sexta-feira, 7 de maio de 2021

O prazer da escrita solidária

 

 A publicação da coletânea de texto poético e tema livre, Livro aberto, tem fins solidários - apoio ao desporto adaptado. A organização e produção editorial são de Ana Coelho, da Rádio Voz de Alenquer. 

Enviei dois textos para possível publicação. Um deles foi o que agora partilho.

 

Capa de Sara Santos - no prefácio, a autora justifica-a.

 

Carta de amor aos livros do meu pai

Desculpem, livros do meu pai, se sou ridícula, mas Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos, também escreveu cartas de amor ridículas.

Se eu pudesse, queridos livros, plantaria, numa única estante, os autores da vida do meu pai.

Mais visíveis a todos os olhares, ficariam os livros de Camilo Castelo Branco, que o meu pai começou a ler enquanto belo jovem sonhador. Não sei bem o que o atraía: se a ousadia louca do autor, se as incontáveis paixões vividas e contadas, se a luz que dele vinha ainda que a visão lhe fosse sendo escurecida...

Amo-vos, livros do meu pai, porque, percorrendo as vossas páginas, encontrei vida humana e meandros complexos do amor, às vezes às escondidas, porque o tempo era de escassez mas fértil em proibições. Também lá estavam O crime do Padre Amaro e Os Maias, de Eça de Queirós, que li de ouvido à escuta, para que não visse interrompidos os momentos de paixão mais exaltada que eu não queria perder.

Livros do meu pai, vós sois pedras seguras que edificaram o meu amor pelos autores, pelos livros, pelas histórias, pelo conhecimento aberto do mundo.

Amo-vos, livros do meu pai, porque foram os pais do meu amor pelos livros.

A todos abraço, já sem receio de ser ridícula, mas com a alegria de todos poder ver e percorrer. Ainda que com laivos de tristeza de já não ter tempo para todos poder ler.

 


 

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Os ecrãs na minha cozinha

 

Hoje levantei-me cedo mas não tão cedo como me costumo levantar. Ao acordar, pensei no que tinha para fazer e descansei porque os afazeres não eram tantos como nos últimos dias. E assim pude tomar o pequeno almoço devagar, embora o do costume: café com leite (muito mais café do que leite), pão escuro com manteiga e (a minha) compota, desta vez de abóbora, maçã e amêndoa.

Liguei o rádio porque sou fã das crónicas diárias de Francisco Sena Santos, pelas 8.40, na antena 1. Falava das eleições de hoje no Reino Unido e do desejo de independência da Escócia. E senti vontade (deve ser o meu lado mau a manifestar-se) de que esse desejo fosse concretizado: assim o fazes, aqui o tens.

Em cima da mesa, o meu fiel (nem sempre, porque às vezes não me responde nem me fala!) computador para me abrir a um dos prazeres da manhã: ver os blogues amigos, não sem antes parar aqui um bocadinho. 

Ao lume, já pus feijão a cozer para fazer sopa e congelar o resto. Na televisão, que tenho sem som, mostra-se bola: verde, quase a saltar vitória; da azul, a tentar marcar; da vermelha (por estes sítios não se diz encarnado) para tentar voar mais alto.

E tanta coisa tão mais grave a acontecer no mundo. E eu aqui na minha cozinha, no meu pequeno mundo, embora me permita ir conhecendo o que se passa no grande mundo. Quase sempre o que se passa de mal, embora seja preciso sabê-lo também. E, curioso, levanto os olhos do pequenino ecrã e vejo na TVI uma conversa com um homem que, aos 62 anos, resolveu viajar através da Gap Year Portugal, uma ONG. E falava desse gosto com verdadeiro gosto. Quanto aos gastos não sei, porque só ouvi uma parte.

E outro ecrã ainda mais pequenino iluminou-se. Chegava uma mensagem do meu irmão, em semana de trabalho mais reduzida devido à pandemia. Pelo whatsapp, mandava este vídeo que partilho agora. Oxalá gostem, como eu gostei, apesar de a canção ser antiga. A tradução é de português do Brasil. E um bom dia, com ou sem ecrãs. Na cozinha ou em qualquer outro sítio. 

Será que é mesmo verdade que se estivermos bem, quem está próximo de nós também pode estar?

 

 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

As composições


Sempre gostei de escrever e de fazer composições. E, talvez devido a algumas inseguranças, ficava muito feliz quando os professores elogiavam os meus textos. Como também não escrevia muitos, para mim, era um estímulo ouvi-los e faziam-me bem ao ego.

Isto acontecia sobretudo em língua materna e em língua francesa. Contudo, um dia tive de fazer uma composição em francês sobre um dia de inverno numa casa de aldeia. Já não me recordo bem do que escrevi, mas lembro-me de que falei sobre uma lareira cujo 'fumo íntimo' saía pela chaminé.

 A professora achou o adjetivo 'íntimo' muito estranho, escreveu na folha a vermelho que o fumo nunca foi íntimo e repetiu-o em voz alta quando ma entregou. E não é que, passados tantos anos, sempre que vejo  fumo a sair de uma chaminé, em dia frio e de recolhimento, me interrogo se é ilegítimo o fumo significar intimidade.

Uma outra vez, neste caso em língua materna, fiz uma composição sobre um sonho. Quando acabei o trabalho, foi prazer o que senti quando o li e reli. Gostei. Tinha-me saído bem. Para aprimorar a composição, passei-a a limpo várias vezes. No final (naquela altura, ainda não tinha o gosto por finais inesperados), quem estava a sonhar podia, finalmente, ser ave. Terminava com reticências para que o voo fosse mais prolongado. E mais alto, se possível. Para mim, era a composição mais conseguida do ano. Sentia-me quase a voar. Como Fernão Capelo Gaivota.

Com um brilhozinho nos olhos, entreguei a composição ao professor, que era um padre de faces muito rosadinhas. Na aula seguinte, quando ma devolveu, disse-me apenas, sem ter nada escrito nem sublinhado: já fizeste bem melhor!

 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

A toalha e o ar que (não) se respira


Comprei-a, há uns vinte anos, numa feira ao ar livre em Goa. Foi barata e continuo a gostar dela. Era uma das minhas toalhas preferidas no tempo em que a família almoçava ou jantava mais vezes cá em casa. A feira tinha as vivas cores dos garridos tecidos, das frutas, dos saris e era ao ar livre. Agora milhões de indianos lutam pelo oxigénio para poderem respirar natural ou artificialmente. O mercado negro já entrou no negócio servindo apenas as castas com mais poder económico.

Os contrastes na Índia, embora eu lá tivesse estado como mera turista ocidental, eram gritantes. O luxo era vizinho da extrema pobreza. Nos sítios aonde chegavam os turistas para fotografar os pontos de todos os guias (quando lá estive, ainda eram as máquinas fotográficas que prevaleciam), acumulavam-se sobretudo grupos de mulheres e crianças que pediam esmola, com um olhar de doce negrura profunda. Bem perto do celebérrimo Taj Mahal, havia esgotos a céu aberto, rentes a casebres habitados. Em diferentes cidades, havia barbeiros a cortar o cabelo e a fazer a barba na rua. Também havia homens a lavarem-se com baldes de água, indiferentes a quem passava. Em Nova Deli, vi carnes penduradas para venda enxameadas de moscas. Quem entrava nos belíssimos templos dos diferentes lugares tinha de se descalçar e passar os pés pela água, quase sempre de um pequeno tanque com água parada que era para todos. No centro da cidade de Jaipur, bela cidade de todas as cores, de todos os ruídos e de todas as luzes, as pessoas amontoavam-se, sem se distinguir bem o que era rua do que não era. 

Jaipur -  Índia

Hoje revi o álbum que sempre fazia depois de uma viagem mais longa. Ontem, na Índia, foram vários milhares as vítimas mortais de covid 19.

Acho que só usarei a toalha que comprei na bela Goa quando a situação melhorar na Índia. Pouco importa - dir-se-á. Será apenas o mais ínfimo gesto de uma turista, que por lá andou durante uns dias, como milhões e milhões de tantos outros, que marca o desejo de que todos possam respirar.

 

domingo, 2 de maio de 2021

'História do Senhor Mar'


 
Mindelo - Vila do Conde


Postal enviado pelo Clube das Histórias

'Deixa contar…
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda…
Com muita onda…
E depois?
E depois…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
E depois…
A menina adormeceu
Nos braços da sua Mãe…'

 

Matilde Rosa Araújo 

 

sábado, 1 de maio de 2021

'Fui À Beira Do Mar'


 

José Afonso
 
'Fui à beira do mar
Ver a que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia
Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria
Desde então a lavrar
No meu peito a Alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia
Sentei-me a descansar
Enquanto

 

Mindelo - ontem

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Conversa com um peso na balança

 

- Doutor, posso pesar-me?

- Claro que sim.

- Quero ver se a balança é mais amiga do que a minha lá de casa.

- Mas é melhor tirar os sapatos. Também ajuda.

- Pois, tem razão. Convém.

- Então, que tal?

- Só encontro balanças inimigas!

 

terça-feira, 27 de abril de 2021

Uma mulher excêntrica que veio do frio e amou terras quentes de África


Karen Blixen

Quem não viu o filme 'África Minha', de Sydney Pollack, com os maravilhosos Meryl Streep e Robert Redford?  A autora do livro é Karen Blixen, nascida na Dinamarca, em 1885, e que se apaixonou por África, tendo vivido no Quénia durante 17 anos. Morreu no seu país natal, em 1962.


 'A festa de Babette' é outro filme, notável e premiado, baseado num conto da mesma autora. Uma cozinheira francesa vem para casa de duas irmãs puritanas e austeras.  Um dia, a cozinheira  prepara um banquete com saborosas iguarias da gastronomia francesa. Perante tais delícias, todos descobrem os prazeres da mesa que não conseguem conter.

A Festa de Babette

Há umas duas semanas, passou um documentário na RTP 2 sobre a vida e obra da escritora. Fica aqui o endereço se quiserem ver ou rever. Vale a pena.

https://media.rtp.pt/extra/pessoas/karen-blixen-mulher-quis-tudo/

Karen Blixen era uma mulher excêntrica, que, regularmente, bebia champanhe, comia ostras e fumava longos cigarros. No documentário, também é referido o seu livro Contos de Inverno, ao longo do qual a escritora se retrata, bem como pedaços do seu país e da sua época.

Lembrei-me de que o tinha, fui à estante e encontrei Novos contos de Inverno. Como o documentário me aguçou a curiosidade, estou a lê-lo, interrompendo a leitura do livro que anda há uns tempos atrás de mim.

Estamos na primavera, mas é uma leitura interessante. São histórias que decorrem em bosques, prados, casas senhoriais, salões culturais de múltiplas atrações, desenhando um retrato da vida sobretudo da alta sociedade no reino da Dinamarca em finais do século XIX/inícios de XX.

Talvez influenciada pelo documentário, parece-me ver a escritora em muitas linhas das três narrativas que compõem este livro de  170 páginas. E compreendi melhor o seu fascínio pelo calor de África e não só pelo seu país frio do Norte.

 

sábado, 24 de abril de 2021

'Chama-se liberdade...'

Postal enviado pelo Clube das Histórias

 

Preservação 

Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão! 

Miguel Torga

 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

As filas na minha sala de aula

        

        A escola estava dividida. A leste, ficava a parte das raparigas, a oeste a dos rapazes. No edifício, funcionam agora serviços da Câmara Municipal.

As meninas estavam divididas em três grandes grupos.  Nas filas de trás, ficavam as meninas pobres (algumas iam descalças para a escola) e com fracos resultados escolares; nas filas do meio, as meninas remediadas com mais sucesso em ler, escrever e contar; na primeira e única fila da frente, ficavam as meninas com mais posses, tivessem elas sucesso escolar ou não, e que iriam fazer o exame de admissão para continuarem a estudar no liceu ou na escola industrial e comercial.

Era assim na minha escola primária. Apesar de já ter sido há uma eternidade, ainda me revejo numa das filas do meio sentada de bata branca - eu gostava que tivesse entremeios bordados como as batas das meninas da frente, mas em casa diziam-me que os luxos eram para quem podia -  na minha carteira inclinada e com o tinteiro fresco de tinta. Era bastante boa aluna, mas não iria estudar, como as meninas da fila da frente. Ouvia que as raparigas eram necessárias em casa, mesmo quando vinha a correr para contar o que a D. Gracinda, a minha professora da 4ª classe, me tinha dito mais uma vez. Assim tinha sido, assim continuaria a ser.

Essas palavras da professora eram um estímulo e sempre me acompanharam: 'Tens de estudar, não podes ficar em casa sem estudar'. Não só por elas mas também, uns anos mais tarde continuei os estudos. Depois de aprender a bordar, a cozinhar, a limpar a casa, a costura (nunca tive jeito), de ler alguns livros, escrever uns poemas quase às escondidas, aprender um pouco de francês, recomecei a minha escolaridade com alguns constrangimentos. Se bem me lembro, um dos maiores foi o facto de os meus colegas serem bem mais novos do que eu.

As meninas das filas de trás da minha sala de aula da escola primária terão continuado na fila de trás da vida, apesar de sonharem igualmente; as das filas do meio terão lamentado muitas vezes não terem continuado a estudar; as da única fila da frente tiveram as portas abertas - umas aproveitaram, outras não.

Os mais céticos dirão que ainda há muitas discriminações, mas, para mim, um dos maiores bens já adquiridos foi a escolaridade obrigatória para todos. A educação é um dever e um direito. Esta conquista foi das mais importantes para Portugal pós-25 de Abril. Só pecou por tardia.

Para muitos jovens, este assunto é um não-assunto porque nem sequer admitem o contrário. Ainda bem que interiorizaram que a escolaridade é um bem a que todos têm direito.

Apesar deste grande avanço, existem ainda muitas divisões (e há quem as queira acentuar) de pessoas colocadas por filas, mas estou convencida de que a Educação e a melhoria de condições de vida para a desenvolver irão torná-la cada vez mais agregadora. Só assim o dia de amanhã pode ser melhor do que foi o dia de ontem.

 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Atividades que marcam!

 


Como já contei no passado dia 15, tive a alegria de ser convidada para trocar impressões com crianças do 1º ciclo do Agrupamento nº 1 de escolas de Gondomar, na Semana da Leitura que estava a decorrer. Um dos suportes do diálogo foi um livro que escrevi para crianças - Histórias da Clarinha, em formato de e-book.

Gostei muito da experiência, tal como já referi nesse post, e de receber um mail com alguns  marcadores. Não por estar lá o meu nome, mas porque marcam também o papel das bibliotecas escolares - lugares bonitos, coloridos, festivos, que mostram a criatividade de todas as crianças, as maravilhas da leitura, o carinhoso trabalho e acompanhamento dos professores, a importância de tarefas em conjunto, etc.

A partilha de atividades, como a Semana da Leitura (nem que seja por zoom ou fotos), e outras abrem as bibliotecas escolares à comunidade. As crianças não mais esquecerão os trabalhos que fizeram, os textos que escreveram, os desenhos que criaram, as palavras que ouviram, o reconhecimento que tiveram. As famílias, por sua vez, acompanham e valorizam a evolução das crianças. Todos ficam a saber mais e, de certeza, mais felizes. 

Conhecer os trabalhos das bibliotecas escolares permite acreditar num mundo melhor. O brilhozinho dos olhos e o entusiasmo sorridente de tantas crianças construirão uma boa memória futura.



Obrigada e um beijinho para todos.


                                               

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flowers

 

Sabe sempre bem olhar as flores. Seja sob que forma for. Vivam elas onde viverem em fértil primavera. Estas moram em Londres. 

Não é o caso destas, mas às vezes as flores surgem nos sítios mais improváveis. Tal como as pessoas.



segunda-feira, 19 de abril de 2021

Conversa sem veterinário dentro

 

- Mamã, e se a levássemos ao veterinário?

- Vai melhorar, vais ver.

- Deve estar muito doente. Está parada aqui no chão.

- Pode estar a descansar.

- Nunca vi nenhuma assim. Mamã, vamos ao veterinário.

- Ele trabalha com animais maiores.

- E por ser pequena não tem direito?

- Olha, olha, filha, já começou a voar.

- Que bom,  pousou agora naquela flor.

- Eu não te disse que a abelhinha ia melhorar?!