sábado, 13 de julho de 2024

E foi quando Nilda viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.

 

Há mais de quarenta anos que Nilda não via Zeferino. Para dizer a verdade, lembrava-se dele muitas vezes, mas era casada e afastava essas ideias da cabeça. Ele era divertido e tinha um sorriso bonito e prazenteiro. Nilda sentia o amor que também a fazia sorrir. 

Dele, os pais de Nilda tinham gostado. Para mais, tinha posses e alguns estudos. Começaram a namorar andava ele na tropa, e o tempo era de guerra colonial. Em breve, foi mobilizado para Angola. Despediram-se com tristeza e já saudade. 

Com o passar do tempo, veio o vazio que ela não tinha aprendido a preencher.  Se havia o longe da vista, logo pensava no longe do coração que poderia levar ao esquecimento ou desamor.

Se nunca sentira amor vindo da família mais próxima, como podia continuar a ser amada por alguém que conhecera  não havia um ano e tão longe dela estava?

Simpático como ele era, em Luanda arranjaria facilmente outra namorada. Valeria a pena esperar por ele para ter uma desilusão? Para ser olhada com indiferença?

Trocavam aerogramas e cartas. Nilda queria juras de amor e, em vez delas, Zeferino contava ataques sofridos ou perpetrados, por obrigação, pela sua Companhia. Nilda ia-se convencendo de que Zeferino já não gostava dela. 

E de novo a ideia recorrente de que, se nunca se sentira amada pelos mais próximos, também não o seria por ele que estava tão longe. A par, vinha a culpabilidade que também a fazia sofrer.

Um dia, mandou-lhe uma carta em que usou e abusou do verbo amar, para ter provas de que ele gostava dela.  Ele respondeu-lhe que não compreendia a carta que, como dizia o poeta, era  ridícula e durante algum tempo não deu notícias. 

Nilda, insegura como era quanto ao amor dos outros, considerou a ausência de correspondência como prova de que o namoro tinha acabado. Recebeu ainda alguns aerogramas que nem chegou a abrir, convencida de que eram de desamor e era de amor que precisava.

Umas semanas depois, Augusto telefonou-lhe a convidá-la para um baile de garagem e ela aceitou, dizendo para si que era livre e fiel.

Muito tempo depois, soube que Zeferino tinha tido um grave acidente num ataque que tinham travado nos dias em que as cartas do verbo amar circulavam. Ficou sem palavras.

Agora, passados mais de quarenta anos, estavam próximos, na mesma tarde de domingo e no mesmo recinto de dança.

Apesar da grande dimensão do espaço, os seus olhares encontraram-se, Nilda sorriu-lhe, mas ele não, mantendo-se sereno no lugar onde estava.

Nilda foi ganhando coragem e abeirou-se de Zeferino.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Não, vou ao baile, como tinha decidido!

  

Não fazia ideia de como seria um baile de domingo à tarde e, quando chegou, ficou estupefacta porque havia mais gente do que pensava. Assim, até era melhor. Passava despercebida, ouvia música romântica ou divertida e via gente alegre à sua volta.

De repente, aproximou-se um homem de jeans apertados nas pernas magras e arqueadas e camisa às flores, também  muito justa. O cabelo parecia molhado e penteado para trás. Num braço, uma tatuagem com um coração atravessado por uma seta e onde se podia ler Amor de mãe.

Corou e recusou gentilmente  o convite para dançar.

- Para já não, só se for daqui a bocadinho.

Ele afastou-se com o descontentamento triste da rejeição, alisando mais o cabelo com as duas mãos. 

 Muito próximo dela estava um casal que meteu conversa por ela ter recusado o convite e por estar a sorrir sem eles saberem porquê.

Ela não contou, mas a situação fez-lhe lembrar a história da carochinha que tantas vezes tinha contado aos filhos. Só não sabia que animal podia ter sido afastado. Talvez o galo, ou talvez não. Porém, se cantasse, enchendo o peito de ar, ainda saltavam os botões da camisa. Ou seria um gato vaidoso? Dos que sobem ladinos para o telhado e ficam a espreitar? O João Ratão não seria, porque desistiu logo após a recusa do convite e nem um sorriso deu.

Estava com estes pensamentos e com cara de carochinha à janela não à espera de casar mas de dançar, quando viu passar um grupo de folgazões em fila e a cantar ‘Lá vai o comboio…’ . Levantou-se depressa e, sem pensar muito, encaixou-se na fila cantante e dançante. E foi quando viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.


Nilda já não dançava desde o tempo de namoro. Nesse tempo, adorava os bailes de garagem. Na memória, lá estava sempre um velhinho e pequeno gira-discos, que às vezes arranhava o disco e fazia parar a dança. E, nas capas dos discos, lá estavam os ídolos:  a Rita Pavone, o Nelson Ned, o Adamo, o Gianni Morandi, a Francoise Hardy, o Elvis Presley…

Muitas vezes, o espaço era pequeno e o calor apertava nos abraços dos slows, ou nos twists desajeitados e rodopiados.

Augusto ia de fato e gravata. Naque tempo, já gostava de fato claro, mesmo no inverno, e os sapatos brancos também contavam com a sua predileção. A mãe de Nilda, que sabia muitos provérbios, disse um dia de mau humor: Sapato branco em janeiro, sinal de pouco dinheiro.

Nilda sabia bem do desamor dos pais por Augusto, mas ele era tão sedutor e meigo a dançar que a fazia esquecer de tudo o resto. Os dois corpos encaixavam-se e confortavam-se.

Às vezes, pensava: mas a vida não é só viver abraçada a dançar. De facto, havia coisas nele de que não gostava, como fumar e cuspir para o chão, mas o que prevalecia eram os carinhos nos bailes e um dia ele até lhe disse: vou fazer de ti uma princesa, o que a fez  esquecer as conversas que ele não sabia manter e de que ela gostaria muito.

Os pais não gostavam dele, mas ele parecia assegurar-lhe uma vida com beijos e abraços que em casa nunca tinha tido. E que tanta falta lhe haviam feito. O resto viria por acréscimo.

Veio o casamento e, afinal, a prometida princesa nunca o seria e ele, por sua vez, achar-se-ia um príncipe de um reino pobre no qual sentia o direito e poder de mandar.

Tudo isto pensava Nilda enquanto se dirigia ao baile de domingo numa tarde de sol. A meio do caminho, pensou voltar para trás. Vir para casa, ligar a televisão e passar a ferro. Ainda se levantou do assento da camioneta. Não, disse para si própria, vou ao baile, como tinha decidido. Nada me fará recuar. E voltou a sentar-se já sem hesitação.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

De repente, era a campainha a tocar em desespero!


 Era Nilda que tocava aflita. 

- Dona Rosarinha, dona Rosarinha, abra e ajude-me, por favor.

- O que se passa, Nilda, o que se passa?

- O meu Augusto está muito mal. Tem de vir a ambulância, mas o meu telefone está avariado

Passados uns minutos, chegava o 112 e a maca ia até ao tanque, onde o dr Esticadinho tinha caído quando foi pôr a camisa com a nódoa de molho. Nem chegou a mergulhar a camisa na água com detergente, deu-lhe uma coisa - como disse Nilda - e caiu redondo no chão - como acrescentou ao enfermeiro.

Chegou ao hospital, com a sua calça branca suja e amarrotada, sapato branco com um pouco de lama e a camisola interior com manchas de terra e ele já sem vida. O dr Esticadinho parecia mais encolhido e pequenino.

Na Casa do Sol, soube-se do falecimento no dia seguinte, fez-se silêncio e os sorrisos fecharam-se. Mas durante pouco tempo. Até a Tilde dizer:

- Meninas, enquanto há vida, há alegria. Vamos mas é celebrar o tempo em que este nosso amigo do peito esteve feliz entre nós.

Ao funeral, que a Rosarinha ajudou a pagar, vieram três pessoas desconhecidas. Houve quem falasse de três mulheres, outros de três senhoras, outros de três raparigas e também se ouviu que eram três meninas.

No velório, Nilda estava pálida, pensativa e fazia ainda mais festas aos filhos. O Nequita leu umas orações do missal, tropeçando nas palavras mais difíceis, mas, durante a leitura, houve silêncio e as vizinhas não fizeram tantas perguntas nem olhavam tanto para as coloridas forasteiras.

Quando todos regressavam a casa, o Nequita pôs-se ao lado de Nilda e explicou-lhe quem eram as três senhoras desconhecidas, sem Nilda lhe perguntar nada. Rosarinha deu-lhe uma pequena cotovelada, mas ele não percebeu e continuou. Ela sentiu então que a sua causa de ajudar Nequita a entrar na vida religiosa também tinha morrido. 

Tentaria motivá-lo a arranjar um trabalho o mais brevemente possível. Talvez o padre não concordasse, mas tinha de ser prática e decidida.

O tempo foi passando: dias, semanas, meses… e Nilda, um dia, disse a Rosarinha que se sentia muito só, aliás como sempre se tinha sentido, mesmo quando o seu Augusto era vivo.

E, com um sorriso meigo e sereno, disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.


terça-feira, 9 de julho de 2024

Mas, sem jeito nem paciência, nada feito!


Rosarinha abriu o portão alto e entrou em casa. Estava triste. Queria ajudar o afilhado, mas estava a ver que não conseguia. O Nequita era bom rapaz, mas não estava fadado para ser padre, ia concluindo. Para tal, faltava-lhe espiritualidade e, sobretudo, convicção e empatia. Poderia ser até violência querer fazê-lo seguir um rumo para o qual não tinha nascido.

A ideia da cruz  ao peito, do missal e de se apresentar com indumentária à beato do início do século XX não resultava e tornava-o uma figura caricata. Era o que Rosarinha menos queria e culpava-se a si própria por ter corroborado nesta situação. Custava-lhe dizer que não a quem quer que fosse e muito menos ao padre.

Só a ela própria menos vezes dizia sim, incluindo sobre a sua saúde. Quando ia ao médico, de longe a longe, trazia sempre vários exames que não fazia. Ia adiando até que ficavam esquecidos no envelope que usava para o efeito. Até que um dia ficou doente, muito doente, doença que podia ter sido evitada se tivesse sido vista por um médico mais cedo. Nessa altura, sentiu que era até leviandade e desrespeito por si própria.

Sempre tinha ajudado mais do que tinha sido ajudada, dizia para si própria como revolta ou desabafo. E sofreu bastante com a incerteza do presente e do futuro. Apesar de ser tão religiosa, não concordava com promessas. Parecia-lhe um negócio de toma lá dá cá, ou melhor, dá cá e depois toma lá.

Porém, durante a doença, deu consigo a fazer uma promessa. Se recuperasse a saúde, tentaria viver uma vida ainda mais equilibrada com ela e com os outros. Tentaria ajudar quem precisasse, sem se pôr em segundo plano,  como sempre tinha acontecido.

Neste patamar, entrou o Nequita, em quem o padre depositava confiança, porque gostava de rezar e de ir à igreja, muito mais do que os jovens da sua idade. Como era afilhado da Rosarinha, e viviam muito próximos, o caminho até à vida religiosa seria mais fácil. Rosarinha confiou no projeto que englobava Nequita. Depositava nele a confiança que tantas vezes inculcava pela imaginação.

No entanto, via agora que era quase impossível transformar aquele jovem num ser religioso, amado, confiável e ouvido.

Já na cozinha, começou a fazer o jantar. Aproveitaria o diálogo à mesa para o orientar e aconselhar. De repente, a campainha começou a tocar em desespero.


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Rosarinha ficou a olhar para eles


 - Não contava com os dois aqui a conversar a esta hora. Como vai, sr Augusto?

- Como Deus manda e que nem sempre é como a gente quer. E a dona Rosarinha, como está?

- Estou bem, graças a Deus, e hoje tive a alegria de saber que o meu afilhado, se continuar a fazer boas obras, em breve entra no Seminário.

- Ó madrinha, era disso que estávamos a conversar.

- Como assim? Estavas a dar a boa noticia ao Sr Augusto?

- Não, estava a dizer-lhe que tem de ser melhor pai e melhor marido.

- Desculpe, Sr Augusto, o meu afilhado é muito direto. Tem um grande coração e às vezes mora-lhe muito perto da boca.

- O madrinha, então não fiquei de dizer o que disse ao dr Esticadinho?

- Ele tem nome de batismo, Nequita, não te esqueças e, como já temos falado, às vezes temos de dar tempo ao tempo porque ninguém é dono da verdade.

- Ó dona Rosarinha, peço imensa desculpa, dou os parabéns ao Nequita pelo sucesso, que, deixe-me dizer-lhe e com a sua licença, ele só consegue com a sua ajuda, porque a inteligência dele não me parece grande coisa, mas estou cansado e está a fazer-se tarde.

- Graças a Deus, Sr Augusto, o Nequita tem feito muito esforço e muitos progressos, mas compreendo o seu cansaço e irritação. Vá então para casa e peço-lhe desculpa por esta situação inesperada. Se, entretanto, precisar de alguma coisa, ou a sra Nilda, não hesitem e batam-me à porta.

- Muito obrigado, dona Rosarinha, eu sei que a senhora gosta de ajudar.

- Faz-se o que se pode, Sr Augusto, e nem sempre é perfeito. Uma boa noite para toda a família.

Uma boa noite, dona Rosarinha.


- Nequita, queres jantar comigo hoje?

- Claro que sim, madrinha. Está chateada comigo?

- Não, Nequita, não estou, mas tens de saber esperar pelo momento certo, se queres mudar alguma coisa na vida das pessoas.

 - Afinal, madrinha, é  mais difícil seguir a vida religiosa do que eu pensava.

- Nequita, não sejas precipitado e pensa no mundo melhor que, com a ajuda de Deus,  vais construir. Mas, sem jeito nem paciência, nada feito.


domingo, 7 de julho de 2024

O que é que o Nequita me quererá dizer?


Quando o dr Esticadinho saiu da camioneta, deu logo de caras com o Nequita,  bem visível ao longe, com os botões da camisa apertados até ao pescoço, cabelo  com brilhantina e risca vincada, calças pretas, uma grande cruz ao peito e um missal preso na mão que fechava para dentro junto ao coração. 

- Então, Nequita, o que se passa?

- Preciso de falar consigo, mas sem ninguém à nossa volta.

- Isso aqui é mais complicado, mas diz lá, rapaz.

Nequita, olhando-lhe a nódoa da camisa, perguntou:

- O que lhe aconteceu? Foi comer alguma francesinha e descuidou-se? 

- Nada disso, mas diz lá o que precisas porque tenho mais que fazer.

- E se fôssemos caminhar um pouco para conversarmos mais à vontade?

- Caminhar? A esta hora e com a camisa neste estado?

- Vamo-nos sentar então aqui no muro e assim ninguém nos ouve.

- Mas é segredo? 

- Tem a ver com coisas do céu, mas também da terra!

- Diz lá, então, enquanto tenho paciência. 

- Hoje ouvi o Sr padre falar de um livro e de famílias desavindas.

- Ó Nequita, deixa-te de palavras difíceis e  de histórias e vai aos finalmentes. 

- Tenho visto que a Sra Nilda anda desanimada e você nunca está em casa e, se está, está a dormir.

- E o que tens com isso? Ando cansado, rapaz, e a dormir também não faço despesa. Mas, vamos lá ver, Nequita, e se tu te metesses na tua vida a ler os teus missais e a passear a tua cruz?

- Você também tem a sua, que eu sei.

- Mas não ando a carregar com ela ao pescoço pra toda a gente ver.

Nequita  parou uns instantes, olhou o chão, voltou a olhar  para o dr Esticadinho e disse:

- Tem de falar mais com a Sra Nilda, dar-lhe mais atenção e também aos seus filhos. 

- O que é que queres dizer  com isso? Só não te chamo nomes nem te deixo a falar sozinho, porque tenho grande consideração pela tua madrinha,  a Rosarinha.

- E que me tem ajudado muito e, por isso, vou seguindo este caminho que me vai iluminando e que sei que é o que ela quer para mim.

- Tiveste sorte. Muito mais sorte do que eu na vida. Pronto, era este o teu sermão? Então, adeus e amanhã continuamos.

- Sei que não lhe vou pôr a vista em cima, a não ser que eu vá ao Porto, à Casa do Sol.

- Ó Nequita, estás muito bem informado. 

- Tudo se sabe e para a Sra Nilda é um desgosto.

- A minha mulher não é para aqui chamada. Se me fizeres outra espera como a de hoje para sermão e missa cantada, pensa bem no que te vou dizer, até o missal vai rebolar pelo chão.

- Vá, vá, então, mudar de camisa e lavar as suas máculas. Seja você a lavá-las porque a sujidade vem de si. E pense no que eu lhe disse.

Nisto, a Rosarinha saiu da mercearia, a que toda a gente chamava venda, e ficou a olhar para eles.


sábado, 6 de julho de 2024

O prazer fica sempre aquém do desejado, disse ele, já sozinho à mesa

 

O dr Esticadinho, a olhar para a nódoa da camisa, até se esqueceu de que a Maribel o tinha deixado sozinho à mesa. Já a conhecia há uns anos e sabia desse seu  hábito que o irritava e a outros clientes. Ou melhor, amigos do peito, como elas diziam. Quando ela ouvia uma conversa mais divertida entre as colegas, levantava-se logo da cadeira, se o momento não era de sedução,  e lá ia ela saber o que se passava.

No momento, a Lurdes ria-se com aquele seu riso meio fechado e arrastado. Quem não a conhecia ficava na dúvida se era riso ou se era choro.

O que estaria a contar Lurdes? Interrogou-se ele, com a cabeça ora mais esticada, ora mais baixa, fixando e maldizendo a nódoa.

Daí a nada, saiu da mesa e juntou-se ao grupo à volta de Lurdes. Era da maneira que não pensava na malfadada nódoa da camisa. Sempre impecável e aquela nódoa a manchar-lhe a indumentária e a reputação! Raisparta.

E como o bife com as batatas fritas e o ovo a cavalo lhe tinham sabido bem! Um festim. Boa fritura, bom tempero. Este manjar não lhe saía da cabeça há muito tempo. Hoje, finalmente, tinha-lhe escorregado, deliciando tudo até ao estômago. E tinha que vir aquela nódoa tirar-lhe o prazer do momento. Vinha à Casa do Sol para ser feliz e ter prazer e, afinal, até neste ninho de ternura descobria que o prazer fica sempre aquém do desejado!

Levantou-se devagar, arrastou a cadeira consigo e sentou-se bem perto do grupo. E Lurdes foi contando:

- Como a minha avó era muito religiosa, quando eu era adolescente, inscreveu-me uns anos seguidos num campo de férias, orientado por freiras. Havia uma que não tinha paciência para nada e um dia deu um estalo numa miúda do nosso grupo. Ficámos furiosas. Tínhamos de fazer alguma coisa para vingarmos o que se tinha passado.

- E o que fizeram?

- Esperem um bocadinho senão perde a graça.

E continuou:

- Como sempre, ao fim de tarde, fomos com essa freira escrever pensamentos, num caderninho próprio. De repente,  reparámos que, junto de nós, havia  pulgas da areia, sempre a saltar. Mesmo sem nos levantarmos, apanhámos muitas para um saco de papel e, sem a freira reparar, despejámo-lo no saco preto de asas que a freira tinha deixado atrás de si. Quando nos preparávamos para ir embora, ao pegar no saco, a freira deu conta das pulgas que lhe tinham invadido o saco. ‘Ai, meu Deus’ - repetia ela vezes sem conta e aos gritinhos.

- E depois, e depois?

- Quando nos viu todas a rir, mandou-nos rezar o terço, e só nos pudemos levantar depois de terminada a salvé-rainha, apesar de a areia ter ficado gelada.

O dr Esticadinho ouviu a história, sorriu e disse de forma lenta:

- Até nisto o prazer fica aquém do esperado! São horas de eu ir andando. Um vizinho meu, que por acaso também é muito religioso, disse-me que precisava de falar comigo ainda  hoje.  O que é que o Nequita me quererá dizer?


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Quando regressava a casa, é que era um sarilho

 

O dr Esticadinho chegou a casa e logo se estendeu na cama, ou melhor, deitou-se depois de ter tirado o fato, que pendurou, meticulosamente, no cabide que era só dele e aí de quem o tirasse daquele lugar. Se tal acontecesse, os berros tremendos até faziam tremer cá fora.

Deitado por cima da cama, em cima da coberta macia e bem esticada, como sempre exigia, o seu corpo estreito e magro lembrava um quase esqueleto com alguns tufos de pelos escuros a sair da pele seca e branca. Perguntou o que era o jantar. Sardinhas fritas com arroz de feijão, respondeu Nilda, já a fazer o estrugido. 

- Os fritos fazem-me azia. Até o cheiro me incomoda.

E foi resmungando que já não bastava o barulho das crianças, a gritaria da rua, o falatório das vizinhas, a loiça esbotenada, não ter mimos como precisava… 

Se Nilda reagia, ele exaltava-se; se ela se calava, ele exaltava-se na mesma.

Nilda sabia onde ele passava quase todas as tardes, depois que veio para casa por invalidez. Nesse dia, ele até rejubilou. Ia ganhar muito pouco, é certo, mas não tinha de aturar o patrão nem os colegas, nem tinha de se levantar tão cedo, nem andar nos transportes públicos em horas de ponta. O dinheiro ia esticando, porque as vizinhas davam roupa para os filhos, ele tinha dois fatos que duravam muito porque tratava muito bem deles. Sobre a roupa de Nilda não sabia nem muito nem pouco, porque não tinha tempo nem vontade para reparar, mas devia estar mais ou menos. Nas poucas saídas a dois, as pessoas olhavam-na de alto a baixo, o que o incomodava e levava a esticar-se ainda mais, porque gostava de ser ele o centro das atenções. 

Para a comida, o dinheiro também ia dar, porque em casa só entrava comida barata. O que valia era o sr Salomão, da família da Rosarinha, que vivia sozinha na casa alta e de pedra. Ele tinha um barco de pesca e, quando a faina corria bem, trazia peixe e distribuía-o pela aldeia. As mulheres vinham com as suas baciinhas e levavam-nas cheias para casa. Tinham peixe para várias refeições. Era pena era ter de ficar dentro do mosqueiro porque o frigorífico era luxo dos ricos. Também os lavradores eram generosos e davam hortaliças dos seus campos, em tempo de fartura.

Mesmo assim, às vezes, andava desconsolado e um dia comprou um bom bife só para ele, sem dizer nada em casa. Levou-o para a Casa do Sol e pediu que o fritassem com batatas e ovo a cavalo. Consolou-se com a companhia e com o pitéu. O pior foi a nódoa de gordura que lhe caiu na camisa, apesar de ter posto um guardanapo bem preso ao pescoço. Raisparta!

O prazer fica sempre aquém do desejado, lamentou, já sozinho à mesa.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Julgo que já falei dela, mas não lhe disse o nome

 

Se, ao domingo, pelas nove da manhã, passar pela paragem da camioneta, sei que vejo Nilda, de seu nome, e nascida  há quase oitenta anos. O cabelo ondulado lembra qualquer atriz dos anos vinte. O fato de saía e casaco, em tons claros, que veste habitualmente quando o dia se prevê de sol, é antigo, tal como a blusa de nylon, com preguinhas no colarinho e botõezinhos doirados. E saltam à vista os brincos compridos, o alfinete e as pulseiras, tudo com preciosas pedras de tão baratas mas bonitas e a condizer.  Ah, e também um relógio de pulso que só usa precisamente ao domingo, dia de ir ao Centro Comercial ter com o grupo em que todos esperam por todos, sempre à mesma mesa.

Enquanto não vem o transporte, quem passa diz bom dia e Nilda responde com palavras risonhas. Quando entra na camioneta, logo reconhece passageiros do domingo. E tudo continua próximo e familiar até ao Porto.

Um dia, uma companheira de assento gabou-lhe a roupa que trazia vestida e ela logo se apressou a dizer que era muito antiga, mas que muito estimava porque cada peça que usava tinha uma história. Nem sempre bonita, acrescentou com um sorriso meigo, ainda que amargo e amarelecido.

A roupa vinha-lhe do tempo em que o marido - o dr Esticadinho, como era conhecido  - estava vivo. Ele era de compleição estreita, comprida e bem esticada, daí a alcunha. 

Fosse inverno ou verão, usava um fato branco, camisa branca e sapatos que limpava com tino e esmero para também não perderem a alvura. Se as nuvens do céu anunciavam chuva, calçava os sapatos com recortes pretos, mas a meia, essa tinha de ser branca como  a cal, não como a do muro do caminho que estava suja, mas como a da parede da habitação bem próxima, a única casa bonita da rua, e a única com portão alto. 

Quando passava junto à casa alta e de pedra, não havia vez nenhuma que não olhasse lá para dentro. Tinha pena de não ser rico, mas só na Casa do Sol, na ruazinha apertada e sombria do Porto, com cheiro a fritos,  se sentia com coragem de o dizer porque as interlocutoras tinham tempo e bom humor.

Quando regressava a casa, é que era um sarilho.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A leviandade às vezes fica bem!

 

Não deve ser bem o significado que vem no dicionário, mas, para mim, na palavra leviano cabe também o sentido de encarar certas coisas mais complicadas de forma mais leve. Para não sofrer, para não interligar com outras mais profundas e dolorosas, e, muitas vezes, para que as outras pessoas com quem se interage não tenham acrescidos motivos de inquietação.

Talvez eu esteja a ser abstrata.

Clarificando: a alguém é comunicado que tem uma doença grave, fica triste, o problema não lhe sai da cabeça, mas, ao falar do assunto, parece menorizar o mal para não se inquietar tanto nem aos outros. Parece leviandade, mas pode fazê-lo pela lei do menor esforço, por alguma generosidade, e, porque não dizê-lo, também para se convencer de que o seu caso poderá ser menos grave do que lhe é apresentado.

E se a leviandade, nestes moldes, ajudar à cura e à redução da preocupação de quem está próximo, pode ter as suas vantagens. Em dose qb, é claro. 


terça-feira, 2 de julho de 2024

Há dias assim

 

Há dias em que acordamos cedo e apetece logo levantar e sentir o cheiro do café  quente e ouvir os pássaros e regar as flores e fazer o que ficou por fazer do dia anterior, quase sem pensar na vida que se abre em tudo que tocamos. Tão natural como a nossa sede.

Há outros dias em que quase nada disto acontece. E parece que o presente estagna por desconhecimento e receio do futuro. E a boca seca ainda que da torneira continue a jorrar água.

Há dias em que apetece organizar tudo porque a vida promete; existem outros dias em que muitas das palavras ouvidas pintam os sorrisos de amarelo.

Há dias em que se ouvem as crianças a falar de borboletas e logo esses seres surgem aos nossos olhos e voam, risonhos, na nossa memória.

Há dias em que as borboletas parecem desaparecer porque não veem flores onde pousar.

Há dias e dias, como há mar e mar. Fique sempre a esperança de a melhores dias voltar.


domingo, 30 de junho de 2024

Previsões intensas


Nos últimos dias, mais uma vez, o meu telemóvel anunciava chuva e trovoada intensas. Ora, eu que, se puder, fujo das trovoadas como o diabo da cruz, vendo estas previsões, fico logo em alvoroço e só penso como mudar os planos, se os tiver, é claro.
E, com frequência, lá estou eu a ver no mesmo site a que horas chega a chuva intensa e a trovoada também intensa. Porém, o que vejo eu? Ele é céu nublado, ele é sol a espreitar e pouco mais.
E as horas vão passando, as noites e os dias também e as tempestades anunciadas ficam pelo caminho. Ainda bem, mas porque foram tão anunciadas para tantos lugares tão fora da sua rota? 
Como as palavras andam sempre interligadas, é caso para dizer:  ‘Cão que ladra não morde’ ou, então, o que é pior, eis outra coisa em que não se pode confiar.
Como ainda estamos em maré de santos populares, 

Aí que bom não haver
A anunciada tempestade
Retirou-se ou perdeu-se?
Vá lá, digam a verdade!


sexta-feira, 28 de junho de 2024

O balcão número 3

 

- Boa tarde!

- Tirou a senha?

- Sim,  aqui está.

- Para que é?

-Venho fazer este exame e queria marcar uma consulta.

- Uma coisa de cada vez.

- Quanto  vou pagar pelo exame?

- Estou a preencher o formulário, não posso fazer tudo ao mesmo tempo.

- Não há problema, eu aguardo.

- Tem de ser. Não é chegar e vencer.

- Também  não era essa a minha intenção. Apenas quero fazer o exame e marcar uma consulta. Estou na minha vez.

- É que os médicos têm marcações. A consulta não pode ser logo logo.

- Também não disse que queria já já.

- Mas há pessoas que julgam que só os outros têm de esperar.

- …

- Pronto, aqui tem. A seguir, vão chamá-la para fazer o exame. Para a consulta só tenho vaga às cinco horas.

- Marco  então para a semana. São só duas horas e tenho de ficar muito tempo à espera. É para renovar a carta de condução e ainda tenho algum tempo.

- Então, já podia ter dito, porque há mais gente à espera.

- …

- Dona Maria…, pode acompanhar-me, por favor. Ora vamos lá fazer o nosso exame. Não vai custar nada, vai ver.

- Nem sei que diga, porque tenho várias perguntas a fazer, mas receio sobrepor alguma e que me leve a mal.

- Por que diz isso? Esteja à vontade. Estou a ver que vem do balcão número 3!!!!


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Ó meu rico S. Pedro


Já passou o Sto António

E também o S. João

Vem agora o S Pedro

Haja festa e balão


És o último, deixa lá

Como se costuma afirmar

Os últimos são os primeiros

E vale a pena esperar


Em muitos sítios és rei

Um querido padroeiro

Não perdes a compostura

Desejado mensageiro


Como tens as chaves do céu

Abre as que puderes

Torna mais felizes os homens

Mas não esqueças as mulheres


terça-feira, 25 de junho de 2024

A meio gás


Ontem, 24 de junho e dia de S. João, era feriado no Porto. Como vivo em concelho vizinho, verifica-se um misto de procedimentos. Há quem folgue e quem trabalhe; veem-se portas abertas e outras fechadas… Tudo parece acontecer a meio gás.  E não é que acho piada a isso?

Pois bem, logo pensei: tenho análises para fazer e será da maneira que não encontro fila. E, pelas oito da manhã, lá estava eu. Fui a primeira, disse-me a enfermeira que logo me perguntou se eu tinha feito o jejum necessário, porque a noite tinha sido de folgar até tarde, com sardinhas e febras à mistura.

Confirmei. Não, não fui à festa, disse eu. E fiz-lhe a mesma pergunta, porque não havia ninguém à espera e o gabinete era só nosso. Tinha feito a festa em casa, disse ela. E ainda falámos das correntes no rio Douro que quase impediam o fogo de artifício na Ribeira, o que estragaria a Festa. No final, desejámo-nos um bom dia de S. João.

Já junto ao balcão:

Olá, não me estás a conhecer?

Claro que estou,  como estás?

Estou cheia de caruncho, ando manca… venho fazer exames.

E a conversa continuou mais um pouco neste tom. E, olhando-lhe o rosto, parecia que ainda há pouco éramos adolescentes, dávamos alegres gargalhadas, tínhamos sonhos e os olhos sorriam com os namoricos.

Volto para casa. Deito de comer à Castanha e são poucos os carros que passam na rua. Sabe-me bem o silêncio. Até as hidrângeas dos canteiros me parecem mais nítidas e bonitas.

Talvez seja boa altura para ir também à Loja do Cidadão tirar os documentos que me faltam. Procuro na net. Há serviços abertos. 

E fui.

Afinal, também à Loja do Cidadão estava a meio gás, isto é, uma porta estava aberta, outra fechada.

As pessoas em espera contavam-se pelos dedos. Tiro a senha. Vejo alguém a fixar-me e a sorrir. Alguém que conheço há muitos anos e que, apesar de nos encontrarmos poucas vezes, temos sempre assunto. Daí a nada, estávamos com os telemóveis a mostrar as fotos dos netos  - para cada um de nós os mais lindos do mundo.

Quando chegou à minha vez, tratei metade dos assuntos que queria, nada mau, em dia de S. João, um dia a meio gás, com bocadinhos bons de suaves e antigas amizades dentro.


De regresso a casa, ouvi o podcast ‘O coração ainda bate’, de Inês Meneses. O episódio de hoje  - A idade maior - fala do ‘privilégio da amizade’.

https://podcasts.apple.com/pt/podcast/o-cora%C3%A7%C3%A3o-ainda-bate/id1543484053

Em dia de instituições a meio gás, soube bem ouvir este programa tão bem escrito, tão bem dito, tão profundamente arquitetado, e que dura apenas 6 m. O dia continuou amigavelmente devagar. Gosto de dias assim.


segunda-feira, 24 de junho de 2024

Várias vezes fui ao Porto

 

Várias vezes fui ao Porto

Na noite de S. João

Na cabeça, o martelinho;

No céu, a luz do balão.


E em muitas ruas se via

Uma rusga a aparecer

Com arquinho e balão,

Tudo lindo de morrer!


De manjerico e cidreira

A noite era perfumada;

O alho porro e a arruda

Para a malta ataviada!


Muito se fazia ouvir

O martelo brincalhão.

Se a cabeça era careca,

Maior era a animação.


Há muito não vou ao Porto,

Em noite de  S. João,

Prefiro ver à distância

A alegre multidão.


E a bela sardinha assada,

Na brasa a fumegar,

À espera da bela broa

Pra nela poder pingar!



Pudesse eu voltar atrás,

Talvez lá quisesse rever

As minhas filhas pequenas,

Podendo vê-las crescer.


O resto lá foi passando,

Ficando-me na memória.

Foi ave que já voou

Morando na trajetória.



domingo, 23 de junho de 2024

Ó meu rico S. João!

 

O meu rico S. João,

Temos tido a vitória;

Sabendo jogar a bola.

Venha então nova glória!


E não só no futebol,

Mas na vida em geral;

Tanta verdade que falta,

Não mentira em Portugal.


Há tantas meias verdades,

Tanta gente a enganar,

Para, subindo ao podium,

Prémio único ganhar!


S. João, é bom rever-te,

Aqui pertinho de nós.

Aumenta os bons exemplos

Pra não nos sentirmos sós!


E quando dissermos gooolo!

Que seja grande a alegria!

Não pra mostrarmos vingança!

Mas pra termos confiança

Que melhora cada dia!


terça-feira, 18 de junho de 2024

‘Verão’


 

O croquete e a maçã

 

Ontem e hoje, em tudo que é revista ou programa cor de rosa ou de outra cor qualquer, logo se ouve ou lê sobre a expulsão de Sónia Tavares, cantora dos Gift, do Rock in Rio em Lisboa.

Estando ela a fazer reportagem para a SIC, e, comendo um croquete da mesa, foi severamente admoestada por alguém da organização, que lhe retirou a pulseira de acesso à zona e a levou por um braço para fora do espaço vip, onde estava a trabalhar, juntamente com Bárbara Guimarães.

Se calhar, há razões de parte a parte para que a trinca no croquete pudesse ser dada e notada, mas ser expulsa e exposta daquela maneira, sinceramente, não havia necessidade, acho eu, que sou um ser anónimo que não vai a festivais de verão nem frequenta zonas vip, embora também goste de croquetes.

Esta história do croquete fez-me lembrar uma situação desconfortável, que se passou comigo há bastantes anos. De vez em quando, íamos, em família, passar férias ao Algarve, quase sempre num aldeamento. Uma vez, resolvemos puxar os cordões à bolsa e fomos uns dias para um hotel de uma cadeia conhecida e nada barata.

Pois bem, uma manhã, depois do pequeno almoço, olhei para uma maçã, que parecia bem saborosa, tipo tentação de Adão e que ruborescia num cesto de fruta bem próximo. Peguei na maçã, e fui saindo, inocentemente, com ela na mão,  Poderia, assim, satisfazer o slogan saudável: ‘Ao meio da manhã, coma uma maçã.

O que eu desconhecia era que, no hotel, as regras não permitiam levar alimentos para o exterior da sala. Por isso, o funcionário, à saída, logo me chamou a atenção para a infração que eu estava a cometer e lá tive de deixar a bela e tentadora maçã em cima do balcão. Não sou muito de corar, mas sentia imenso calor na cara pela vergonha, ou pecado que vinha de longe, também por causa de uma maçã. 

Mais valia - pensei eu depois - ter dado uma trinca na maçã e, por certo, já não teria de a devolver, nem passaria por aquela vergonha. 

Quando vejo o símbolo da Apple, lembro-me sempre da trinca que, naquele dia, podia ter dado na maçã, se tivesse tido mais coragem.

Pelo que sei, Adão nunca se arrependeu.