terça-feira, 2 de agosto de 2022

Dias de Londres - momentos

 

Hoje de manhã fui fazer uma pequena caminhada. Desde que tive covid pela primeira vez há dois anos, deixei de sentir os cheiros, a menos que sejam intensos como os desta manhã. Talvez fosse o vento a arrastar os aromas das árvores e das flores, enquanto folhas secas corriam rua fora, tropeçando nalguns obstáculos do passeio mas logo continuando.

Ao pequeno almoço, inventei uma história para a minha neta, porque ela demora muito tempo a comer. Lembrei-me da galinha dos ovos de ouro e disse-lhe que uma galinha da bisavó tinha posto um ovo de oiro. Ela acreditou e logo quis saber o que tinha dentro. Eu fui inventando até terminar num pássaro também doirado, mas que, para se alimentar, comia todo o ouro que encontrava, porque, como era doirado, andava à solta e tinha mais liberdade do que todas as outras aves da capoeira.

A minha neta continuava curiosa sobre o pássaro e se ainda existia.

Eu disse-lhe que um dia ficou azul, voou e deixou de ser visto, mas que, quem sabe, pode aparecer aqui em Londres.

No final, a minha neta disse o que eu não esperava ouvir: Gostei da história, avó, mas hoje não quero os cereais.

 

Como a mudança para esta casa é relativamente recente, ainda conheço pouco do que existe à volta. Da primeira vez que cá estive, havia mais receio da covid e julgo que nunca fui fazer compras, como gosto. Ontem, com algumas indicações da minha filha, aventurei-me. Era domingo e havia pouca gente na rua. E descobri uma igreja onde no próximo domingo haverá festa e vendas diversas. Fiquei curiosa. A minha neta já me disse que não pode ir porque tem uma festa de anos. Logo lhe disse: Clarinha, mas que agenda tão preenchida e ela sorriu com o seu olhar azul.

 

Hoje vou de novo à rua onde há lojas e supermercados. De regresso, quase sempre com fruta fresca e pão, venho pelo caminho a olhar os jardins das casas, quase todas da mesma altura, uns cheiinhos de flores, outros quase desertos de cores e perfumes. Também vejo pássaros. Abundam os melros e as pegas. Ainda não vi a senhora idosa do jardim mais colorido e bonito da rua, onde todo o bocadinho de terra é aproveitado para florir. Gostava de a conhecer. Bastava-me vê-la no meio do jardim a tratar das flores. Não deixaria de lhe dizer hello e de lhe sorrir.

Pela rua fora, vejo outra vizinha a arranjar o jardim. Olhou para mim como uma forasteira. Sorri-lhe mas ela não. Deve preferir as suas flores. Conheço casos assim.

 

Dias de Londres - também com Paddington at home


Vi, como milhões de pessoas, o sketch da rainha com Paddington, reconheci o boneco, mas pouco sabia dele. No museu da cidade de Londres, comprei o livro Paddington at the palace para a minha neta, li-o também e, passados alguns dias, vi um filme e fiquei a saber que o ursinho de chapéu vermelho, onde esconde uma sandwich de marmelada (compota de laranja), é oriundo do Peru. Foi criado por Michael Bond, autor inglês que nasceu em Newbury em 1926 e que faleceu em 2017, em Londres, tendo escrito durante uns sessenta anos, nomeadamente histórias protagonizadas pelo urso Paddington.

Paddington, que é também nome de estação de metro em Londres, é um boneco de que gosto pela sua natural curiosidade, verdade e inocência com que olha o mundo.

Criar um boneco com tal identidade e pô-lo sempre em situações novas e interessantes para um público tão diversificado é de criador genial. A forma como o ursinho anda por entre a multidão atrai o olhar e apetece segui-lo porque vão, de certeza, acontecer peripécias engraçadas e diálogos que parecem cair do céu como pingos da chuva.

No Jubileu da Rainha, até a soberana mostrou que achava graça ao boneco, como com graça acedeu a abrir a sua inseparável malinha,  em rábula muito bem disposta e bem apanhada.

Talvez se as figuras que influenciam o mundo, nem que fosse de vez em quando, se se ligassem com naturalidade ao mundo da imaginação, o mundo tivesse mais graça e fosse melhor.

E as pessoas sentir-se-iam mais pessoas e menos bonecos.

 

sábado, 30 de julho de 2022

Dias de Londres - o parque com realidade e ficção dentro

 

Depois da escola, a minha neta pediu-me que fôssemos ao parque. Como o pedido foi surpresa e pensei que vínhamos para casa, não lhe levei o reforço do lanche, embora saiba que vem sempre esfomeada. Fomos e, chegada ao pequeno parque (playground), deparei com um grupo de mães, muito divertidas, umas usando o hijab, outras vestidas à ocidental, mães de meninos da turma da minha neta que partilhavam gelados bem apetitosos em dia quente. Uma delas disse-me simpaticamente que já sabia pela filha que eu chegara de Portugal. Enquanto eu ia respondendo, sentia o desconforto de não ter nada para repartir e, a partir desse dia, passei a levar o lanche e alguns frutos para partilhar. 

Como o grupo de mães era extrovertido e o grau de compreensão do meu inglês é reduzido, sentei-me num banco ao lado que estava vazio. Fi-lo não só por saber que era a única avó, mas por não as conhecer como todas se conheciam, o que me impedia de ter um diálogo assim divertido e hilariante. Se é que consigo tê-lo mesmo em língua materna!

No parque estavam duas meninas também dos primeiros anos da primária. Uma acreditava que era fada - a fada arco-íris - a outra queria ter sucesso nos estudos porque só assim conseguiria entrar na escola do Harry Potter. Eram as duas boas alunas, gostavam de ir ao parque depois das aulas, de correr, de cantar e de fazer tudo o que achavam divertido. 

Com o decorrer do tempo, iam-se transformando, mas a convicção de que uma era fada e a outra iria para a escola de Harry Potter é que não mudava.

Um dia, numa aula, a professora referiu a distinção entre realidade e ficção, dizendo que, por exemplo, o mundo de Harry Potter era imaginário. Não existia na realidade. A menina que fazia o melhor que podia para um dia poder frequentar a escola do seu ídolo não podia crer no que ouvia. Foi como se o coração lhe caísse aos pés. Ficou séria e triste e teve de conter as lágrimas para não começar a chorar.

No recreio, desabafou logo com a amiguinha que se julgava fada, convencida de que a professora se enganara. A escola de Harry Potter existia, sim. Não tinha dúvidas. Achava que os adultos, apesar de conhecerem muita coisa, desconheciam muitas mais. A outra menina - a menina fada - segurou-lhe na mão e disse baixinho porque seria o segredo de ambas:

- Deixa lá, como sou fada, se a escola do Harry Potter for imaginária como disse a professora, vou torná-la real e assim já podes ir para lá.

    Passados uns segundos, ouviu-se mais uma gargalhada de uma das mães, mas não era sobre a conversa das meninas, porque ninguém a ouviu e, nessa altura, já andavam, felizes, de baloiço com outros meninos.

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dias de Londres - os arredores também podem estar no centro

 

Aqui em Londres, o tempo permite-me boas paragens. Mesmo que nós, adultos, estejamos em casa, o almoço é rápido e às vezes arranjado por cada um, consoante o trabalho no computador.

Respeito a necessária concentração e procuro não a perturbar para que o trabalho deles renda. É desse modo que leio, escrevo uma página do meu diário, vou às compras para a casa, para além das tarefas domésticas para que as coisas estejam organizadas e a vida deles mais facilitada enquanto cá estou. A meio da tarde, vou buscar a Clarinha à escola. O percurso  serve de caminhada e vou vendo os jardins floridos. Há um em que reparo sempre e às vezes até paro para me deliciar com a variedade e com as cores de flores. Quem trata dele é a dona da casa, uma senhora idosa e muito simpática. 

Há dias, num dos jardins de rosas de várias tonalidades, vi outra velha senhora sentada numa cadeira e a regar as plantas com a mangueira. Quase me chegava a água, sorri-lhe e ela desviou a mangueira, sorrindo-me também. Nesse mesmo dia, passei por um homem de muita idade que levava um jornal debaixo do braço que devia ter acabado de comprar. Imaginei-o a ler as notícias, o que será bem mais interessante do que estar a dormitar em frente à televisão com longos e impertinentes anúncios a calcitrins milagrosos.

Nessa mesma ida à escola, cruzei-me com outra mulher nada nova, muito magra, de passo muito rápido. Nem o rosto parecia querer mostrar. Mais abaixo, outro velho, de roupão,  estava com os cotovelos apoiados no portão, vendo quem passava. Olhei para ele e sorrimo-nos. Deve sorrir a todas as pessoas que olham para ele. 

Não poderei concluir que aqui só haja velhos, mas será possível dizer que a maioria dos velhos que vi pareciam gostar que olhassem para eles. Tal como em qualquer sítio.

Quando falo de Londres, logo me perguntam o que visitei no centro da cidade e às vezes tenho pouco a contar sobre isso, embora lá vá de todas as vezes que cá venho. Gosto muito do pulsar das cidades, de museus, de ruas de esplanadas e pequenas lojas, etc. Contudo, para mim, conhecer uma cidade também são os seus arredores, ver o que lá existe, cruzar-me com pessoas que lá vivem, etc. E, sobretudo, estar com as pessoas de quem fomos ao encontro.

Ou será que caminho para a fase da vida das pessoas com quem às vezes por estes dias me cruzei?

 

terça-feira, 26 de julho de 2022

Dias de Londres - com podcasts dentro

 

Hoje de manhã ouvi dois podcasts: A noite da má língua e Old friends.

No primeiro, foi longo o diálogo cheio de graça e ironia sobre o beijinho que o Marcelo deu na barriga de uma grávida; no segundo, os dois sábios, Sobrinho Simões e Júlio Machado Vaz, teceram muitas considerações sobre vida e obra da grande artista Paula Rego, falecida há pouco (quando puder, quero voltar à Casa das Histórias, em Cascais).

Entre imensas coisas muito interessantes, referiram o facto de a pintora-contadora de histórias ter saído de Portugal a conselho do pai, porque, na época, em Portugal, as mulheres não viviam em liberdade. A partir desse cenário, abordaram o tema do medo presente nalguns quadros da artista.

Apesar de eu não ter vivido nos primeiros anos em que ela viveu, reconheço que, mesmo depois, a educação se baseava muito em medos: sobretudo dos castigos de Deus, traduzidos em tempestades, catástrofes, etc. Havia que ter medo de tudo para que tudo se mantivesse. E palavras como submissão ainda me ferem o ouvido.

O apoio do pai corrobora uma ideia há muito cimentada em mim: a de que as pessoas que têm grande sucesso habitualmente tiveram ou têm alguém que lhes deu apoio e lhes mereceu confiança. Ou porque acredita nelas, ou porque lhes reconhece valor, ou porque está do seu lado, etc. 

Às vezes, basta um elogio sincero, um sorriso de empatia na hora certa, uma palavra para motivar para uma vida. Quando fiz a 4a classe, era necessário o exame de admissão aos liceus. A preparação era feita pela própria professora. Eu não iria prosseguir estudos, como a grande maioria das raparigas da turma, mas a insistência da professora para que não deixasse de estudar, prescindindo até da respetiva remuneração para me preparar para o exame, ficou-me para toda a vida.

 Chamava-se Gracinda e nós dizíamos D. Gracinda. Deve ter falecido há muito tempo, mas as suas palavras nunca me morrerão. Como uma old friend que, ainda que ausente e só vivendo em memória, nunca esquecerei.