Se não tivesse sido eu a tirar a fotografia, diria que eram só flores, na sua singeleza e diversidade. Mas está lá uma cabaça, e não é pequena, deixando viver feliz e à vontade quem lhe dá ajuda e apoio.
Se não tivesse sido eu a tirar a fotografia, diria que eram só flores, na sua singeleza e diversidade. Mas está lá uma cabaça, e não é pequena, deixando viver feliz e à vontade quem lhe dá ajuda e apoio.
Um dia, ouvi: nunca colhi frutos de uma árvore.
Lembro-me sempre disso quando vou ao quintal, apanho os frutos e saboreio-os logo ali.
Quem gostasse devia ter árvores de fruto por perto para os olhar e saborear.
Se calhar, é comum, mas nunca tinha visto pássaros dentro do aeroporto. Foi em Heathrow, de regresso ao Porto.
Cheguei duas horas antes como é da praxe. Dantes, tomaria um café enquanto esperava pelo voo, mas, desta vez, não o fiz porque não queria tirar a máscara.
Também gosto de me sentar e observar as pessoas, tão diferentes, a passar.
Tal como tinha reparado em Gatwick, havia menos movimento. Talvez porque para quem chega ao Reino Unido é pedido teste covid, certificado digital de vacinação, inquérito de localização preenchido, passaporte...
Mas voltemos aos pássaros que, pela sala de embarque, andavam a esvoaçar. Talvez tivessem fome e procurassem migalhas dispersas pelo chão.
Também eu me deslocara a Londres para matar a fome da saudade. Não tinha ficado ainda satisfeita porque foi uma semana em presença quando a ausência havia sido de dezoito meses. E há tanta gente nestas condições.
Deixei de ver os pássaros quando me dirigi à porta com destino ao Porto, ou melhor, a Lisboa, onde fizemos escala e onde não vi pássaros, mas também os teremos, uns mais esfomeados, outros mais consolados.
Era bom regressar a Portugal, mas a vontade de voltar a Londres esvoaçava na minha cabeça. Como os pássaros no aeroporto.
Sempre gostei de coretos. Talvez por ouvir, desde muito cedo, o meu avô falar das bandas que ele apreciava e que tocavam em coretos nas festas populares. Ele usava uma expressão que acho deliciosa: tocar uma pecinha. Também o meu pai a utilizava.
Pois bem, no Queen's Park, em Londres, há um coreto e domingo passado havia uma banda a tocar. Os espectadores sentavam-se na relva, crianças corriam, algumas pessoas dançavam... Uma tarde bonita e plácida de domingo.
O maestro, ao anunciar as músicas e voltado para o público, punha as mãos à volta da boca, em modo altifalante e dizia graças. Muitas pessoas riam-se e os músicos do coreto também. Ora, o meu inglês já não é bom e como ele falava para todas as direções, só nos chegavam algumas palavras, ficando eu com curiosidade sobre a piada que ele tinha dito. O que me valia era ter a minha filha ao pé de mim para me ajudar a compreender.
Uma das coisas que o maestro disse foi que ele tinha muito ritmo, o que logo causou riso. E muito mais graças ele disse, apesar da seriedade na execução musical.
Eu interroguei-me, então, se em Portugal tantas piadas seriam ditas neste tipo de espetáculo e de forma tão descontraída.
Foi então que a minha filha disse: em Portugal, as pessoas levam-se muito a sério.
Eu dei-lhe razão.
Gosto muito dos (poucos) pubs onde já estive em Londres. Gosto das comidas ligeiras e do ambiente simpático e informal.
Como é verão e a covid espreita sem ser vista, escolhemos um pub numa zona arborizada e ficámos na esplanada, como convém. Perto das mesas de madeira e sem toalha, pequenos recantos coloriam-se de flores.
À entrada do restaurante, um funcionário ia organizando as chegadas. Era brasileiro e estava sem máscara, tal como todos os colegas que lá trabalhavam. Naturalmente, abeiravam-se dos clientes, registavam os pedidos, traziam a comida, etc sempre sem máscara e à distância do antes covid. Confesso que me fez confusão.
Na viagem de ida para o pub, como a distância era bastante longa e o percurso seria quase sempre a subir, preferi ir de uber. O motorista chegou sem máscara. Perguntámos se podia pôr a máscara. Não, respondeu, porque estava isento. Eu desconhecia a possibilidade de estar isento de máscara, pelo menos neste tipo de trabalho. Pedimos desculpa e chamámos outro carro, mas a uber cobrou o serviço não realizado. Tem, portanto, o direito à opção de usar ou não máscara, mas os utilizadores só têm a opção de aceitar o que vier.
Voltemos ao pub. Durante o almoço, chegámos à conclusão que a grande maioria das pessoas que lá estava já tinha feito anos mais de sessenta vezes. No entanto, o ambiente era leve e airoso. E bonito. Quase toda a gente tinha ar de quem estava ali desfrutando do mais que legítimo direito de viver a vida e não porque já não tem vida para viver.
O mesmo sentimento tive nos parques e nos cafés entre árvores e flores ao ar livre. A imagem com que se ficava por aquela amostra era que toda a gente vivia feliz, vivia bem e vivia acompanhada, independentemente da idade.
Mas, pelos vistos, não é bem assim. O que se via era apenas um bocadinho da realidade, belo e risonho por sinal. Há quase dez milhões de pessoas no Reino Unido que vivem sós, daí ter havido a necessidade de criar o Ministério da Solidão. E a solidão não atinge só os mais velhos, mas os diferentes grupos etários.
De facto, um par de dias ensolarados revela apenas uma nesga do céu e muitas nuvens escondem o resto. Sem deixar de ser belo, é claro, o pouco que está à vista.
Chegou o dia do aniversário. O tão desejado dia. Seis aninhos. Os cinco anos tinham sido celebrados só com os pais em Londres; nos anos anteriores, antes da pandemia, sempre em Portugal, com a família mais alargada, com mar por perto e muita brincadeira.
Este ano, vieram duas amiguinhas. Outro dia virão outras duas e assim a concentração dentro de casa é menor. A primeira menina a chegar veio com a mãe, de olhar sereno e olhos morenos, que usava hijab preto, túnica até aos pés e trazia máscara. Logo que chegou, tirou os sapatos e pediu para lavar as mãos. Tinha feito teste rápido em casa. Já nos conhecíamos do tempo em que as meninas andavam no infantário. Disse-me que eu estava mais magra e fiquei contente. E ainda mais ao conseguir manter um diálogo com ela em língua inglesa.
Depois, chegou a outra menina, nuns fortes e altos seis anos, de longos cabelos em rastas. Vinha também com a mãe, desta vez sem máscara.
Éramos cinco adultos e quatro nacionalidades. É Londres, pois então. Todos cantámos Happy Birthday. Depois disse à minha filha: vamos cantar em português. Não souberam acompanhar, mas a alegre empatia continuou.
Quando passei pelo casal no parque, tive pena de ser discreta porque me apetecia olhar para eles mais longamente, enquanto caminhavam lado a lado.
E não é que se via logo que eram (e)namorados de fresco? Já teriam vivido muitos e muitos aniversários, festejados ou não, isso não sei. Aqueles sorrisos entre a alegria e o enamoramento não são muito comuns em casais que vivem juntos há muito tempo. Infelizmente, of course.
Apetecia olhá-los sem lhes roubar ou diminuir o êxtase amoroso dos sorrisos e da cumplicidade. Para eles se aperceberem que tornavam o parque ainda mais bonito, embora os parques de Londres sejam do mais bonito que há.
Acho que, quando deparar com cenário semelhante, vou deixar de ser tão discreta. Deus queira que eles também.
Até agora, quando eu ia a Londres, sempre apanhava o comboio depois do avião. Desta vez, apanhei um táxi por recomendação repetida: mãe, no comboio, andam sem máscara, não é conveniente.
Depois de 18 meses de encontros só pela net, finalmente podia estar com os meus amores de Londres. A menina estava mais crescidinha e de olhinhos radiantes. Eu nem queria acreditar que dávamos abracinhos (depois de tomar banho, mudar de roupa e... fazer teste rápido. Mãe, viajar de avião é das coisas mais perigosas! Claro, filha, eu sei, bora lá!).
Depois, foi o tirar de coisas da mala, umas mais tugas do que outras: lombinhos de bacalhau, marmelada, compota... Ah, e maracujás e figos do quintal.
Os presentes seriam abertos na celebração dos seis aninhos daí a dias.
Ao jantar, ele, com o seu sotaque americano, embora se esforce em falar comigo em português, falou de pataniscas e queria saber como se faziam. No dia seguinte, em modo de 24 Kitchen, expliquei-lhe. Ele via e fazia também.
Disse-lhe para juntar sal e logo ele: mas o bacalau é salted. Eu achava que já não estava. Afinal, ele tinha razão. Sorry. Mesmo assim, desapareceram todas. E falou-se também das bolinhos de bacalau. Fi-los num dos dias seguintes e ficaram bem bons. Estavam consolados a saboreá-los e eu consolada de os ver assim.
E quase não houve dias suficientes para os comeres da saudade.
Desta vez, foram sete dias. Na despedida, prometi: quando puder, volto e fico dez dias. Ela contou pelos dedos pequeninos, sorriu e deu-me mais um abracinho. Ainda estava com ela, mas já sentia saudades. Isso nem valia a pena tomar nota no meu caderninho. Impossível esquecer.
No primeiro dia, cheguei ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, umas duas horas antes do voo da TAP Porto-Gatwick. Fila grande e demorada para entrega de bagagem, confirmação de teste covid e inquérito de localização preenchido. O meu stress de andar de avião aumentava.
Finalmente: porta 11. Boa viagem.
Antes de chegar à porta 11, vi que já lá não havia ninguém. Uma senhora da groundforce vem na minha direção. Pergunta-me o nome. Tinha de me despachar. Acelerei o passo. O meu stress distraiu-se.
Coube-me um lugar junto de um casal e uma criança pequenina. Preferia não ir assim tão junta, apesar de todos usarmos máscara. Pedi para mudar. Sim, com certeza. Podia escolher, apesar de haver poucos lugares vagos. Numa fila, só estava um sujeito que dormia profundamente junto da janela. Fiquei mais à vontade e o casal também, de certeza.
Serviram bebidas e snacks. Tudo agora é pago. E com cartão de débito ou crédito. Pedi um copo de água. Perguntei se tinha de pagar. Não, só água é para comprimido, disse-me sorrindo o comissário de bordo (não sei por que não se diz hospedeiro, se elas são hospedeiras!) de cabelo grisalho e bonitos olhos azuis. O meu stress diminuiu.
O comandante anunciava a descida. Em breve, estaríamos em terra, que é onde gosto de estar, apesar de não ignorar o céu. O meu stress reduzia-se.
Aterrámos. Landed. 18 graus e alguns minutos depois das 11 h da manhã, a mesma hora que no Porto.
Quando foi permitido, enviei mensagem rápida com emoji de sorriso.
Stress over.
Quando vai a Mindelo, e já o faz há um bom par de dezenas de anos, percorre quase sempre o mesmo passeio à beira-mar, toma um café quase sempre no mesmo sítio, compra pão na mesma padaria, olha para o mar nas mesmas direções, etc.
Mas as pessoas vão mudando. A cigana que vende roupa todos os verões envelheceu ou era outra familiar mais velha e o tempo confundiu-as. O cigano é que era de certeza o mesmo, mas menos direito e menos galã.
Viu uma mulher que ainda há poucos verões era menina.
A miúda do quiosque já lá não está e o quiosque também não.
O dono do café, fervoroso adepto do F.C.P, que recebe gente de diferentes clubes, começou muito novo. Agora tem o cabelo grisalho e precisa de óculos para temperar as delícias que são servidas com a cerveja a borbulhar.
No mar é que não vê diferenças. Belo e incansável como sempre. E fica a olhá-lo como se o presente fosse duradoura maresia.
Hoje em Espinho, antes das dez da manhã, o sol estava tímido, grupos de jovens com pranchas de surf ainda preferiam o convívio no passadiço. As esplanadas estavam quase vazias. Pouca gente passeava. Várias pessoas olhavam o mar. Havia quem corresse e logo se via que não era só treino de agosto. Um casal de mão dada passou com ar de quem está feliz por ter tempo livre. Logo passou um homem de calças vermelhas e laca no cabelo esticado, parecendo vir arejar de perdas ou ganhos no casino. Muitas famílias iam chegando carregadinhas de defesas do sol, do vento, da fome, da sede, dos tempos mortos dos miúdos...
Vários surfistas, indiferentes a tudo isto, elevavam-se ou afundavam-se na crista da onda. Um fotógrafo esperava-lhes a melhor posição.
O dia aqueceria e a esta hora o verão será mais verão.
Não sei se o papagaio de papel continua a voar. Se sim, o bocadinho da praia por onde passa fica ainda mais bonito.
Hoje vi que uma das plantas que tenho dentro de casa estava triste e de folhas caídas de murchas. Já tinha reparado que lhe faltava alguma coisa, para além do ar e da luz. Só que quando eu passava, o tempo estava a passar depressa e logo pensava: venho daqui a pouco tratar de ti.
Só que demorei.
O estado de abatimento da planta já era grande. Há pouco, peguei no vaso, trouxe-o para a cozinha e dei-lhe a água de que precisava, pelos sinais mais do que evidentes de sede.
E não é que, passados alguns minutos, a planta ganhou a postura e viço iniciais?
De fazer inveja aos humanos. Será que a planta queria dizer que basta o essencial para se ganhar novas forças?
O que tenho de aprender!
Há muito tempo que o grupo tinha o hábito de se encontrar à hora do almoço. Todos trabalhavam nas imediações e foram-se conhecendo em circunstâncias várias. À hora do costume, chegavam, sentavam-se e havia sempre peripécias do dia para contar. Os empregados do restaurante já lhes conheciam os hábitos.
Naquele dia, a conversa foi para casos de família. Como já sentiam à vontade uns com os outros, Mina não se ficou pelo anedótico. Também não fazia muito o seu género. Falou do pai. Que nunca tinha ouvido um elogio da boca dele. E que lhe dizia com frequência e com ar recriminatório que era uma desajeitada, ao contrário das filhas dos amigos. A sua mágoa era grande.
Os dias sucederam-se. Também os almoços e as conversas. Um dia, Mina, num estender do braço, partiu um copo. A água jorrou sobre as calças da colega do lado que, perante o incidente, logo disse: o teu pai tinha razão, és mesmo desajeitada.
Mina nunca mais foi almoçar com o grupo.
Sempre que os vejo em prateleiras do supermercado, não resisto a olhar e muitas vezes a comprar. E então quando os vi numa loja Ach. Brito bem apelativa, o fascínio foi ainda maior. Refiro-me aos sabonetes Patti. Cheiram a bocados bastante felizes da minha infância.
Na casa de banho das minhas tias - viviam numa casa de lavoura, grande e antiga - nunca conheci outro cheiro. Sempre que ia a casa delas, gostava de ir lavar as mãos para que o perfume do sabonete Patti ficasse entranhado na minha pele durante algum tempo. Os sabonetes eram pequeninos e verdes - via-os sempre sem o papel de fora.
Havia uma janela de vidros pequenos que estava sempre aberta para os campos, mas o perfume do sabonete Patti nunca desaparecia.
Na última vez que fui à casa das minhas tias, há um par de meses, antes de a última delas falecer, lembrei-me apenas do cheiro do sabonete Patti. O mais certo era já não existir. Assim, continua a perfumar bocados bastante felizes da minha infância.
Hoje era o primeiro dia do campo de férias. A menina estava felicíssima. A mãe, perante o entusiasmo dela, sorriu-lhe.
- Também acho que vai ser bom o campo de férias.
- Para mim, vai ser bom por duas coisas importantes.
- E quais são?
- Uma delas é porque duas amigas da minha sala também vão.
- Que bom. E a outra, filha?
- Estou feliz por levar a minha lancheira.
Despediram-se. Saboreando a maravilha de uma simples lancheira também o poder ser.