quinta-feira, 7 de agosto de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR


          9 – Uma visita inesperada



Uns dias depois, bateram à porta de Domingos, que regressara minutos antes de um pequeno passeio a pé, enquanto a cidade renascia e ainda mostrava matinal humidade azul. Quem seria? Não costumava receber visitas. Com os vizinhos, falava quando se cruzava com eles, na rua. Seriam queixas por causa do gato, que voltava a fazer das dele? Abriu a porta da varanda e espreitou.
Deparou com um grupo grande. Uns de mochila, outros de carteira a tiracolo. Todos com ar de turistas que vão revistando e revisitando lugares históricos das cidades. Andavam na rota do Barroco. Caminhavam rumo à Igreja da Misericórdia.
Isto foi explicado por Lurdes que, ficando um pouco para trás, batera à porta de Domingos. Lembrava-se de, uma vez, ele lhe ter dito onde morava. De nada se tinha esquecido.
Domingos manteve-se na varanda.
“Como passei por aqui, lembrei-me de tocar”. Quer ir ter connosco aos Clérigos? A seguir à Misericórdia, visitaremos a Igreja. O padre Arménio será o nosso guia. Promete. Venha daí”.
Que não, obrigado pelo convite, tinha chegado há pouco. Ficaria para outra oportunidade. Gosto em vê-la. Boa visita. Então, adeus.
Antes de Domingos fechar a porta, olhou para a varanda de Flor. Sentiu quase pudor. Como encararia ela o reatar da amizade com Lurdes, sendo esta tão avassaladora? À tarde, mergulhou na leitura, no alfarrabista habitual, mas teve de voltar a ler, várias vezes, a mesma página. Estava desconcentrado.

(Continua, com Domingos, uns dias depois, a receber uma chamada, igualmente inesperada).



Venha o verão!



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR



8 – Quando Domingos entrou em casa, foi logo procurar o telemóvel. Abriu-o. Duas chamadas e uma mensagem de Flor. Que tinha chegado bem. Que o pai, ao vê-la, tinha ficado feliz. Que lhe dissesse o que se passava com ele porque não respondia.
Domingos logo marcou o número.
“Sim? Flor, desculpa por não ter atendido nem respondido à mensagem.”
“ Porquê? Não ouviste?”
“Fui fazer uma caminhada e demorei mais tempo do que contava”.
“Foste até à eternidade?!”
“Não estejas zangada, Flor. Fui às Antas”.
“Havia algum motivo especial para lá ires? Nunca lá fomos nem mostraste vontade de ir.
“Precisava de caminhar, Flor. Quando regressas?”
“Ainda não sei, porque encontrei muita coisa à minha espera”.
“Fazes-me tanta falta, Flor”.
“O meu pai diz o mesmo e quero vê-lo um pouco mais feliz. Amanhã, falamos de novo. Pode ser? Estão a bater à porta”.
“Até amanhã, Flor. Deixa-me só dizer-te uma coisa que poucas vezes disse ao longo da minha vida: amo-te, Flor”.
“Até amanhã, Domingos. Tenho mesmo de ir abrir a porta”.

(Continua, com Domingos olhando os quintais vizinhos e ouvindo o eco das suas últimas palavras).


FÉ, nas árvores




DOMINGOS MIRA FLOR



7 – Um reencontro

Chegou cansado à Praça Velasquez. A caminhada havia sido muito longa. Com Flor, não se teria atrevido a ir tão longe. Ela gostava de andar, mas, dizia, não lhe serviam botas de sete léguas. Nesses instantes, ele sorria e dizia carinhosamente: “Podemos ficar por mais perto, Flor. Logo que ande contigo, ando com Deus”.
A praça fez-lhe lembrar tempos idos em que ia ao estádio das Antas com o pai. Punha o cachecol do FCP e a tarde de domingo era de festa, sobretudo em jogos de cantada e partilhada vitória. No regresso, passavam todo o tempo a falar do jogo, das cegueiras do árbitro, dos insultos dos rivais, das hipóteses de ganharem o campeonato… Eram tardes exaltantes que moldavam dias felizes.
Como os que vivera nos últimos tempos com Flor. Os da infância tinham passado; os recentes, não sabia se iriam ser retomados.
Deu uma volta ao jardim, olhando em redor, detendo-se nas diferenças que encontrava na praça. Entrou no café Bom Dia e pediu uma água. Como outras pessoas que estavam sós, sentou-se voltado para a porta, olhando as velhas árvores.
Na esplanada do exterior do café, um grupo de mulheres trocava impressões ruidosamente. Olhou-as. Parecia estar a ver um filme a que tinham cortado o som, antepondo um vidro entre o espectador e a ação. Eram professoras, de certeza. De repente, uma evidenciou-se perante o seu olhar. Não era possível. Tinha envelhecido, mas não perdera o sorriso simpático. Era Lurdes, a amiga que conhecera na livraria Latina, na rua Santa Catarina, há muito anos. Ficaram amigos por algum tempo, mas, enveredando por caminhos mais solitários, Domingos deixara de a ver.
Olhando-a, lembrou-se de Flor. Mesmo que Lurdes o visse, não ficaria a conversar, embora soubesse que ela era faladora e curiosa. O dia era-lhe pesado para palavras leves que não queria proferir.
Mas como o olhar é livre, o de Lurdes voou sobre as mesas e cruzou-se com o seu. Logo se levantou para o vir cumprimentar.
“Então, o que é feito de si? Há tanto tempo! Que boa coincidência! Também costuma vir aqui? Nunca o vi por cá!”
Que não, há muito que cá não vinha. Tinha lá chegado quase por acaso, porque precisava de caminhar e espairecer. Sabia que caminhar lhe fazia bem. Agora, tinha de ir. Ainda era longo o percurso até casa, embora fosse sempre a descer.
“Gostei muito de a ver”.
“E eu também de o voltar a encontrar. Venho sempre aqui à quarta-feira de manhã. Apareça. Temos muitos assuntos para pôr em dia”.

(Continua, com Domingos a lembrar-se que se tinha esquecido do telemóvel, na mesinha junto à varanda).

Crescendo de azul




DOMINGOS MIRA FLOR

6 – Novos rumos

Após a partida do comboio, Domingos regressou a casa. descendo, cabisbaixo, a rua das Flores. Abriu a porta e entrou em silêncio. Passando pelo gato, sem o ver sequer, foi até à varanda e ficou, por momentos, a olhar a casa de Flor, agora de janelas bem fechadas. Entre os vidros e as portadas, viam-se as cortinas de linho bordadas; a varanda sem as plantas aromáticas que, minutos antes da partida, haviam passado para a casa de Domingos para que nem a sede nem o abandono as secassem.
Domingos foi buscar água e regou-as. Queria que, quando Flor regressasse, tudo estivesse viçoso. E que as aromáticas dessem gosto à sua comida que ela confecionava em pequenos tachinhos com muito uso, mas luzidios.
Pensativo, olhou o rio. Que passava como as suas lembranças. No dia anterior, pensaria que, a essa hora, estaria bem perto do jardim da Cordoaria, no seu passeio matinal, com Flor a seu lado, a falar das notícias e dos livros que andavam a ler.
Porém, via-se de novo sozinho, sem ninguém tão íntimo com quem pudesse compartilhar os seus sentimentos. Flor havia sido uma luz que se abrira para ele, mas que, como outras luzes, se tinha afastado. Queria pensar que a separação seria temporária, mas era assaltado pela ideia recorrente de que a felicidade, para ele, nunca seria duradoira.
Pensou em fazer uma caminhada. Talvez ir até ao café da Porta do Olival tomar um pingo e comer a nata do costume, mas, se fosse lá sozinho, o caminho era curto e tudo lhe pareceria amargamente solitário. Não, iria andar a pé, mas noutra direção. A caminhada teria de ser longa, para libertar melhor a tensão e aliviar a mente. Por que não ir até à Praça Velasquez? Iria ao café Bom Dia. Descansaria um pouco e regressaria pela hora do almoço. À tarde, poderia ir, de novo, ao alfarrabista da Misericórdia, como gostava de dizer quando se referia à livraria Chaminé da Mota.
Mas a vida não é uma página em que se possa prever, ao certo, o número de palavras.

(Continua, com Domingos a revisitar outros dias do passado. E não só).




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Flores nas dunas