domingo, 1 de dezembro de 2019

Conversa sem fantasias

- Mãe, sabes que a Clarinha acredita no Pai Natal.
- Que bom. Quando eu tinha quatro anos também acreditava que as prendas eram trazidas pelo Menino Jesus.
- No Natal, a Clarinha vai pôr um sapatinho na chaminé e, quando acordar, vai ver o presente do Pai Natal.
- Que bonito. Vai ficar tão feliz. Quero ver a reação dela.
- Mas não lhe podes dizer a verdade nem te podes rir.
- Achas?
- Acho.
- Também acho que não tenho uma doença rara nas avós que é serem desmancha-fantasias!



Como seria bom haver 'universal consoada'!

 

Natal, e não Dezembro

 Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal'

sábado, 30 de novembro de 2019

Joan Baez - No nos moveran

Conversa em rede

- Fico angustiada ao ver casas já decoradas com a árvore de Natal.
- Não fiques. Dezembro só começa amanhã.
- O pior são as dezenas e dezenas de testes para corrigir.
- Pensa no momento da entrega e na libertação.
- Logo a seguir vêm mais trabalhos e parece que nunca há libertação.
- Existe, sim, ainda que breve, e enquanto dura...



Natal com corações e flores de papel!


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

"Fala do Homem Nascido" (1972) "Calçada de Carriche" (versão original) ...

Ainda há tantas 'Luísas'!

Calçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão - Poesias Completas (1956-1967)

domingo, 24 de novembro de 2019

Apesar de todas as inquietações, tenham(os) um domingo sereno!


Obrigada, IA, por este post e por tantos e tão bons do teu blogue
 'Bem-Vindos ao Paraíso'!

sábado, 23 de novembro de 2019

JP Simões - Inquietação

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Inquietação - Camané e Dead Combo

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Camané - "Porta Aberta"

José Mário Branco - Queixa das Almas Jovens Censuradas

Outono no ar e na terra


segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Turbulência(s)


Há tempos, uma amiga ofereceu-me este livro. Como é gentil, disse-me que, quando o viu, se lembrou de mim porque às vezes conto pequenas peripécias das minhas idas a Londres, incluindo nos aviões.
De facto, a turbulência continua a assustar-me e, como se aproximava nova viagem a Londres, só agora o li. E gostei. E pude verificar que nem só de turbulência de avião se trata.
Quando comecei a ler Turbulência, de 117 páginas e dividido em doze curtos capítulos, logo me pareceu ser de um autor jovem. A escrita é seca, descarnada, embora as tensões e sentimentos humanos estejam bem presentes.
As personagens deslocam-se de avião ou por motivos familiares, ou profissionais, ou amorosos..., havendo turbulências várias na hora da partida, de chegada ou quando se vivem os momentos esperados aos quais se juntam boas e más surpresas.
As viagens acontecem entre diferentes continentes.
A narrativa começa e termina em Londres. São estas as poéticas palavras do fim:
'Caminharam até à paragem de autocarro de Westbourne Grove. As nuvens moviam-se no céu, o sol ia e vinha e, quando chegaram à esquina, o vento espalhou as flores de todas as árvores da rua'.


David Szalay nasceu em 1974 no Canadá, vive na Grã-Bretanha, frequentou a Universidade de Oxford, está traduzido em 15 países e em 2018 foi finalista do Man Booker Prize.

Pode haver momentos felizes como estes?

Como habitualmente, levantei-me cedo e, também como é habitual, fiz e tomei o pequeno almoço. Tinha pão fatiado, compota feita por mim e pude saborear tudo devagar, enquanto ouvia as notícias.
E senti que o momento era feliz. E eu também. Para mais, está previsto sol a brilhar durante todo o dia.
Mas logo vieram algumas questões: 
O que valem estes pequenos momentos de prazer perante tempos intermináveis de contestação e violência como em Hong Kong, em Paris, em diferentes países da América do sul...
... perante incontáveis mentiras de poderosos governantes cujo ego é tão grande que lhes retira o respeito pela Humanidade?
O que vale o prazer de um pequeno almoço de café com leite, pão escuro com compota caseira se tantos confrontos se repetem e tantas dúvidas ficam por explicar?
Que bom seria que não fossem habituais.





quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A senhora do supermercado

De todas as vezes que fui ao supermercado, perto do centro de Londres, vi a mesma funcionária, de uns cinquenta anos, muito branca e de cabelo pintado de loiro.
Ela sempre me chamou a atenção por estar sempre a comunicar com os colegas ou com os clientes. A voz dela ouve-se bem e também os sorrisos e gargalhadas, mas sem nunca parar a tarefa que está a executar.
Se ela fosse mais nova, eu diria que começara há pouco a trabalhar, mas, pelo relacionamento com todos, vê-se que já lá está há muito.
Um dia em que esteja silenciosa, não faltará quem lhe pergunte se está doente. Se não estiver, será mais um motivo para desatar a rir.




terça-feira, 12 de novembro de 2019

A folha no lixo

A menina sentou-se à mesa.
Junto à janela, estavam três sacos com resíduos para reciclar.
Por cima do que que estava mais cheio, jazia uma folha de árvore de tons outonais.
Vendo-a, a menina disse pesarosa:
- Oh! A minha folha está no lixo.
- Deve ter sido a empregada, responderam-lhe.
A menina continuou, pensativa, a jantar e perguntou:
- Se a minha folha for para reciclar, dá outros presentes para a mãe?



sábado, 9 de novembro de 2019

Travessia da infância

Travessia da infância
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito

José Tolentino de Mendonça

Felizmente caiu o muro de Berlim

Quando eu era era criança, havia duas famílias que partilhavam um quintal há vários anos, embora cada família vivesse na sua própria casa. Uma das casas possuía um poço que servia as duas famílias porque o tempo ainda não era de água canalizada.
Um dia, dois homens chegaram com tijolos e começaram a levantar um muro, sem que as duas famílias tivessem dialogado sobre o assunto.
A família dona do poço pensava que tinha direito à sua privacidade.
A família que se habituara a atravessar o quintal para ir buscar água passou a ter de fazer um percurso maior.
O que era harmonia entre as duas famílias passou a ser ressentimento.

Há tantos muros. Uns pequenos como o da aldeia da minha infância; outros grandes a separar países ou povos, ficando sempre um poço de água do outro lado que é necessária para todos viverem melhor.
Em muitos casos, os muros impedem qualquer travessia ou alteração de percurso.

Felizmente o muro de Berlim caiu há trinta anos.
Oxalá caiam outros e outros não cheguem a erguer-se.
Será ainda possível? 

A Estrada Branca


Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

José Tolentino Mendonça, in 'A Estrada Branca'