forma de livro ou em folhinhas soltas de macio papel, ilustradas de preferência, como tinha agora a travessa-cavalinho.
Sabia que se fosse uma escritora a sério, tê-las-ia já produzido, desse por onde desse; mas queria tão só contar pequenas histórias que lhe bailavam na memória, agora espelhadas numa travessa--cavalinho que se habituara a ver sobre a mesa natalícia desde a sua infância.
Outras estórias surgiriam reinventadas ou imaginadas, com a larga inocência de pensar que ainda nem tudo foi criado.
Este ano, Margarida iria encontrar novos sentidos na travessa-cavalinho.
Pô-la-ia, vazia e em destaque, no centro da mesa natalícia.
Talvez as crianças, ao vê-la despojada de qualquer conteúdo, perguntassem porquê.
E surgiria a melhor explicação, através de uma história que em breve seria escrita:
Era uma vez um cavalinho que, numa noite de Natal…
                                                                                               Maria Dolores Garrido

Nota - Este pequeno conto foi publicado, no ano transato, na coletânea Lugares e Palavras de Natal, da Editora Lugar da Palavra.
Enviei  o texto à Dra Maria do Rosário Pontes e vejo-o agora. com muito agrado, partilhado no Clube das Histórias.


terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Como não tenho tido tempo para escrever, envio uma carta



...e um postal!

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Patricia kaas - L'amour partagé

Jacques Brel - On l'écoute(ra) toujours

Como árvores e silêncios

                                                               Obrigada, IA, por tão bela partilha!
 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

"Daqui a bocado é noite"

Picasso
Quando eu era menina, ouvia a minha mãe dizer com frequência: "Vamos lá que daqui a bocado é noite". Como na infância e juventude o tempo passa a  uma velocidade mais lenta e saboreada, eu não entendia muito bem a mensagem tantas vezes seriamente repetida. Como era possível cair a noite quando a luz do dia se abria ainda tão alta e clara? 
Depois, a idade foi amadurecendo. Vieram as crianças, o trabalho, os afazeres vários, os sonhos, os desejos, alguns projetos. E, na correria dos dias, compreendia melhor a mensagem antiga de minha mãe: "Daqui a bocado é noite".
E as crianças iam viajando na idade que sempre amadurece. Também elas com trabalho (felizmente!), com afazeres vários, com sonhos, com desejos, com projetos...  Só que não oiço dizer "daqui a bocado é noite". 
O ritmo e o aproveitamento dos dias alargou-se. Mau era se assim não fosse. Aqui no norte de Portugal, pelas seis horas, do tempo a que chamamos tarde, já é noite. Em Londres, pelas quatro da tarde, já o céu escurece. E o sol esteja ou não escondido, há muita coisa ainda a fazer. No meu caso, trabalhos para corrigir, aulas para preparar, relatórios a fazer, (tantos) prazos apertados a cumprir, mails para ver... E ainda (felizmente!) alguns sonhos, alguns desejos de caminhar por outros pequenos que também alimentam a alma dos dias.
Enquanto a vida vai passando a uma grande velocidade.
E quando nos damos conta, vemos que "Daqui a bocado é noite".

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

domingo, 15 de novembro de 2015

"Liberté" Paul Eluard

"J'écris ton nom"


Delacroix
Liberté
Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom

Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom

Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom

Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom

Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom

Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom

Sur l’absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom

Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.

Paul Eluard


Sob os céus das cidades

São belas as cidades com muita gente a povoá-las em liberdade.
Por que se transformam em lugares de terror? De medo? 
Sob os céus das cidades há amores, amizades, natural cumprimento de obrigações, busca legítima de prazeres...
Atualmente, são cada vez mais belas as cidades. Como o Porto, Lisboa, Paris, Londres...
E as cidades ficam ainda mais belas com flores. Que se tornam dolorosas quando se reúnem para homenagear os mortos em lugares improváveis, onde, de pleno direito, procuravam vida.
Sob os céus das cidades há muita luz, mas demasiada sombra. Céus limpos, mas com pesadas nuvens iminentes. 
Ecoam belas vozes e gargalhadas que, daí a instantes, se transformam em gritos de fuga arrastada até ao abismo.
E pareciam tão belas as cidades.

Tantos mistérios sob os céus das cidades!



quinta-feira, 12 de novembro de 2015

"Não fala política"???