terça-feira, 13 de março de 2012

Viagem

 É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...


Miguel Torga, in 'Diário XII'

domingo, 11 de março de 2012

Mão do Homem/mão de Deus

Imagens tiradas da net: 
Central Park, Hyde Park, Goa, Macau, Paris, S. Petersburgo

sábado, 10 de março de 2012

Confissões

Há muitos anos, eu  trabalhava a uns trinta quilómetros de casa. Entre colegas, combinámos levar o carro à vez. Para além da poupança na gasolina, as viagens eram mais animadas. Falávamos das peripécias do dia, das notícias, da família, dos trabalhos que íamos executando...

No regresso, falávamos muitas vezes de receitas de cozinha: de pratos que sabíamos fazer, de que gostávamos, etc.

Este tema era quase sempre no regresso porque devia ser quando estávamos mais libertos e também com alguma fome.

Mas os temas podiam ser bem diferentes. Às vezes,  falávamos sobre religião, porque alguém defendia as vantagens da confissão dentro dos preceitos da religião católica, isto é, a um padre. E as razões apresentadas eram sobretudo o facto de se evitar perder tempo e gastar dinheiro num psiquiatra. E entre sorrisos, havia insistência: então, não acham que é melhor? E é de graça! E não tem de se marcar consulta!

Quando passo nessa estrada, ladeada de árvores de mimosas bem amarelas no final do inverno, lembro-me dessas nossas conversas. Entre vozes e gargalhadas, também partilhávamos as nossas confissões.

Comentário:
E também, do bacalhau com natas da Marília... Era cá uma fome, que até o José António dizia que ia sair dali feito num oito. Onde estará este colega? Que saudades desse tempo! Se pudesse voltar atrás, metida numa máquina do tempo e viajar até ao ano de 1980 à la recherche du temps perdu, ia de certeza encontrar esses colegas ausentes hoje, mas sempre presentes na minha memória. Fizeste bem em recordar aqui esses espaços e esses tempos felizes. Obrigada por teres partilhado também comigo alguns desses momentos. CS em Confissões

Porque hoje é sábado...

 Renoir
O dia da criação
...
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado
...
Vinicius de Moraes

Exceções e adaptações


     Muitos políticos, pela sua expressão facial, revelam muito do que são: construtores de mentiras habilidosas, egocêntricos, calculistas... Aplica-se-lhes bem o provérbio: Bem prega frei Tomás, olhem para o que diz e não para o que faz.
     Estão tão narcisicamente encantados com o seu poder e com a sua imagem que nem se lembram que muitos dos seus atos pioram o mundo em vez de o melhorarem. Isto acontece  também quando jogam com as palavras e argumentos para encontrarem muitas exceções à regra, como é o caso do não corte nos salários dos funcionários da TAP e da CGD. Porta-vozes destas decisões vêm dizer que não são "exceções" mas "adaptações"...
      Para além de erros que cometem, tratam os comuns dos mortais como parvos e distraídos.
     Para além disto, figuras que representam todos os portugueses, como o PR, mostram, em muitos momentos, a pequenez do espírito de vingança.
      Há quem defenda que os cargos de muitos governantes se devem ao facto de a sociedade civil se demitir com frequência.
      De facto, seria bom que, no contexto atual, houvesse políticos que fossem exceções, mas, muitas vezes, não passam de adaptações de modelos já gastos.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A caixinha de música

Julgo que nunca tive nenhuma caixinha de música. Julgo também que a maioria das pessoas nunca teve uma caixinha de música. Também não é fundamental que se tenha uma caixinha de música. Mas há coisas que são importantes, ainda que não essenciais, tais como uma caixinha de música.
Este objeto  - quase mágico, quase mítico - tem vindo à baila com frequência entre um grupo de amigos por causa do livro de Maria Clara Miguel - O tesouro.
Ora, na busca do tesouro, as personagens deparam-se com uma caixinha de música há muito existente num velho casarão. Estaria lá escondido ou não o tesouro?
Um livro pode ser um tesouro e ajudar a recuperar muitos outros. Tal como os sons encantatórios de uma caixinha de música. A rodopiar, leve e suavemente, na nossa memória.

Comentários: 
Afinal, não sou só eu que nunca tive uma caixinha de música! No tempo em que eu tinha idade para a ter, os meus pais deviam andar mais preocupados com o trabalho do que com comprar-me brinquedos. Pois é, naquele tempo, os brinquedos estavam no sapato em cima do fogão no dia de Natal, uma vez por ano! Hoje, todos os dias é Natal para a maioria das crianças. Será que amar os filhos é dar-lhes tudo e esquecer que eles existem enquanto pessoas? Mas, um dia ainda vou comprar uma caixa de música para ver se também eu encontro o meu tesouro. CS em A caixinha de música

Quando era criança, lembro-me que a minha mãe tinha uma caixinha de música com uma bailarina, quando se levantava a tampa, começava a ouvir-se a música e surgia a bailarina que rodopiava ao som da música. E entretanto arranjei uma "caixa" de música que é um farol. Gosto de caixas de música :) em A caixinha de música Redonda

A caixinha de música da minha infância não era lá de casa!
Pertencia a uma senhora - a dona Nezinha (Que Deus a tenha!)- amiga  da minha tia Guilhermina (tia-avó, que Deus a tenha também!) que me criou.
Quando íamos a casa da dona Nezinha, ela emprestava-me a caixinha: a princípio aos olhos; mais tarde para as mãos. Era um pinaninho que, quando se abria, exibia uma pequena bailarina que dançava ao som, penso eu, do Lago dos Cisnes.
Por baixo das teclas, havia uma pequena gaveta que funcionava como guarda-joias. Não sei se eram de valor. Só sei que me ofuscava com o brilho das peças...
 E era um pequeno tesouro, que, mesmo não sendo meu, me fazia feliz.
Penso que a caixinha de música da Maria Clara Miguel foi pedida emprestada àquela que foi "minha" na minha infância!
Afinal, nada é por acaso!
Bjinhos para a Mariana e a Dolores
IA

Olhos de água


Chegou mais tarde e entrou na sala de aula sem dizer nada. A professora não gostou e olhou-a com aridez no olhar. Ultimamente, andava estranha e hoje nem se tinha dignado sequer a dizer bom dia e a pedir desculpa pelo atraso. Ainda que fosse irritante quando ouvia de uma única assentada: desculpatraso. Como que a despachar uma obrigação.
Se andava aborrecida com a vida, o problema era dela. Tinha chatices? Quem as não tem?
No final, Rosa veio ter com a professora. Pediu-lhe desculpa pelo atraso, mas que, naquele momento, nada tivesse de explicar.
A professora ouviu-a com atenção e reparou melhor nos claros olhos de água. Tristes, húmidos e avermelhados.

Expor-se mais à sexta-feira à noite


Já ouvi várias vezes o escritor Mário Cláudio dizer que escrever é expor-se. 
Manter um blogue, ainda que discreto, também implica alguma exposição. Vê-se a que horas se escreve, a frequência com que se escreve, os assuntos recorrentes…
Mas chegar à sexta-feira à noite e escrever, com alguma tranquilidade, um pouco mais no blogue pode implicar exposição mas que é bom é. 
É como atravessar uma ponte devagar, captando novos ares. Acenando, quase em silêncio, enquanto se caminha. Ainda que não se saiba quem está do outro lado.

Flores da há muito anunciada primavera

Comentário:
Belas flores para uma bela Primavera! A propósito de camélias lembro a exposição de camélias ocorrida este fim de semana no nosso Porto, o Porto romântico, o Porto dos jardins à inglesa que nos enternecem o olhar. CS em Flores da há muito anunciada primavera

O raminho de violetas


Tenho diante de mim um raminho de violetas.  Olhei-as, peguei nelas, senti-lhes o perfume e,  enquanto as punha na água, revi imagens de há muitos anos atrás. 
Em ruas do Porto, perto do mercado do Bolhão, havia vendedeiras de violetas. As belas flores miudinhas estavam em cestas, em raminhos, e atraíam os transeuntes, sobretudo os namorados. Lembro-me que  também as recebi. Quero crer que foi por amor.

Comentário:
O meu namorado era muito gentil. Esperava-me, às vezes, nos degraus da Faculdade de Letras com um raminho de violetas na mão. Tinha-as comprado a uma violeteira que costumava sentar-se à porta da Igreja dos Congregados. Era muito bonito ver um rapaz de 18 anos com um ramo de violetas na mão para oferecer à sua amada. Se calhar por ter passado por essa experiência feliz, quando vejo um homem com um ramo de flores na mão, não deixo de o olhar, imaginando o ar de felicidade de quem as vai receber. Ainda há homens que merecem ser amados! CS em O raminho de violetas

quinta-feira, 8 de março de 2012

Também os homens conhecem as mulheres (?)

 Paula Rego

Calçada de Carriche

Luísa sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansada.
Sobe, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa, larga que larga,
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa, larga que larga,
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada,
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
António Gedeão

quarta-feira, 7 de março de 2012

O dia por um fio




quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Tiago Veiga - Uma Biografia, escrita por Mário Cláudio, vence

...Prémio para melhor Livro de ficção narrativa, pela Sociedade Portuguesa de Autores.

Será biografia? Ou heterónimo? Ou uma vida imaginária?

É uma obra extensa. Com muitas fotografias de personalidades da vida cultural portuguesa.

Onde começa a ficção? E a realidade?

Não é só na Vida que elas se misturam.

Sobre Os Amantes, de David Mourão Ferreira



 Um dos contos dá título ao livro. A leitura desta narrativa suscita muitas interpretações: um cenário de guerra colonial, imagens de toda uma vida, busca da pessoa amada, situações representativas do fantástico e do onírico...

Apesar de todas estas e muitas outras leituras, nos contos, nomeadamente "Os amantes", existe um forte visualismo por inspiração do cinema - sobretudo francês e italiano. Também esta forma de arte pode suscitar muitos modos de entendimento.

Como disse Mário Cláudio, nem tudo tem de ser interpretado; pode sentir-se apenas empatia.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O dia amanheceu com nevoeiro...

 Alfred Sisley


NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer –
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

Fernando Pessoa, Mensagem

Cores da (desejada) chuva!

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A chuva não vem e daqui a nada é primavera!

 Júlio
GLÓRIA
Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida 
E celebrada
Num festival de pétalas e cores
                                                      Miguel Torga  


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás as mãos de quem te espera. 
                                                                         Eugénio de Andrade

FLORES
Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.
                                                                       Sophia de Mello Breyner

Bem me quer...


domingo, 26 de fevereiro de 2012

No filme "O artista" ...

...com Jean Dujardin, o cão também merecia um Óscar.

Comentário:
Foi o que pensei quando vi o filme :) em No filme "O artista" ..
às 22:50

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Para a C. e para a D.


As duas adolescentes chegaram à hora prevista. Era manhã de sábado e tinham combinado com a professora ensaiar a leitura de um excerto de O tesouro, de Maria Clara Miguel, para lerem na apresentação do livro.Vinham nervosas, preocupadas em ler bem. E se se enganavam? A professora tranquilizou-as: liam muito bem. Tinham uma bonita presença. Iam gostar da experiência de lerem na Biblioteca Municipal.
De tarde, também à hora marcada, chegaram, segurando o texto dentro de umas capas da mesma cor. Uma das leitoras trazia uma trança, a outra, o cabelo bem liso.  Ambas, a  clara graça  de quem  olha o presente com vontade de futuro. Sentaram-se de novo a preparar melhor a  leitura do texto, antes da sessão começar.
A professora olhava-as com orgulho e carinho. Via nelas bons sinais de quem trabalha e se esforça para conseguir algo e de quem vai aprendendo a partilhar a beleza dos momentos que surgem e não se desperdiçam.
Antes da sessão, levantaram-se e saíram, dizendo que não demoravam nada. Chegaram com duas rosas: uma para a escritora, a outra para a professora. 
O que ia acontecendo era um tesouro, convocado pelo livro.

Comentário:
Duas lindas leitoras, que souberam estar à altura da situação: com boa leitura, com boa imagem e com um "savoir faire" social e afetivo que deixou toda a gente 'touchée', ao ofertarem flores a quem as merecia neste dia. em Para a C. e para a D.

às 22:58