sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Nome

Se eu fosse gramática, e pudesse escolher a classe das palavras, queria ser nome: próprio, comum, colectivo…

Mas nunca abstrato. Queria ser nome concreto. Embora saiba que há nomes mais ou menos abstratos. Ou mais ou menos concretos. Ou que às vezes são abstratos e outras vezes são concretos. É o caso de justiça, de amor, de reconhecimento… e tantos outros. Às vezes vêem-se e outras vezes esfumam-se de tão invisíveis.

Não gostava de ser pronome para não fazer sempre as vezes de. Seria menos eu para ser alguém que eu representaria. Também não gostava de ser adjectivo. É uma classe que dá jeito mas muitas vezes é poluidora.

Também não me importava nada de ser verbo. Pronunciado sem erro. Nem esses a mais por descuido, por desconhecimento, por analogia, por pressa, por falta de amor. No caso de ser verbo, queria ser um tempo simples, não composto. E de preferência do indicativo. Podia ser o presente ou o futuro. O passado tem muitos tempos e também diferentes modos. Demasiados até. Para conjugar todos os tempos do passado, é preciso ter presentes muitos desses tempos. E não dá jeito nenhum, porque se misturam com presente, confundindo-o.

Determinante também não queria ser. Costuma ser breve e é muito impositivo. Restringe como qualquer definição.

O advérbio tem um papel importante. Quando está presente, pode modificar. E em muitos casos para melhor. É como entrar para deixar marcas. Também tem a vantagem de não ser obrigatório. Tanto está como não está. Pode tirar-se ou voltar a pôr-se de novo.

Sim, vendo bem a gramática, prefiro o nome.

Por isso te chamo. Na chama das palavras em agosto.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Londres com Verde

Estão ainda muito vivas as imagens de vandalismo em Londres. Diz quem sabe que o principal alvo eram as lojas de novas tecnologias. Diz quem viu que os autores eram jovens, muito jovens e que as redes sociais ajudaram à organização do saque.

Partilho hoje um texto que escrevi, há uns dois anos, depois de ter estado uns dias em Londres.

Na altura, foi publicado no blogue Terrear, de José Matias Alves.


Cheguei a Londres num fim de tarde cinzento de Sexta-Feira Santa. Quando entrámos em casa, abracei-te mais uma vez. Há dois meses que não nos víamos.

Reparei no vaso de flores matizadas que tinhas junto à janela da cozinha. Deitei um pouco de água no prato onde estava a planta. Para ir bebendo devagarinho.

Espreitei pela janela que ficava por cima do lava-loiça. Por onde quase entravam ramos de uma árvore alta, antiga, de flores alvas e esparsas.

E do alto do terceiro andar, avistei os pequenos quintais lá bem no fundo. Mais verdes do que tratados. Alguns com baloiços e bancos que o frio, a névoa e a chuva iam entalando entre a erva que o Inverno agigantara.

Na rua, os autocarros vermelhos subiam e desciam a toda a hora. E também os carros. E os táxis de toda a discrição e de todas as publicidades. E as ambulâncias. E os carros da polícia. E as motas. E as bicicletas que pareciam fios finos a riscar o pisado pavimento durante as poucas trevas do ruído.

Que bom passar uns dias contigo, disse-te eu. E tu sorriste.

Acrescentei que gostava de dar um passeio no parque de que às vezes falavas. Fomos. Nesse dia, percorrendo a rua arborizada, passámos por quarteirões com casas de telhados recortados à mesma altura. Muitas delas de tons ocre. Nos pequeninos jardins, estendiam-se abundantes flores pequeninas e de várias cores. Floriam baixinhas, frescas e formosas ao lado dos degraus que levavam à porta de madeira pintada de cores diversas: vermelhas, azuis, rosa, verdes... Em contraste harmonioso.

            Passámos por um pub. Entrámos. Era hora do almoço. A um canto iluminado e sossegado, um homem alto lia um livro e bebia uma cerveja. Avermelhada. Escolhemos fish and chips. E também salada de rúcula. Verde. Com um fio de azeite dourado a que chamaste óleo. E que motivou o riso porque às vezes espreito as tuas palavras a ver se utilizas, sem contar, algumas expressões da língua inglesa. E ainda comemos tarte de maçã. De perfume quente e macio sabor. Ouvia-se jazz. Era Billy Hollyday em tom cúmplice. Lá fora, sob umas réstias de sol e ar frio bebiam-se pints entre gargalhadas estridentes.

Atravessámos, depois, o parque de relva cortada de vários tamanhos, consoante a função. E havia largos e ocos troncos de árvores que o tempo foi esburacando, enfraquecendo e tombando. Nem faltara a ventania. Diferentes arbustos orlavam caminhos desenhados para o uso de bicicletas. E de outros que as proibiam com inscrições pintadas no chão. Para que a corrida, a marcha, o passeio se fizesse de forma mais serena, livre e sem desnecessários desvios.

E assim caminhávamos parque fora. Falando do que víamos. Do que sentíamos. Do que sabíamos. Eu dizia que era bom que no nosso país houvesse mais espaços verdes, onde se pudesse serenar o corpo e fortalecer a alma.

Regressámos de metro. O centenário underground que fecha estações durante muitas noites e em frequentes fins de semana. Para obras de reparação. Sentámo-nos. Bem perto de nós, um grupo de homens negros de carne farta e firme voz falava de actores de filmes musicais. Uma inglesa de pele leitosa olhava, altiva e distante, o túnel que desaparecia veloz, rente e escuro. Ao lado, duas adolescentes partilhavam o i-pod sorrindo com gritinhos histrionicamente adolescentes. Uma delas tirava da carteirinha o blush, o lápis dos olhos e ía maquilhando o rosto da companheira, com gestos miudinhos para que o trabalho de embelezamento fosse eficaz. Saíram, depois de uma delas se ter visto ao espelho, tirado da mesma carteirinha. Onde também guardaram o i-pod.

Olhámo-nos e sorrimos.

Também perto, um jovem asiático lia, interessado, um jornal enquanto segurava uma mala de viagem entre os joelhos. Junto à janela, um par abraçava-se, procurando-se pela boca.

Quando regressámos a casa, subimos devagar as escadas forradas a alcatifa que amortecia o som dos nossos passos. Cheirava a torradas acabadas de fazer.

Tu tinhas uns trabalhos urgentes. Em breve, estavas ao computador com os teus dedos fininhos a clicar no teclado e os olhos nos gráficos que analisavas. E o teu sorriso abria-se claro e juvenil.

Peguei n’O livro de Cesário Verde que levara comigo. E reli:

«Eu tudo encontro alegremente exacto

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,

e tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto».

Com O livro de Cesário Verde aberto, eu olhava a janela, donde se entrevia o céu cinzento, e, através dela, recordava a existência de muita coisa simples e bela

« E que, sem ter história nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarela».

Após a Páscoa, na despedida, fechando a mala, reabri a habitual e comum cartilha maternal:

Filha, fecha bem a porta. Não te esqueças de comer sopa. Verde. Sempre.

Vamos numa lambreta ao fim da tarde?


Cada vez me convenço mais de que são grandes as pequenas coisas que no dia a dia nos dão prazer. Como tomar um café, em manhã de verão, numa esplanada à beira-mar; caminhar enquanto a praia não se adornou ou já depois de estar liberta...

Um dos prazeres de férias poderá ser, também, em fim de tarde quente , beber um fino bem fresco acompanhado de tremoços e amendoins. Não sei se está generalizado o nome, mas, numa esplanada de Mindelo, um copo pequeno de cerveja é uma “lambreta”.

Como também é bom jogar com as palavras, perguntei há dias: Vamos numa lambreta ao fim da tarde?


A sala de Camilo


Era uma tarde de verão. A luz entrava pela janela batendo, quente, nas cortinas de linho branco. A sala estava sossegada. Ele sentou-se no sofá e olhou demoradamente a estante com os livros escritos por Camilo Castelo Branco.

Camilo, um belo homem de mil paixões. Ousado e audaz. Criativo e concretizador. Como gostava de o ter conhecido pessoalmente. De poder convidá-lo a sentar-se na sala à qual deu o seu nome. De ouvi-lo respirar. De partilhar com ele muitas histórias. De dizer que o amava como um ser ama os seres que admira.

Desde novo foi cimentando a paixão por Camilo. Não muito habituado a receber ou a dar-se prendas, ia à Feira do Livro, no Porto, e comprava romances desse autor. Era o mais belo presente anual. Numa das primeiras folhas, escrevia o nome da mulher que amava com letra grande e bem desenhada. Punha também a data, esticando as barras que separavam o dia, o mês e o ano. Os livros seriam pertença dos dois.

Se Camilo o tivesse conhecido, talvez escrevesse um romance sobre ele. Para além de assunto, teria uma mesa e um cadeirão.

A sala de Camilo


Era uma tarde de verão. A luz entrava pela janela batendo, quente, nas cortinas de linho branco. A sala estava sossegada. Ele sentou-se no sofá e olhou demoradamente a estante com os livros escritos por Camilo Castelo Branco.

Camilo, um belo homem de mil paixões. Ousado e audaz. Criativo e concretizador. Como gostava de o ter conhecido pessoalmente. De poder convidá-lo a sentar-se na sala à qual deu o seu nome. De ouvi-lo respirar. De partilhar com ele muitas histórias. De dizer que o amava como um ser ama os seres que admira.

Desde novo foi cimentando a paixão por Camilo. Não muito habituado a receber ou a dar-se prendas, ia à Feira do Livro, no Porto, e comprava romances desse autor. Era o mais belo presente anual. Numa das primeiras folhas, escrevia o nome da mulher que amava com letra grande e bem desenhada. Punha também a data, esticando as barras que separavam o dia, o mês e o ano. Os livros seriam pertença dos dois.

Se Camilo o tivesse conhecido, talvez escrevesse um romance sobre ele. Para além de assunto, teria uma mesa e um cadeirão.