quinta-feira, 16 de maio de 2013

A Poesia Vai


 Júlio Resende


 A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?»    E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


Manuel António Pina, in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde", 1974


Nota:
Peço desculpa  porque o título do poema estava errado: "A Poesia vai acabar".
 Obrigada, IA, pela atenção. Como dizes, realmente, nada acontece por acaso. A gaffe deve querer dizer, por certo, que a Poesia vai... continuar!

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Não tem escolha

 
Imagem da net


A ele não valia a pena perguntarem-lhe o que queria ser quando fosse grande. A resposta, quisesse ele ou não quisesse, só podia ser uma:
— Rei.
Tinha de ser. Pois se ele era príncipe, filho único de um senhor rei, que outra coisa, profissão ou destino podia caber nos seus projetos de futuro?
Pensando nisto, o príncipe, que não tinha vontade nenhuma de ocupar o trono dos seus antepassados, entristecia.
Uma vez, ouvira o jardineiro dos jardins reais queixar-se:
— O meu filho, que eu gostava tanto que fosse jardineiro como eu, diz que não tem vocação para a jardinagem.
Se ele dissesse o mesmo (isto é, o equivalente!), o que é que aconteceria? Encheu--se de coragem e disse. O rei, que era um homem compreensivo, respondeu-lhe:
— Meu filho, eu, quando tinha a tua idade, queria ser arquiteto, mas o teu avô deixou-me esta obrigação, o que havia eu de fazer?
Por sinal que era um rei muito dado a construções. Se queriam vê-lo feliz, mostrassem-lhe projetos de obras públicas, hospitais, escolas, novas cidades. O rei ficava encantado, dava opiniões, discutia com os arquitetos e os engenheiros como se fosse um deles.
— Se não tivesses de ser rei, o que é que gostarias de ser, quando fosses crescido? — perguntou o rei ao príncipe.
— Gostava de ser veterinário — respondeu o príncipe.
— Não vai ser fácil. Um rei veterinário não é muito comum. Há casos de reis--soldados, de reis-marinheiros, de reis-músicos, mas de reis-veterinários não tenho ideia. No entanto, vou pensar no assunto.
Era um bom pai e um bom rei. Em segredo, começou a projetar um grande jardim zoológico. Desenhou tudo muito bem desenhado, como se fosse um arquiteto. Quando tinha a obra toda projetada, estendeu os rolos dos projetos diante dos olhos do filho e disse-lhe:
— Ficam ao teu cuidado, para que tu construas o jardim, quando fores rei.
— Mas o pai podia mandar construir agora — disse o príncipe.
— Quero que fique à tua responsabilidade. Quando eu morrer, deixo-te o reino e estes projetos, para que te ocupes deles.
Assim sucedeu. O príncipe tornou-se rei. Não tinha alternativa. Uma vez coroado, dedicou-se com entusiasmo aos trabalhos de governação. Mas com mais entusiasmo se dedicou a levantar o jardim zoológico, que, uma vez pronto, maravilhou o mundo.
Ao jardim deu o nome do senhor rei seu pai, que tinha querido ser arquiteto.

António Torrado
www.historiadodia.pt

terça-feira, 14 de maio de 2013

Amor como em Casa


Amadeu Souza Cardoso

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. 

Faço de conta que não é nada comigo. 
Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Manuel António Pina, in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"

domingo, 12 de maio de 2013

"Os Cofres das Histórias"



Já me habituei a receber, semanalmente, com curiosa alegria, as histórias em português e em francês dos Contadores de histórias e que partilho, muitas vezes, neste meu blog.

Contactei, pela primeira vez, há uns cinco anos, com este trabalho fantástico de divulgação de histórias. Fi-lo através de ações de formação que frequentei, dinamizadas pela Professora Maria do Rosário Pontes, na Faculdade de Letras do Porto.

Recordo os títulos das Ações: Gostas de ler? Eu também não!
 Livros: Caminhos de Paz.

Estas Ações marcaram-me pelas descobertas que fiz através de (quase sempre) pequenas histórias: é possível aprender/ensinar a gostar de ler, a pensar sobre valores humanos essenciais, a ser cativado pelo formato; a olhar para as pessoas e para as coisas de forma mais despojada e atenta, a encontrar também motivos para a escrita e outras leituras…

Os Contadores de Histórias  -  es@contadoresdehistorias.com -  enviam os contos para diferentes continentes e em diferentes línguas: português, francês, inglês, espanhol e alemão.

O grupo dinamizador dedica-se, sem protagonismos, ao trabalho de seleção de textos, tradução, adaptação, ilustração, formatação e envio das histórias por e-mail.
Basta enviar o endereço e todos podem receber as histórias nas línguas que forem indicadas.

Num mundo em que diariamente abundam os maus exemplos, felizmente existem oásis para não perdermos a esperança de que é possível tornar o mundo melhor e mais belo.




Poema em P

Dois dos muitos textos dos Cofres 
de Contos do Clube das histórias
(para todas as idades)
POEMA EM P
A Paula
pede a paz.

Os pardais
os peixes
os pandas
as plantas
as pedras
pedem a paz.

Os palhaços
os polícias
os pintores
os padeiros
os poetas
pedem a paz.

Os prédios
as praias
os pastos
as pontes
as piscinas
pedem a paz.

O planeta
pede a paz.

Políticos,
não ponham na panela
a pomba da paz.

Luísa Ducla Soares

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O casaco camuflado ou a menina guerreira



Para a Crisa

Chega à aula uns minutos depois do toque de entrada. Traz vestido um casaco camuflado. Entra esbaforida. A professora faz um comentário.
- Vieste da  guerra?
- A menina cora. E sorri.  Com uma expressão de querer responder para mostrar a sua irritada contrariedade. Nisto, cai-lhe o telemóvel do bolso. Pensa:  um mal nunca vem só.
A professora retoma a aula: estrutura externa e interna de Os Lusíadas.
Já sossegada, a menina guerreira escreve o que está a ser registado no quadro.
Os olhos viajam entre o quadro e o caderno. Quase nem ouve o que é dito. Ora, que pergunta: vieste da guerra?! Sim, vim, apetecia-me dizer. A professora é que já passou a adolescência há muitos muitos anos, senão devia saber que um adolescente tem de enfrentar muitas guerras. Não é por isso que uso o casaco camuflado, mas sinto-me em guerra, sim, senhora, e depois? Não é fácil organizar as ideias sobre a escola, sobre as pessoas que amamos, sobre as pessoas de quem gostamos, sobre as pessoas de quem não gostamos… Se isto não é guerra, o que é então?
Apaixonei-me pela poesia de Fernando Pessoa. A paixão foi avassaladora e ando sem vontade de estudar outras coisas. Eu gosto do Felizmente há luar e do Memorial do Convento (parece que estou a ouvir a professora: meninos,  sublinhem o título das obras!), mas custa-me concentrar-me. Quando me sento para fazer os trabalhos, tenho fome, o telefone começa a chamar-me, quero saber as novidades do facebook, preciso de falar com a minha mãe... e também me apetece escrever, mas sobre outras coisas. Falar de mim e de pessoas especiais. Sinto tanto para o pouco tempo livre de que disponho!
E para as guerras com que me debato. Algumas eu calo, outras não consigo. Fico ferida com coisas que me dizem. Quem não sente não é filho de boa gente. Refilo muitas vezes porque acho que tenho razão. Ou talvez não, nem sei. Vejo-me ao espelho e gosto do meu rosto. Dizem que tenho um sorriso bonito e concordo, embora pareça vaidade. Já publiquei dois contos em livros da escola. Os trabalhos foram a concurso e foram selecionados. Não tive um primeiro nem segundo prémio, mas o júri reparou no meu trabalho. E foi muito fixe.
Mas muito mais fixe seria se eu não estivesse sempre em guerra. E não é com os outros, é preciso que se diga, é comigo própria. Gosto de me rir, mas também preciso de chorar. Não sou só eu que sou assim, mas não o consigo esconder!

No final da aula, fecha o caderno, veste o casaco camuflado, aproxima-se da professora e diz sorridente: afinal, vou à visita de estudo!