quarta-feira, 4 de julho de 2012
O rico e o remendão
Era
uma vez dois vizinhos que viviam numa terra vulgar. Mas não viviam os
dois da mesma maneira! Um era o mais rico senhor daquela terra e muitas
noites levava sem poder dormir, preocupado com as suas riquezas, com a
sua casa cheia de preciosidades…
O
mais pobre era mesmo muito mais pobre: não tinha quase nada e vivia
numa casa velhinha, à porta da qual tinha montado uma espécie de
oficina de remendão. Ele remendava tudo: carteiras velhas, sapatos,
albardas, maletas, enfim, trabalho assim era coisa que nunca faltava! E
todo o dia cantava! Tivesse muito ou pouco trabalho, nunca deixava de
cantar!
Na
casa ao lado, o rico senhor não compreendia como é que com a sua vida
de sacrifício e canseira, e tanta miséria que bem se via, o seu vizinho
passava o dia em cantorias!!! Aquilo fazia-lhe imensa espécie...
Um dia mandou chamá-lo à sua presença e disse-lhe:
− Ó mestre, vossemecê quanto é que ganha num ano inteiro?
O remendão coçou a cabeça, o que era sinal de que não fazia a mínima ideia, e disse:
−
É impossível calcular isso... pois há tantos domingos e tantos
feriados que as contas ficam muito complicadas...
Mas o homem rico insistiu:
− Ó mestre, mas diga assim mais ou menos...
Respondeu o remendão:
− Mais ou menos, mais ou menos, ganho o que me dá para o comer do dia! Só sei que não morro de fome, lá isso não!
Então o homem rico disse-lhe:
− Pois tome nota: eu quero que vossemecê viva sem cuidados e com fartura, pois bem o merece, já por tanto ter trabalhado!
E dizendo isto, entregou-lhe uma bolsa bem recheada de moedas de ouro.
O
remendão foi às nuvens!!! Nem sabia como havia de agradecer! Julgou-se
o homem mais rico da terra e correu para o seu telheiro a enterrar a
bolsa de moedas. A partir daí, nunca mais cantou, pois o menor ruído o
punha em sobressalto, com medo dos ladrões... Deixou de ter o sono
ferrado e descansado que sempre tivera, e então cantar?! Isso foi coisa
que nunca mais fez, com medo de dar nas vistas a sua alegria!!!
Um
dia reparou que até o andar do seu gato o fazia tremer... Então foi
ter com o vizinho rico e levou-lhe a bolsa de moedas de ouro,
dizendo-lhe:
−
Muito lhe agradeço, meu senhor, a sua bondade, mas aqui tem o seu
dinheiro. Guarde-o, que eu por mim guardarei as minhas cantorias e o
meu rico soninho descansado!!!
E assim, o remendão
Preferiu o que mais queria.
Mais que a riqueza enterrada,
Vale a sua cantoria!
Maria Alberta Menéres
100 Histórias de todos os tempos
Porto, Ed. Asa, 2003
segunda-feira, 2 de julho de 2012
"Árvores como nós"
Existe uma
planta chamada agave. Alguns exemplares vivem no Jardim Botânico, no Porto.
A planta-mãe
cresce durante dez anos.
Enquanto se eleva em direção ao céu, vai espalhando sementes que germinam e crescem à sua volta.
Enquanto se eleva em direção ao céu, vai espalhando sementes que germinam e crescem à sua volta.
Depois de um
ciclo de dez anos, a planta-mãe morre para que o alimento não falte aos seus
rebentos.
Dos filhotes
crescerão outras árvores e destas, a seu tempo, novas crias.
domingo, 1 de julho de 2012
Carta a Ruben A.
Que tenhas morrido é ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem
Quando – pela primeira vez – bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em plenos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida
Mas sempre trouxeste contigo o desconexo
De um viver que nos funda e nos renega
- Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar – como oferta – a infância antiga
A casa enorme vermelha e desmedida
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias
As tílias eram como catedrais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais
Morangos e muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas
Desgarrada era a voz das primaveras
Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce
"O Amor é de outro Reino"
Ruben A. (Jardim Botânico, no Porto)
"O amor é de outro reino. (...) Da amizade, do amor, do encontro de duas pessoas que se sentem bem uma ao lado da outra, fazendo amor, falando de amor, trocando amor, conversando de amor, falando de nada, falando de pequenas histórias código de ministros com aventuras de aventuras sem ministros conversa alta e baixa de livros e de quadros de compras e de ninharias conversas trocadas em miúdos ouvindo música sem escutar música que ajuda o amor o amor precisa de ajudas de ir às cavalitas de andas de muita coisa simples amor é um segredo que deve ser alimentado nas horas vagas alimentado nas horas de trabalho nas horas mais isoladas amor é uma ocupação de vinte e quatro horas com dois turnos pela mesma pessoa com desconfianças e descobertas com cegueiras e lumineiras amor de tocar no mais íntimo na beleza de um encanto escondido recôndito que todos no mundo fizeram pais de padres mães de bispos avós de cardeais amor agarrado intrometido de falus com prazer de alegria amor que não se sabe o que vai dar que nunca se sabe o que vai dar amor tão amor".
Ruben A., in 'Silêncio para 4'
sábado, 30 de junho de 2012
A prova
Sábado à
tarde. Numa das ruas perpendiculares à Ribeira do Porto, há uma exposição de pintura. Entramos.
Para além dos
quadros que podem ser admirados, há também prova de um vinho do Douro. As
garrafas e os copos estão dispostos sobre um balcão. Aceitamos a oferta.
Do lado de
dentro, está o pintor – um homem que parece reservado e preferir o silêncio
doméstico.
Do lado de
fora, a mulher dirige-se às pessoas que entram, mostrando à vontade, convicção
e simpatia. Com entusiasmo, tenta vender o vinho e mostrar os quadros
produzidos pelo marido.
Enquanto
provamos o vinho, falamos com o pintor – um professor de Educação Visual já reformado.
Fala como que a
pedir licença, envolvendo as palavras em sorrisos.
Diz que a exposição dos quadros foi uma prenda da
mulher quando fez 65 anos.
Quando saímos, felicitamos os dois pela prova... de amor.
Os Jardins de Sophia (de Mello Breyner Andresen)
Em bela e luminosa manhã de sábado, um grupo de amigos (e amigos da escrita e da leitura) visitou o Jardim Botânico,
no Campo Alegre, no Porto.
A quinta pertenceu ao avô de Sophia. Sobretudo em criança, a poeta brincava nestes espaços que, mais tarde, viriam a entrar em muitas das suas histórias: O rapaz de bronze, Noite de Natal e muitos mais.
Para além das inúmeras variedades de plantas, dos espaços (quase) míticos, da beleza florida, existe uma cafetaria com mesas voltadas para um dos jardins (construído à imagem de uma das carpetes que existia na casa).
Está aberto das 10 h às 18h.
Um belíssimo espaço para ler.
Ou percorrer alguns dos caminhos de Sophia.
E por que não apenas olhar?
sexta-feira, 29 de junho de 2012
A bicicleta
O que mais lhe custava era interromper os
passeios quase diários estrada fora. Durante algum tempo, não poderia percorrer os habituais quilómetros de bicicleta, depois de um dia de trabalho ou ao fim de
semana.
Sentir o vento no rosto, a física agilidade feliz
aos sessenta anos, o bem humorado
convívio com os colegas do grupo de ciclistas.. Dava-lhe tanto prazer andar de
bicicleta que nunca tinha pensado na possibilidade de deixar de o fazer.
E disse com doçura meneando a voz e a cabeça:
Quando fiquei doente, pensei: ai que não vou
poder andar mais de bicicleta. É que não imaginas como me sinto bem quando saio para
dar um passeio de bicicleta. Acho que nem em criança conheci um prazer assim. A
vida deu-me coisas muito boas, mas a bicicleta é especial. Ela leva-me onde
quero sem nada exigir em troca. Sem ter de marcar horários de partida ou de chegada. Faz parte de mim. Sem
ela, os meus dias eram vazios e parados.
Já sei que me vais dizer: claro que em breve
vais retomar os teus passeios na tua querida bicicleta.
E assim foi.
Não precisava de palavras de circunstância, mas de acreditar que a bicicleta continuava, em casa, à sua espera.
quinta-feira, 28 de junho de 2012
quarta-feira, 27 de junho de 2012
O pai de Andi
Imagem da net
Não era normal! Os três amigos de Andi tinham pais famosos.
O pai de Alexandre era cirurgião. Um daqueles médicos a quem as pessoas ricas e importantes recorrem para tirar o apêndice.
O pai de Rafael tocava violino. Não apenas por prazer. Dava concertos pelo mundo inteiro e era sobejamente conhecido.
O pai de Gino era um realizador de cinema. Diz aos atores o que eles têm de fazer, foi como Gino, com certo orgulho, explicou a profissão do pai.
O pai de Andi era vendedor numa loja de roupa para homem. Um pouco baixo, usava óculos dourados e não era nada conhecido.
Andi
só o via ao fim de semana, porque os pais tinham-se separado. Quando
os colegas falavam dos pais, Andi ficava calado. O que é que ele havia
de dizer? Na passada terça-feira, o meu pai vendeu um fato de flanela cinzenta?
Nas
férias grandes, Alexandre foi para África, porque o pai queria
fotografar leões. Rafael foi para Nova Iorque, onde o pai ia dar um
concerto. E Gino foi para a Sérvia, onde o pai estava a rodar um filme.
O
pai de Andi queria ir para a Toscânia. Pela sua bela paisagem e porque
gostava de visitar igrejas antigas. Andi não tinha bem a certeza se
queria ir, mas estava combinado passarem juntos umas férias por ano.
Por
isso, Andi foi com o pai para Itália. Para dizer a verdade, até gostou
bastante. Ficaram numa terrinha entre vinhas, davam passeios e
visitavam igrejas antigas, mas não em demasia.
Certo
dia, que seria diferente dos outros, passeavam pelo mercado de uma
pequena aldeia. Compraram tomates e alhos para o molho do esparguete, e
ainda pêssegos e uvas para a sobremesa. Num pequeno bar, o pai de Andi
tomou café e Andi bebeu um sumo de laranja, que em Itália se diz
“aranciata”. Dirigiram-se depois, devagar, para o local onde o carro
ficara estacionado.
Andi
foi o primeiro a ver os pássaros. Parou, horrorizado. Numa parede
batida pelo sol estavam dependuradas cerca de vinte minúsculas gaiolas,
cada uma com um pássaro fechado lá dentro. Pardais, tentilhões, um
melro. Num desespero evidente, arremessavam-se para cima e para baixo
contra as grades.
— Que maldade! — exclamou Andi.
O pai de Andi olhou pensativamente e não proferiu palavra.
De
resto, mais ninguém parecia incomodar-se com os pássaros encarcerados.
As pessoas passavam, falavam, riam, e não prestavam a mínima atenção
àquele arremeter e piar de desespero.
O
pai de Andi aproximou-se de uma gaiola. O pardal, prisioneiro e em
pânico, tentava bater as asas, mas a gaiola era tão pequena que as asas
embatiam contra as grades de madeira. Num gesto rápido e resoluto, o
pai de Andi abriu a porta da gaiola. Teve de retirar primeiro o
recipiente da água e só depois é que pôde abrir a porta de arame. O
pardal mais parecia dar cambalhotas do que voar. Pousou por um instante
na rua, atordoado, mas depois voou e desapareceu. O pai de Andi abriu
todas as gaiolas. Uma por uma.
— Estão a olhar para nós — disse Andi. — Despacha-te!
Mas só quando abriu a última gaiola é que o pai pegou no saco de papel que tinha pousado no chão e deu a mão a Andi.
— Não vão deixar-nos passar — sussurrou Andi, com medo.
Um
pouco mais à frente, havia pessoas paradas na rua, que falavam em voz
baixa umas com as outras e olhavam para eles com um ar severo.
Agora vamos precisar do Super-Homem, pensou Andi, deitando um olhar de soslaio ao pai. Que
esquisito! Teria o pai crescido em tão pouco tempo? Parecia muito
maior do que de costume, muito decidido. E fazia cá uma cara…
Exatamente como o Super-Homem, antes de um duelo de vida ou de morte.
Contrariadas,
mas sem nada fazerem, as pessoas da rua afastaram-se, deixando o
caminho livre a Andi e ao pai. Quando os dois dobraram a esquina,
estugaram o passo e, em poucas passadas, chegaram ao carro. Andi voltou
a olhar para o pai para se certificar. Será que alguém na idade dele pode ainda crescer? E tão de repente? Deve ter sido uma ilusão!
Deixaram
a pequena aldeia para trás, mas nenhum dos dois falava. Andi olhou
mais do que uma vez discretamente pelo espelho. Ninguém a persegui-los!
À sua frente, estendiam-se montes raiados de cor-de-rosa, violeta e
azul-claro. Ciprestes escuros erguiam-se contra o azul leitoso de um
céu de verão. Os dois continuavam ainda em silêncio. Mais tarde,
sentaram-se debaixo de uma oliveira, a comer pêssegos sumarentos. Sobre
as suas cabeças, pousado num ramo coberto de folhas prateadas, cantava
um pássaro.
— Este pertence ao teu grupo de admiradores! — disse Andi ao pai.
Como está ansioso por ouvir o que Alexandre, Rafael e Gino vão dizer!
Edith Schreiber-Wicker
Brigitte Meissel; Wilhelm Meissel (org.)
Fernweh
Wien, Herder Verlag, 1980
(Tradução e adaptação)
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terça-feira, 26 de junho de 2012
(Em dia de forte calor, vindo do norte de África)
um luar essencial
uma fonte de manancial vivo
É uma mão emocionada que guarda o crepúsculo
para pousar sobre os meus ombros
É uma voz de soluço e de riso
um murmúrio para os lábios que tremem
O único horizonte de minha pátria
é uma ternura contida
nos olhos negros
uma lágrima de luz sobre os cílios
É um corpo de tormentos, precioso
como um tufo de raízes
vizinho da terra quente
É um poema
gerado pela ausência
um país por nascer
à margem do tempo e do exílio
depois de um sono profundo.
Tahar ben Jelloun
(nascido em Marrocos, 1944)
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