Quando o dr Esticadinho saiu da camioneta, deu logo de caras com o Nequita, bem visível ao longe, com os botões da camisa apertados até ao pescoço, cabelo com brilhantina e risca vincada, calças pretas, uma grande cruz ao peito e um missal preso na mão que fechava para dentro junto ao coração.
- Então, Nequita, o que se passa?
- Preciso de falar consigo, mas sem ninguém à nossa volta.
- Isso aqui é mais complicado, mas diz lá, rapaz.
Nequita, olhando-lhe a nódoa da camisa, perguntou:
- O que lhe aconteceu? Foi comer alguma francesinha e descuidou-se?
- Nada disso, mas diz lá o que precisas porque tenho mais que fazer.
- E se fôssemos caminhar um pouco para conversarmos mais à vontade?
- Caminhar? A esta hora e com a camisa neste estado?
- Vamo-nos sentar então aqui no muro e assim ninguém nos ouve.
- Mas é segredo?
- Tem a ver com coisas do céu, mas também da terra!
- Diz lá, então, enquanto tenho paciência.
- Hoje ouvi o Sr padre falar de um livro e de famílias desavindas.
- Ó Nequita, deixa-te de palavras difíceis e de histórias e vai aos finalmentes.
- Tenho visto que a Sra Nilda anda desanimada e você nunca está em casa e, se está, está a dormir.
- E o que tens com isso? Ando cansado, rapaz, e a dormir também não faço despesa. Mas, vamos lá ver, Nequita, e se tu te metesses na tua vida a ler os teus missais e a passear a tua cruz?
- Você também tem a sua, que eu sei.
- Mas não ando a carregar com ela ao pescoço pra toda a gente ver.
Nequita parou uns instantes, olhou o chão, voltou a olhar para o dr Esticadinho e disse:
- Tem de falar mais com a Sra Nilda, dar-lhe mais atenção e também aos seus filhos.
- O que é que queres dizer com isso? Só não te chamo nomes nem te deixo a falar sozinho, porque tenho grande consideração pela tua madrinha, a Rosarinha.
- E que me tem ajudado muito e, por isso, vou seguindo este caminho que me vai iluminando e que sei que é o que ela quer para mim.
- Tiveste sorte. Muito mais sorte do que eu na vida. Pronto, era este o teu sermão? Então, adeus e amanhã continuamos.
- Sei que não lhe vou pôr a vista em cima, a não ser que eu vá ao Porto, à Casa do Sol.
- Ó Nequita, estás muito bem informado.
- Tudo se sabe e para a Sra Nilda é um desgosto.
- A minha mulher não é para aqui chamada. Se me fizeres outra espera como a de hoje para sermão e missa cantada, pensa bem no que te vou dizer, até o missal vai rebolar pelo chão.
- Vá, vá, então, mudar de camisa e lavar as suas máculas. Seja você a lavá-las porque a sujidade vem de si. E pense no que eu lhe disse.
Nisto, a Rosarinha saiu da mercearia, a que toda a gente chamava venda, e ficou a olhar para eles.