sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A velha que tinha cinco gatos



 
Cybele Chaves


Era uma vez uma velha que tinha cinco gatos. Percorriam-lhe a casa de lés a lés. E por que não? Eram da casa e como se fossem da família. Entendiam tudo: o bom humor da dona e também os momentos de má disposição que também aconteciam. Não eram muito frequentes, mas a velha ralhava-lhes às vezes quase sem razão, porque não o podia fazer com os políticos nem com os familiares que poucas vezes a visitavam. Se dissesse alguma palavrita mais azeda, então é que nunca viriam.
 A meio da manhã e ao fim da tarde, arranjava sempre umas horinhas para ler. Às vezes, dormitava e deixava cair livro das mãos, já enrugadinhas, mas voltava a abri-lo sem nunca se esquecer da página, porque as palavras lidas eram como se as ouvisse pronunciadas.
Andava a ler o primeiro volume de Os Gatos de Fialho de Almeida. O último livro que tinha lido tinha sido Cão como nós, um livro de contos de Manuel Alegre. Requisitar livros na Biblioteca Municipal era um dos seus grandes prazeres.
Depois de tratar dos gatos, saía quase sempre no início da manhã. Gostava de caminhar um pouco, de ver as pessoas habituais, de entrar no café e sentir o cheiro do pão com manteiga, de ir ao mercado para ver as cores dos frutos e hortaliças…
Ah, também gostava de ouvir rádio enquanto estava em casa. Fazia-lhe lembrar o conto “Sempre é uma companhia” de Manuel da Fonseca que também já tinha lido.
Até os gatos já se tinham habituado à música e às palavras através da rádio. A pensão de sobrevivência era baixa, a reforma também, mas ia dando para pagar a água, a luz, o telefone, os medicamentos, os legumes, um peixinho de vez em quando.
Um dia, chegou a casa com o saquinho de compras habitual. Pousou tudo, guardou o que tinha a guardar e preparava-se para a leitura do fim da manhã. Ligou o rádio e logo ouviu a notícia de que em cada apartamento só poderia haver quatro gatos.
A velha, que tinha cinco gatos, sempre se habituara a levar a sério o que ouvia, porque achava que palavra dada devia ser cumprida. Às vezes, desconfiava e apetecia-lhe não acreditar nem levar a sério, mas era difícil mudar depois de velha. E não velhinha, como detestava ouvir de si própria. Só poderia ter quatro gatos? Dos cinco, qual teria de afastar de casa? Como seria possível se eram como filhos de quem os pais não são capazes de se separar?!
Até sentiu uma dor no peito quando ouviu a notícia. Olhou para os bichanos e começou a chorar. Nem conseguia ler nem concentrar-se. Era doloroso pensar que gato teria de abandonar o seu apartamento.
Não conseguia escolher. Resolveu até adiar a decisão, dizendo a si própria que o tempo se encarrega de trazer soluções.
Ora, no dia seguinte, a velha saiu para o seu passeio matinal e cruzou-se com outra velha que vivia numa casa grande e com quintal e era generosa para com os animais, mais até do que com as pessoas. Pararam, afastaram-se o mais possível da rua, onde passavam carros nervosos e apressados, e começaram a conversar. Daí a alguns minutos, um dos gatos já teria para onde ir: para a casa grande e com jardim.
Quando a velha que tinha cinco gatos chegou a casa, olhou-os e, embora lhe custasse muito, escolheu um: o mais robusto e brincalhão. Saberia defender-se melhor do que os outros. Tinha ficado acordado que iria lá visitá-lo de vez em quando.
Passados dias, a velha, trémula, foi buscar a caixa que utilizava para levar os gatos ao veterinário. Tentou enganá-lo com biscoitos, mas o bicho não queria entrar e mostrou os dentes zangados como um pequeno tigre. A velha esteve quase a desistir, mas teve medo que lhe levassem o gato de casa e assim saberia ao menos onde ele estava.
Quando ouviu a campainha da casa para onde estava a ser levado, o gato começou a agitar-se e logo a velha abriu a tampa para o acalmar. De repente, o gato mexeu-se tanto que a caixa caiu e o bicho desatou a fugir na direção da sua casa de sempre. Como não estava habituado a andar na rua, perdeu o tino, não encontrando a direção certa e eis que se ouve uma travagem de um carro, que logo retomou a marcha, deixando atrás de si o gato… já morto.
A velha gritou, chamou por alguém e apareceu um homem dizendo que era normal porque todos os dias ali morriam gatos. Ofereceu-se para o retirar da rua, mas de certeza, afirmava ele com fria segurança, nada havia a fazer. O melhor era a senhora ir para casa e esquecer o assunto.
Quando a velha chegou a casa, nem podia falar. Nem chorar. Sentou-se a olhar em silêncio os quatro gatos que restavam. Um aninhou-se aos seus pés, outro sentou-se no colo, outro nas pernas e o outro foi apoiar-se no peitoril da janela, olhando para a rua. Pousado, junto da janela, estava o livro de Fialho de Almeida, servindo para o gato ficar mais alto e observar melhor a rua.
Nesse dia, a velha morreu. Os vizinhos repararam porque deixaram de a ver nas manhãs  seguintes. Os gatos, à janela, pareciam chamar por alguém.
As vizinhas ainda falaram dela durante uns tempos, parando, respirando fundo e dizendo coitada muitas vezes. Foram elas que levaram os quatro gatos para a casa grande e com quintal.
Quanto à velha, nada mais havia a acrescentar: era velha, era pobre e tinha-se cumprido a lei!

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mar, sempre o mar


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Quem pergunta...


Durante muitos anos, fui professora de francês.
No início de um ano letivo, numa das primeiras aulas, uma aluna perguntou-me:
- Como se diz dióspiro em francês?
Fiquei sem resposta porque, de facto, não me lembrava ou não sabia.
Disse-lhe que não podia responder, mas que, na aula seguinte, lhe diria.
Resposta dela quase imediata:
- Todos os anos pergunto como se diz dióspiro em francês e até agora nenhum professor me soube responder!
É claro que fiquei com menos vontade de procurar a palavra no dicionário para, no dia seguinte, alegremente, a informar.

Hoje lembrei-me desta peripécia, quando vi os dióspiros no prato e ouvi o ministro da Educação a afirmar que quer que os professores do Ensino Básico se submetam a mais exames. É um pouco como a aluna que atira a pergunta para ver a reação.
Ou será que em comum existe apenas o tempo dos dióspiros?

sábado, 26 de outubro de 2013

Branca Flor na Biblioteca





O primeiro texto referido na apresentação do livro Branca Flor:

Biblioteca Municipal, 26 de out. 2013

Muito obrigada, Clementina, pelo convite que me fizeste para estar aqui e parabéns pela publicação do teu livro Branca Flor.
Saúdo também a mesa pela amizade que nos une e pelo gosto comum da leitura e da escrita, assim como cumprimento todos os presentes.
 Acrescento que é sempre um prazer estar aqui na Biblioteca Municipal de Gondomar.
Há mais de 20 anos que oiço falar desta história.
Comecei a ouvir falar dela quando as minhas filhas andavam na escola primária e a minha filha mais velha era aluna da Clementina.
A Ana chegava a casa e dizia com ar feliz: hoje a Clementina contou mais um bocadinho da história do Manuel.
É curioso que tenho memória de ter ouvido mais vezes o nome de Manuel do que de Branca Flor, apesar de ser esta personagem feminina que encontra muitas soluções para as dificuldades que ocorrem a cada passo.

E eu, que também sempre gostei de ouvir e ler histórias, ficava interessada pelo reconto que me ia chegando, através da minha filha, sendo sempre realçado o modo de contar da professora.
Mais tarde, durante uma viagem, que fizemos com as nossas famílias, recordo-me de ouvir a Clementina contar a história às crianças, enquanto seguíamos num percurso longo de autocarro. E nós, os adultos, ficámos calados, ouvindo a história, assim como os outros viajantes dos lugares  próximos.
Foi, portanto, com muita alegria, carinho e emoção que ouvi da Clementina que ia publicar Branca Flor e quando vi a história escrita, ilustrada e em livro.
Por estes dias, falando com as minhas filhas sobre a narrativa, passados mais de vinte anos, vejo que se mantém o encantamento pela forma como a história de Manuel e Branca Flor era contada na sala de aula ou noutros contextos. As palavras encantatórias faziam com que os ouvintes acompanhassem, em imaginação, o jovem casal através de montes e vales à procura de soluções para vencerem os obstáculos que, malevolamente, iam surgindo. A viagem imaginária ainda hoje continua.
E muitos alunos da Clementina foram ouvindo, ao longo dos anos, a história, por certo com o mesmo entusiasmo e sedução.
 
 Apesar de eu não ter conhecido Diamantino, que deu origem à divulgação deste conto, quase o imagino a contar a história de Branca Flor, enquanto Clementina, ainda menina, a escutava com interesse e atenção.
A referência a esse homem, de pouca instrução, pode ser também uma homenagem a muitos contadores de histórias que vivem de forma anónima, mas que vão deixando boas sementes pelos caminhos por onde passam.
 Crianças que ouviram a estória de Branca Flor estão cá hoje. Alguns já não são meninos e histórias como estas ajudaram, com certeza, a formar a sua personalidade.
As boas histórias, contadas oralmente ou por escrito, também aproximam as pessoas e convocam humanos sentimentos.
A vida uniu Manuel e Branca Flor e a sua história reuniu todos os que aqui estamos.
Para escrever o seu texto, a Clementina teve de escolher e cuidar das palavras, mantendo, no entanto, a vivacidade e o ritmo da tradição oral. As belas ilustrações completaram a obra de arte à qual agora todos temos acesso.
Neste momento, só me resta agradecer, mais um vez, o convite para estar aqui e, sobretudo, poder ler e ouvir a história em qualquer altura.  
Parabéns à Clementina pela escrita de Branca Flor; a Aurélio Mesquita pela ilustração; ao João Carlos, da Editora Lugar da Palavra, pela publicação.
Boas leituras e muito obrigada a todos.
DG



Branca Flor de Clementina Sousa

Hoje, será apresentada, na Biblioteca Municipal de Gondomar, pelas 16 h, a história Branca Flor que a autora foi contando, ao longo de diferentes gerações, aos seus alunos.

A história, de tradição oral, tem, agora, a forma escrita. E bem escrita.

Para além do texto e das ilustrações, o (re)encontro de muitos, a quem tinha sido contada (também) esta história, será outra mais-valia.