terça-feira, 14 de julho de 2020

A primeira viagem


Hoje, este blogue - Mariana - faz anos.
Daí ter-lhe preparado uma roupa nova.
"O Vouguinha"  foi o primeiro texto que publiquei, aqui, no dia 14 de julho de 2011.
Dias antes, pelo meu aniversário, as minhas filhas perguntaram-me
o que queria como presente.
Eu disse-lhes: 'gostava que me ajudassem a criar um blogue'.
E assim abri (com algum receio, mas carinhoso apoio inicial)
esta janela que, despretensiosamente, me ajuda a olhar
com mais atenção para dentro e para fora
e a gostar muito destes momentos de partilha.
Passados estes nove anos, quero dizer:
Obrigada, obrigada a todos
que me inspiram e visitam estas páginas.
O mundo sem este blogue seria, de certeza, igual;
mas eu, não.


A primeira foto - tirada do Vouguinha


 O Vouguinha
Hoje, fui, com duas amigas, fazer uma pequena viagem na linha do Vouga: o vouguinha, como algumas pessoas lhe chamam.
Saímos de Espinho por volta das nove e meia da manhã e, passadas umas duas horas, estávamos em Sernada do Vouga.
Ao longo da viagem, fomos vendo campos verdes de milho, algumas casas rente à linha, em avançado estado de degradação, longa extensão de mato e árvores a tapar o serpenteado do percurso…
Quem motivou também para esse olhar, na carruagem quase vazia, foi a D. Eduarda, uma funcionária simpática e expedita que, nos apeadeiros, saía do comboio para abrir e fechar as cancelas. Para além disso, sorria, falava com sensato à vontade, comunicando bem com os passageiros. A pedido, marcou três almoços, por telefone, no café da estação. Não sem antes informar que o prato do dia era arroz de legumes e costeleta grelhada.
Em Sernada, havia calor, linhas antigas ainda ativas, um velho comboio no centro aberto da estação, uma horta bem regadinha e verde, buganvílias frondosas, um rio com corrente fraca e interrompida, secas ervas daninhas, feijões a secar ao lado das vagens vazias, belos e antigos pinheiros mansos, algumas casas com silêncio de riqueza antiga…
E uma expressiva senhora magrinha no café da estação a dizer que espera que a linha não acabe.
Depois do almoço, deixámos o local, entrando num velho comboio onde se lê que presta serviço há 100 anos. E apetece (-me) dizer: se ainda há tantas flores frescas, muitas mais deverão florir.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Ler e partilhar


Tenho uma amiga que tem o bom hábito de partilhar algumas leituras.
Como é uma excelente leitora. dá assim a conhecer obras e autores muito bons,
mas, pelo menos para mim, muitas vezes desconhecidos.
Desta vez, partilhou o excerto seguinte.
Para além do prazer do texto, o autor - ou narrador - levanta problemas atuais e pertinentes.
Realço o que é abordado nas últimas linhas.
Obrigada, Idalina

“Tinha apenas onze ou doze anos quando o meu tio me ensinou a manejar a espingarda: nesse tempo, as crianças amadureciam cedo; com nove ou dez anos já ajudávamos no campo, nas obras, nas oficinas. Ao primeiro tiro, o coice da espingarda deixou-me uma nódoa negra no ombro e quase me atirou ao chão. Como seria de esperar, errei o alvo, e voltei-me para o meu tio, mortificado de vergonha. Esperava que zombasse de mim, mas não, não se riu, como eu temia; passou-me a mão pela cabeça, deu-me um piparote e disse-me: acabas de ganhar o poder de dar morte ao que está vivo, um poder que é na verdade uma desgraça, porque o verdadeiro poder – e esse ninguém o tem, nem mesmo Deus, porque aquela história de Lázaro é uma patranha – é devolver a vida ao que está morto. Tirar uma vida é fácil, qualquer um o pode fazer. Fazem-no todos os dias por esse mundo fora. Abre o jornal e logo vês. Até tu podes tirar uma vida, desde que melhores a pontaria, claro está (aqui, sim, sorriu, galhofeiro, semicerrando os olhos cinzentos e vivos que o bom humor rodeava de uma teia de aranha de pequeninas rugas). O homem, que é capaz de construir enormes edifícios, de fazer desaparecer montanhas inteiras, de abrir canais e erguer pontes sobre o mar, não consegue fazer com que uma criança morta volte a abrir as pálpebras. Por vezes, o maior e mais pesado é também o mais fácil de mover. Pedregulhos enormes na traseira de um camião, vagões carregados de metais pesados. Mas aquilo que guardas dentro de ti, os teus pensamentos e desejos, que aparentemente nada pesam, não há Hércules que consiga carregá-los aos ombros para outro lado. Não há camião que os transporte. Conseguir o amor de alguém que te despreza, ou a quem és indiferente, é uma tarefa bastante mais difícil do que atirá-lo ao chão com um murro. Os homens batem por impotência. Julgam conseguir por meio da força aquilo que não alcançam por meio da ternura e da inteligência. “

Rafael Chirbes, Entre Margens, 2015.


domingo, 12 de julho de 2020

Frescas flores from London




Também dávamos passeios na avenida


O hotel era Avenida. O nome mantém-se no cimo da porta principal deste hotel em ruínas, nas termas de Vidago.
Pouca mais resta intacto: janelas partidas, cortinas todas rotas, só ervas daninhas no que era jardim...
A porta principal está aberta, vendo-se a escadaria com muitos cacos espalhados.
Passei lá num dos últimos dias.
E impossível não recordar alguns dias que a família lá passou, há muitos anos, para tratamentos gástricos do meu pai.
Nessa altura, havia muita gente dentro e fora do hotel, as refeições eram à hora certa, as mulheres conversavam enquanto faziam renda e trocavam amostras, os homens liam o jornal e conversavam sobre os assuntos do dia, ou melhor, sem saberem ao certo de que dia eram, porque o lápis azul encarregava-se de apagar o que queria. 
Muitos serões eram dançantes, o que exigia indumentária mais cuidada. Julgo que havia música ao vivo que tocava muito chegadinhos slows.
Durante o dia, em horas de menos calor, também dávamos passeios na avenida, sobretudo até ao parque.


Não sou muito saudosa do passado, mas tenho muita pena de ver casas a cair de abandono. 
Estas e outras termas caíram em desuso.
Vão renascendo agora, sobretudo com serviços de relaxamento, mas a pandemia não ajuda.
Quando agora lá passei, olhando uma das janelas, vi um pedaço de cortina a esvoaçar fora do vidro partido com uma folha seca presa na ponta.
Parecia a mão de um fantasma a dizer adeus numa casa assombrada. A folha, entretanto, desprendeu-se do farrapo da cortina que continuou ao sabor do vento. 
Ou continuaria a acenar? 


quinta-feira, 9 de julho de 2020

Joan Baez & Mercedes Sosa "Gracias A La Vida"

"Gracias a la vida"

Letra

"Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros, que cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el oido que en todo su ancho
Graba noche y dia, grillos y canarios,
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario;
Con el las palabras que pienso y declaro:
Madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montanas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazon que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano,
Cuando miro al bueno tan lejos del malo,
Cuando miro al fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Asi yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes que es mi mismo canto,
Y el canto de todos que es mi propio canto

Gracias a la vida que me ha dado tanto"

Fonte: LyricFind
 
Compositores: Violeta Parra Sandoval


Aniversário

Painel de Júlio Resende

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... "

Álvaro de Campos - Heterónimo de Fernando Pessoa -, in Poemas

terça-feira, 7 de julho de 2020

Uma imagem para muitas palavras

      Agim Sulaj cartoonmouvement.com

Este cartoon saiu ontem no exame de Português, 12º ano,
como tema para desenvolvimento de um texto escrito.


Ennio Morricone – Gabriel's Oboe

sábado, 4 de julho de 2020

"Uma vida bonita" (?)


- Temos uma vida bonita, disse ela, explicando: 
Temos trabalho, não devemos nada a ninguém, passeamos aos fins de semana e todos os anos fazemos uma viagem de avião. 
- Este ano é que as viagens estão mais complicadas.
- Pois estão, já tinha dado um bom sinal e estou a ver que fico sem o dinheiro e a ver navios, em vez da  viagem que até nos fazia muito bem a ver se estávamos uns dias de acordo e sem andarmos zangados.
E continuou:
- Este ano, mudei as cortinas da sala e os azulejos da casa de banho. O que vale é que o meu marido sabe fazer essas coisas, sai mais barato e fica como deve ser.
- E a casa onde vivemos é importante.
- Se é, continuou. E está cada vez mais a meu gosto. Mas, mesmo assim, nem sempre somos felizes lá dentro. Estamos sempre a pegar-nos um com o outro. Eu gosto do amarelo, ele prefere o castanho; eu gosto das vidraças fechadas, ele quer tudo aberto; eu gosto de ver séries, ele é vidrado no futebol...
- É difícil encontrar gostos tirados a fotocópia. Tem de se negociar.
- Isso pra mim não dá. Mas, seja como for, temos uma vida bonita, porque temos trabalho, não devemos nada a ninguém, passeamos aos fins de semana e todos os anos fazemos uma viagem lá fora. Ou, melhor, fazíamos. Já nos chateámos por causa disso. Está-me sempre a dizer que eu não devia ter dado um sinal tão grande. Já lhe disse que na próxima vez é ele que trata disso. Respondeu-me logo que nem se sabe quando haverá a próxima. Só pra me irritar.
Mas, bem vistas as coisas, temos uma vida bonita.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Gosto muito deste espaço




Felizmente, há músicos assim!




Corrupção logo ao pequeno almoço


O pequeno almoço na mesa. Que bom, embora o de quase sempre.
Ligo a televisão e lá estão os casos muito falados nos últimos tempos e a cada passo acrescentados de outros: Isabel dos Santos, Sócrates,  Novo Banco, Ricardo Espírito Santo, dirigentes desportivos e tantos, tantos outros nomes ligados a crimes de corrupção que lesam o país a todos os níveis.
A 'eles' nada lhes diz, porque a ambição do poder e do dinheiro é desmedida, mas a muitos de nós toca também o mau exemplo que dão a tantas gerações. Os estragos que deixam são irreversíveis.
Grande corrupção para um país tão pequeno.
E muitos, alegadamente corruptos, habituaram-se a mostrar à opinião pública uma expressão tão angelical que espanta quem observa. E ouvir 'tenho a consciência tranquila' ainda é mais irritante.
Todos devemos usar máscara, porque o tempo é de pandemia, mas tantas máscaras em rostos a descoberto são vírus que causam muitas e graves doenças.
Será que ainda pode haver cura?


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Este texto não é para quem não acha piada a esqueletos


Hoje recebi um mail de uma amiga com um vídeo engraçado, dos que quase todos recebemos a cada passo.
O vídeo mostrava um homem na rua a dançar, tendo a ele presos dois esqueletos, um atrás e outro à frente, que repetiam os mesmos movimentos de dança, o que se tornava hilariante.
E lembrei-me do esqueleto que tenho em casa.
Não, não se admirem nem pensem mal de mim. Eu explico.
Comprámo-lo e, durante um par de anos, esteve no quarto de uma das minhas filhas, porque era lá que ela estudava para as suas aulas, incluindo anatomia. 
Depois desse tempo, o estudado esqueleto ficou a um canto e chegou a servir de cabide para casacos ou outra roupa. Coitado, passou a estar vestido, mas continuou sempre sem pele e só osso.
Um dia, quando já não estava a ser objeto de estudo, emprestei-o a uma colega cuja filha era estudante da mesma área da minha filha.
Quando mo devolveu, trazia o esqueleto nos braços, envolto num lençol que não o tapava todo, deixando ver as pernitas pendidas e o rosto mesmo nada bem parecido, como se sabe dos outros exemplares que todos conhecemos.
Pode imaginar-se a cena e o riso que provocou.
- Ainda tiram uma foto e enviam para a CMTV!!!
- Ai que vamos ser motivo de investigação!!!
Agora, já não está no quarto e aqui jaz, desculpem, está pendurado no seu suporte a um canto discreto de uma outra divisão.
E não tem servido de cabide.


Conversa com anjos dentro

- Oh, este anjo caiu-me da mão e partiu.
- Também era muito frágil.
- Pois era, mas tenho pena.
- Eu sei, claro.
- E já estava aqui há tanto tempo.
- Deixe lá, os anjos estão no Céu.


terça-feira, 30 de junho de 2020

A criança que há em mim/nós!


Maldita pandemia! Que não me deixa estar com a minha neta este verão.
Não estão nada fáceis os voos de Londres para o Porto. Nem do Porto para Londres. E para quem tinha viagem marcada pela TAP ainda pior.
Mesmo assim, comecei a organizar melhor o quarto da minha neta. Se não vier agora, pode ser que venha para o Natal. Se o maldito vírus não continuar a contagiar por terra, mar e ar.
E como ela gosta muito de livros de histórias, lá estão eles numa prateleira já sem pó. Uns são novos, outros eram da mãe e da tia e, claro, não podia faltar o que a avó escreveu, e que a Cristina Pinto ilustrou, e lhe dedicou.

Ora, quando faço estas arrumações e olho com mais atenção, tenho vontade de ler os livros de Sophia, de Matilde Rosa Araújo, de António Mota... e de escritores  jovens  que escrevem tão bem para crianças, como é o caso de Valter Hugo Mãe e de tantos outros.
Este meu gosto vem, com certeza, do nascimento da minha neta e talvez tenha a ver também com a tal criança que - dizem - existe dentro de nós.
É pena que essa existência não facilite a vinda da minha neta, após tanto tempo de ausência.
Mas, pelo sim, pelo não, é melhor não perder esse sentimento.
De outro modo, seria mais maldita esta maldita pandemia!