quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Um adeus português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde mores ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal.
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O’Neill
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde mores ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal.
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O’Neill
terça-feira, 12 de fevereiro de 2019
Um Céu e Nada Mais
Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
Ana Luísa Amaral, in “Às Vezes o Paraíso”
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
Da verdade do amor
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito
pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados
não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor
José Tolentino Mendonça, in "Baldios"
sábado, 9 de fevereiro de 2019
Conversa ao pé da porta
- Li uma entrevista com uma escritora que se fechava em casa para escrever.
- Devem ter acreditado nela desde pequena.
- Ou ela foi muito corajosa e conseguiu o que achava melhor.
- Pois. Mas quando isso acontece, acontece também amor.
- Devem ter acreditado nela desde pequena.
- Ou ela foi muito corajosa e conseguiu o que achava melhor.
- Pois. Mas quando isso acontece, acontece também amor.
insinceridade
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco
nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés
a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio
sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada
por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.
Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019
blues da morte de amor
já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
Vasco Graça Moura
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019
Conversa ao pé da porta
- Viu ontem uma entrevista com uma enfermeira que apoia a greve?
- Sim, ela acha que os enfermeiros são mais importantes do que os médicos.
- Faz-me lembrar uma pergunta de antigamente.
- Sim? Qual?
- Gostas mais do teu pai ou da tua mãe???
- Sim, ela acha que os enfermeiros são mais importantes do que os médicos.
- Faz-me lembrar uma pergunta de antigamente.
- Sim? Qual?
- Gostas mais do teu pai ou da tua mãe???
terça-feira, 5 de fevereiro de 2019
Conversa ao pé da porta
- O meu amor por ela nunca morre.
- Que bonito. Pode sorrir à vida.
- Queria era que ela sorrisse para mim.
- Mas a vida até lhe sorri.
- Ela é que não.
- Que bonito. Pode sorrir à vida.
- Queria era que ela sorrisse para mim.
- Mas a vida até lhe sorri.
- Ela é que não.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
Este mar é em Mindelo
Conversa ao pé da porta
- Estive em Londres este fim de semana.
- Estava mais frio do que aqui?
- Sim, vi ruas ainda com pedaços de neve e algum gelo.
- Ui! Pode ser escorregadio e perigoso.
- Sim, claro. Tal como o Brexit, ninguém sabe quem vai cair.
- Estava mais frio do que aqui?
- Sim, vi ruas ainda com pedaços de neve e algum gelo.
- Ui! Pode ser escorregadio e perigoso.
- Sim, claro. Tal como o Brexit, ninguém sabe quem vai cair.
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