sábado, 11 de fevereiro de 2012

«O SEGREDO DE UM CUSCUS»


Sempre que posso, vejo filmes lusófonos e francófonos. Para além do meu gosto pessoal, também os procuro para os sugerir aos alunos. Gostaria de lhes provar que os filmes de língua portuguesa ou francesa não são chatos, como se diz.

Mas, às vezes, acho o filme com uma história bastante triste. Tudo parece acender o lado lunar da vida e apagar o mais solar. Por isso, acabo por esperar pelo próximo.

Não sei se é por isso, às vezes o filme está pouco tempo em exibição. Desaparece da sala de cinema enquanto o diabo esfrega um olho.

Pois bem, vi:
O Segredo de um Cuscus
De AQbdel kechiche
Com: Habib Boufares, Hafsia Herzi, Farida Benkhetache

E gostei muito deste filme francês que recebeu vários prémios, tanto em França como em Veneza.

 O filme revela temas importantes, como: Relações Familiares, (in)Fidelidades, Imigração, Delinquência Juvenil, Momentos de vida dos Sem-Abrigo, Solidariedade, Alegria/Vontade de Viver, Desemprego, Projetos de Vida …
Durante três horas, acompanhamos passos de muitas pessoas «reais» que habitam num bairro suburbano, numa zona do sul de França.
Gostei particularmente das solidariedades espontâneas e ruidosas da família magrebina, protagonista do filme. Todos falam alto e ao mesmo tempo, saúdam-se com beijos estridentes, abraçam-se, ajudam-se, zangam-se, riem… Arranjam sempre lugar para mais um saborear a comida de que tanto gostam; neste caso, couscous!
À mesa, e à volta de uma refeição de couscous, todos celebram a festa dos sentidos. Com os dedos e os lábios besuntados com derramado e visceral prazer!
Parece que sentimos o cheiro dos melhores petiscos feitos por quem tem a mão certa para os temperos, para o tempo de cozedura, para a combinação dos alimentos mais frescos e saborosos. O que acontece quase sempre com a comida das nossas mães. No caso da família magrebina, também era a mãe que reunia a sabedoria da junção e preparação dos melhores sabores. Para que o resultado fosse perfeito.
Como quando a comida vem para a mesa no tacho e, ao destapar-se, liberta um odor que (nos) aquece a alma, embora também o corpo encontre consolação.
Neste filme, encontrei sobretudo imagens solares, embora as haja também lunares, porque a vida não as dispensa nem justifica a sua falta.
A ação mostra que às vezes um projeto pode falhar, mesmo estando-se à beira da sua concretização. Mas também fica na história de cada um todo o processo para o conseguir. Naquele caso, foi toda uma família que se uniu para ajudar o pai – separado da mãe – que, de repente, ficou sem trabalho. Também ele procurava ajudar a família.

Se vier a propósito – e vem sempre quando se quer –, vou sugerir este filme aos meus alunos.
Para além de tudo, há uma música encantatória, sobretudo quase no final.
E há, ao longo do filme, uma jovem, muito solidária e lutadora, que encontra soluções para ajudar a avançar os projetos de pessoas que lhe são próximas.
Para que não digamos que os jovens são sempre egoístas. E sobretudo para que eles vejam que vale a pena não se ser indiferente.

Seja como for, boas imagens! Solares, de preferência.
Nem que sejam pequenas como um grão de cuscus.

Ainda a propósito de "Plágio"

Ouvi um reparo a propósito do nome que cito no texto:
- Mãe, não devias referir o nome de M.P.C. Ela fez tanta coisa boa e ser-lhe apontada  só uma coisa que é suposto ela ter feito de mal. Não, não acho bem.

- Filha, se calhar, tens razão. E compreendo-te porque, como escritora, ela também foi um dos teus ídolos de adolescência (lembro-me até de, uma vez, teres dito que te identificaste tanto com algo que leste num livro que até choraste).


Sim, realmente temos a tendência a insistir no que está errado e a ignorar muita coisa que é bem feita.

Em Trás-os-Montes, sem fotografia


Há alguns invernos que não vou a Trás-os-Montes. Pude fazê-lo, felizmente, com regularidade, durante vários anos. Um dos destinos era a Feira do Fumeiro, em Montalegre. Saíamos cedo de casa e o carro, divertido, lá subia os montes – esforços agora esbatidos pelas autoestradas.
A feira era mais um pretexto para o grupo de amigos visitar aldeias, comer bons e genuínos petiscos, apreciar as paisagens, falar com outras pessoas…
Começo a falar disto e logo me lembro do frio seco que eu adorava sentir nas mãos e no rosto. E dos restaurantes com a lareira acesa. E do presunto acabado de cortar. E das casas baixas com pedras em ruínas e imaginadas histórias. E das batatas muito brancas e do feijão vermelho a fumegar. E dos velhos a caminhar devagar junto à casa que era o centro do universo.
Um dia, numa aldeia de Montalegre (em Paredes do Rio, julgo eu), visitámos um casal já idoso que tínhamos conhecido no ano anterior. Levaram-nos até à cozinha para comermos pão com chouriço. A cozinha tinha as paredes muito negras. Perto da lareira, pendiam, de umas traves pardas, os enchidos. Sentámo-nos a uma mesa pequena e também escura. De repente, ouvimos um suspiro que vinha do lado menos visível do banco junto à lareira. Era uma outra velha que lá estava sentada e em silêncio. Vestia toda de preto, da cor da parede e do banco de costas altas. Disse, timidamente, que vinha sempre ali passar as tardes de domingo, sobretudo quando estava mais frio.
Não me lembro nitidamente do rosto, mas acho que daria uma bela fotografia. Nada fria, apesar das trevas do recanto.

Tenho tanto que fazer!

Esta frase será uma das mais ditas e repetidas no nosso mundo atual. Não sei se sempre assim foi. Antigamente, muitas mulheres não trabalhavam tanto, embora trabalhassem muito. Agora, a grande maioria trabalha dentro e fora de casa. Legitimamente também gosta de mostrar muito do que vale, o que dá trabalho e ocupa mais tempo. 

Quando oiço "tenho tanto que fazer", parece que me estou a ouvir a mim própria. Então, digo para os meus botões em calmo estilo zen: não vou repetir esta expressão, aproveitarei o tempo da melhor maneira possível, farei o que eu puder e estiver ao meu alcance...

Porém, olho para as folhas acumuladas em cima da mesa e, mesmo sem querer, lá vem a tal frase, seguida do mesmo propósito.

Hoje, sábado, um dia de fevereiro cheio de sol, poderia sair para andar a pé, reparar nas magnólias brancas que já começaram a florir, olhar as cores das camélias que há muito estão em flor, sentir o frio cheiro azul do mar...

Não vou. Acabo por ficar. É que tenho tanto que fazer!

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os Pássaros de Londres

Mário Cesariny
Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres

quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz rasante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

Mário Cesariny, in Poemas de Londres

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

As casas


Menez

As casas habitadas são belas 
se parecem ainda uma casa vazia 
sem a pretensão de ocupá-las 
tornam-se ténues disposições 
os sinais da nossa presença: 
um livro 
a roupa que chegou da lavandaria 
por arrumar em cima da cama 
o modo como toda a tarde a luz foi 
entregue ao seu silêncio 

Em certos dias, nem sabemos porquê 
sentimo-nos estranhamente perto 
daquelas coisas que buscamos muito 
e continuam, no entanto, perdidas 
dentro da nossa casa 

José Tolentino Mendonça

Plágio



Quando corrigimos textos de alunos, redigidos em casa, é difícil, muitas vezes, saber se são originais ou não. Muitas vezes são retirados da net, sem qualquer correção até, por mais que lhes digamos que é reprovável essa prática e que em nada os ajuda nem dignifica. Já tenho ficado muito zangada com isso e tenho visto colegas com a mesma desilusão. Há até professores que deixaram de pedir trabalhos sobre temas ou sobre livros, porque outros os fazem ou são meras cópias.
A propósito disso, lembrei-me de um pequeno texto que há uns tempos escrevi sobre um filme (O segredo de couscous) e que Matias Alves publicou no Terrear. Qual é o meu espanto ao saber que tinha sido quase todo retomado, uns dias mais tarde, num blogue com muitos visitantes. As palavras de uma cidadã desconhecida passavam para autor apreciado. Perante um comentário no Terrear, o post foi retirado do blogue plagiador. 
E muitos mais casos há de cópia de textos. E até de pessoas muito conhecidas. Recordo o caso de Clara Pinto Correia, uma  escritora e cientista de enorme talento, e que também não cedeu a essa tentação. Custou-lhe caro e ainda hoje estará a pagar a fatura.
Também em licenciaturas, mestrados e até doutoramentos se verifica plágio. Se assim continuar, dificilmente os mais jovens deixarão de o fazer.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Situação de pânico


O desafio foi: escrever sobre uma situação de pânico. Mário Cláudio disse mais uma vez: escrever é expor-se.
Era uma noite de maio. Quente, abafada, de céu carregado. Os rostos estavam rubros e transpirados. Adivinhava-se uma forte trovoada. Eu encontrava-me a uns trinta km de casa. As filhas eram pequenas e esperavam-me. A estrada era por entre penhascos. Eu olhava o céu e via-o de fogo. Meti-me no carro, fechei as janelas porque não suportava aquele ar quente e parado. Fiz-me à estrada. De repente, vejo o primeiro relâmpago e logo a seguir muitos mais seguidos de fortes trovões quase em simultâneo. Se parasse, ficaria entre as árvores gigantescas, se continuasse, caminharia para o abismo. O céu em brasa abria-se ruidosamente, a estrada parecia afunilar e tornava-se interminável. Deixei de pensar e conduzia como uma máquina que apenas faz o que foi programado.
 Millet
Sentia o horror de me sentir um ser demasiado pequeno perante uma natureza que se impunha como gigante enfurecido. Uns grossos pingos de chuva começaram a cair, um vento sem controle fazia rodopiar as folhas secas que batiam contra o vidro. Nenhum carro passava e o tempo também não.
Só perto de casa a tempestade amainou.
Quando circulo nessa estrada, mesmo que os céus e as árvores estejam sossegados, ainda sinto o quase pânico desse regresso a casa em noite turbulenta de trovoada.

(Nota: Brontofobia é o medo de trovoadas)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Lua sobre o rio


ESTA ESCOLA NÃO É... PARA VELHOS


Há dias em que, percorrendo os corredores da escola, me interrogo sobre as condições de trabalho de professores e funcionários, no que respeita ao ruído: muito estridente nos intervalos e nos espaços de convívio. Parafraseando Fernando Pessoa, diria que, para muitos, manter um pouco mais de silêncio é estar doente da voz.
Muitos jovens habituaram-se a comunicar aos gritos e aos empurrões.
Há dias em que me interrogo sobre o meu papel na sala de aula. Não nas minhas aulas, felizmente, mas, sobretudo, nas aulas de substituição em que docente e alunos são desconhecidos e partilham um espaço de comum desagrado. Para além de ser lícita a pretensão de acompanhamento, em pleno, dos alunos, corrobora-se, mais uma vez, a ideia de que os direitos são assumidos como mais abundantes do que os deveres.
Se o sorriso do professor fosse observado à saída de uma aula de substituição, muitas vezes não passaria de amarelo. Leva-se um filme sobre problemas atuais, não interessa; pergunta-se se há dúvidas, não existem; sugere-se um jogo de língua portuguesa, é seca; propõe-se a redação de um pequeno texto, é chato; dialoga-se sobre um tema, dá sono…
 A este propósito, vem-me à memória uma situação em que uma professora foi chamada para uma aula de substituição, no 8º ano. Entrando na sala, deparou com os miúdos em grande algazarra. Calma e amigavelmente, mandou-os sentar e retirar as mochilas de cima da mesa para que todos se pudessem ver melhor. Deu algumas sugestões de atividades, mas viu enfado na maioria. Pediu, então, sugestões, mas ouviu-se uma só: jogos de computador, o que não foi aceite.
Como era o primeiro dia de outono, a professora, olhando pela janela, começou a dialogar sobre esta estação. Uma parte da turma aderiu, mas a outra: Podemos sair mais cedo? Posso ouvir música? Podemos ir agora para os computadores?... Por que é que temos de estar aqui se o professor ainda não foi colocado? Quando é que vem esse professor?...
 Após alguns minutos de adesão de alguns e resistência de muitos mais, a professora propôs a redação de um pequeno texto sobre o outono (sempre era uma maneira de os acalmar), aplicando muito do que havia sido dito e muito mais que poderiam saber ou imaginar.
Escreveu no quadro as instruções para que a realização do trabalho fosse mais clara. Poderiam fazer ilustrações, porque a imagem, muitas vezes, enriquece as palavras. Acrescentou que corrigiria os textos e dá-los-ia a conhecer à professora de Português – de quem eles tinham dito gostar muito. Durante a realização do trabalho, a professora ia ajudando, respondendo a questões, dando sugestões…
Finda esta aula de substituição, a professora começou a ler os textos produzidos. Uns com ilustrações a cores – bem bonitos, dizia ela com os seus botões – outros feitos um bocadito à pressa – o que se compreende, pensava ela magnânima… Depois, deparou com um grupinho de textos, de estrutura semelhante, gizados, provavelmente em grupo. Pôde, então, ler: O outono é feio, feio, feio, feio, feio, feio, feio, feio… O verão é lindo, lindo, lindo, lindo, lindo, lindo, lindo, lindo…. Era uma vez um caçador feio, feio, feio, feio, feio, feio, feio, feio… Depois, apareceu outro caçador lindo, lindo, lindo, lindo, lindo, lindo…
Gostando de ser positiva, a professora pôs um comentário em cada trabalho. Nestes casos, ficou escrito: «Usa as palavras de modo a não tornar o mundo mais triste». A professora de Português da turma, ao ler os trabalhos e as anotações, disse à colega, com humor: poderias ter acrescentado: …triste, triste, triste, triste, triste, triste….
Tal como eu, muitos professores dizem: gosto de dar as minhas aulas, mas o pior é o resto. Sim, o pior é o resto.
De facto, há dias em que penso: Esta Escola … não é para velhos! E será para os novos?


Há tempos escrevi este texto. Foi publicado no Terrear. 
Hoje lembrei-me dele quando vi uma notícia sobre um professor que foi agredido. 
O que relato não é violento, apenas um pouco feio, feio, feio, feio, feio...

"É o costumezinho?"


Recebi há pouco um telefonema de uma instituição. Do outro lado, ouvi: é o costumezinho?
E lembrei-me do gosto que temos pelos diminutivos: filhinho, queridinha, arrozinho, dinheirinho, casinha… 
Há outros de que me lembrei também: anda comiguinho, moro à beirinha…
Mas “o costumezinho” ainda será o menos costumeiro.

Como é quando o homem quiser…


Fragonard

Estamos em fevereiro. O Natal já lá vai há muito e vejo-me a reler e a corrigir (pontuação, acentuação…) bastantes contos de alunos para serem publicados em livro.
Quando souberam da publicação, os alunos ficaram contentes e entusiasmados: que fixe o nosso conto vai ser lido por outras pessoas!
E os adolescentes que parecem tão arredios da leitura, da escrita, de alguns valores humanos abordaram sentimentos de um jovem e de um sem-abrigo, porque eram estas as personagens que tinham obrigatoriamente de incluir na sua história.
Estou com curiosidade de ver o livro pronto. A capa será de Florentina Gonçalves, uma professora de Educação Visual e também pintora. O livro estará pronto nos primeiros dias de março. Quero mostrá-lo aqui no olamariana, porque acho maravilhoso partilhar muitas das nossas palavras.
A data da publicação de contos de Natal poderá não ser a mais indicada, mas a escrita, a leitura, os valores humanos, os sentimentos, a observação do mundo são de todas as ocasiões. Será bom abrir as páginas de contos escritos por alunos, professores e funcionários.
Razão teve o poeta quando disse: Natal é quando o homem quiser.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Atenção, este tema pode ser mórbido


Há muitos anos, conheci uma senhora que muito fazia para merecer as boas graças dos outros. Sobretudo das pessoas da terra. Dizia que quando morresse, queria ver muita gente no seu funeral. Por isso, estava sempre presente no enterro dos familiares, das pessoas amigas, conhecidas, e chegava à conclusão se a pessoa falecida merecia ou não ter ali muitos seres para lhe acenarem uma última vez. Se estivesse muita gente, era uma pessoa querida, se houvesse pouca, seria sinal de que só uma minoria lhe queria bem.
Passou-se o tempo e também a vida. E esta consigo sempre traz a morte. Nem que demore muito tempo a viagem. A dita senhora faleceu e teve, de facto, muita gente a assistir ao funeral. Lá, no lugar onde estivesse, devia sentir o júbilo de quase ninguém ter ficado em casa.
Mas uma coisa é certa, em surdina, muitos diziam que estavam ali porque ela tinha estado no funeral do pai, da mãe, do primo, do tio, do vizinho… e funeral com funeral se paga.
Isto aconteceu há muitos anos, como eu disse no início. Há menos anos, morreu uma outra senhora. No funeral, havia poucas pessoas. Não se ouviam cochichos. Na cerimónia fúnebre, foi lida uma pequena carta, onde se elogiavam as qualidades que ninguém pôs em causa nem duvidou da verdade dos factos e das palavras. Poder-se-iam até acrescentar outros méritos. Terminadas as cerimónias, as pessoas regressaram a casa quase em pensativo silêncio. No dia seguinte, falava-se mais da vida do que da morte. Não que se pensasse que falar da morte fosse mórbido, mas eram evidentes as vantagens em relembrar a Vida que aquela mulher tinha semeado na Terra.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Em memória


Pouco devia passar dos cinquenta anos. Era professora de Biologia e assessora da direção da escola. 
Dominava muito bem as regras do ensino à noite. E também conhecia muito bem os alunos. E os seus diferentes casos: as disciplinas que cada um devia frequentar, os exames que cada um tinha de fazer, as matrículas que cada um tinha de renovar…
Ela demonstrava gostar muito da escola à noite. Que conhecia tão bem como as suas mãos. A doença começou a ameaçar tirar-lhe a vida. Ela foi resistindo e lutando. O sorriso mantinha-se aberto e franco.
Toda a dedicação dela agora é memória, porque partiu em dia cinzento e frio.
E penso nos meus colegas, nos meus amigos e concluo que a morte, para além de toda a tristeza que convoca, ensina  também a celebrar melhor a Vida.

Leonard Cohen em domingo de manhã


Saí. No regresso, comprei pão fresco. No carro, sentia-se o cheiro do pão. O rádio estava desligado. Apetecia-me o silêncio.
O mês de janeiro e o início de fevereiro trouxeram pouca chuva mas algumas coisas desagradáveis. Recordo um propósito do início do ano: ser mais positiva.
Ligo o rádio: Canta (não sei se canta ou fala, ou diz, ou olha, ou prende) Leonard Cohen com a sua voz quente, sensual, intensa... Passo a conduzir mais devagar. Olho o céu cinzento, a paisagem fria. Continuo, deliciada, a ouvir a voz, a música e fico mais pacificada, perante azares que, confrontados com outros, se calhar, até são pequenos.
E acredito, mais uma vez, que em todos os dias podem acontecer coisas boas. Felizmente.

A menina da caixa


Já estava na caixa registadora desde o Natal. Logo nos primeiros dias de trabalho, teve de usar um barrete de pai-natal. Embora tivesse há uns anos deixado de acreditar naquela figurinha gorda e de barbas brancas. E sentia pena das renas que tinham de correr muito e pouco ganhavam com isso. E muitas vezes ninguém olhava para elas, porque quem tinha as prendas era o pai-natal.

Nunca mais esqueceria o calor que sentia na cabeça enquanto registava as contas do bacalhau, do açúcar, da aletria, dos chocolates, dos brinquedos… Enquanto ouvia: ó mãe, quero um ovo, eu quero, mas eu quero… Pronto, pega lá o ovo e está calado!

Só esperava era não ter de usar umas orelhas de burro no Carnaval, porque até era boa aluna. Tinha era de contribuir para as despesas dos estudos e da casa e por isso tinha um part-time. E tinha sorte porque muitos amigos queriam e não arranjavam.

Em cada dia de trabalho, repetia a saudação inicial mais de quarenta vezes. Assim como perguntava se o cliente tinha cartão para os descontos. Metia as compras nos sacos, seguindo as instruções que tinha. Algumas clientes queriam menos coisas em cada saco. Ó menina, não ponha aí os tomates, não vê que pisa. Outras deviam ser mais ecológicas e queriam mais coisas juntas para poupar os sacos. Outras pediam: ó menina, posso levar alguns saquinhos?

Era chato era a dificuldade em reconhecer alguns frescos. Sempre tinha confundido a couve-flor com os brócolos. E as variedades de maçãs também demoraram a aprender.

Enquanto a máquina faz os cálculos, as mãos sempre sem parar: abrindo os sacos para poupar tempo depois. Quase sem olhar à sua volta. O pescoço já dói um pouco. E os braços também. O vinho em promoção é pousado às caixas no tapetinho rolante e tem de pegar nelas para registar e passar ao cliente.
Tudo tem de ser feito com simpatia e atenção às contas. No final do turno, tudo tem de bater certo.

Quando chega a casa, às vezes nem diz boa-noite. A mãe não fica nada contente mas nem sempre pergunta porquê.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Olhando em diferentes direções



Um toque de sol




Olhares da Castanha






sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Sabores e silêncio

Gauguin
Há muitos anos, estive num campo de férias para crianças e jovens. Não me recordo muito bem, mas julgo que foi em Miramar. A casa onde estávamos era antiga e solarenga. Se fosse hoje, talvez reparasse melhor nos pormenores.
Naquela altura, o tempo era ocupado na praia em reflexões que fazíamos em conjunto, sobretudo ao fim da tarde (recordo-me da areia fresca e dos tons avermelhados do pôr do sol).
Tomávamos as refeições em conjunto e recordo nitidamente duas coisas. Uma foi um grande raspanete das responsáveis a todo o grupo, que era de dezenas de jovens, porque havia quem desperdiçasse muito pão. Lembro-me disso quando vejo pão estragado ou deitado fora.
A outra coisa que me ficou foi o comportamento de uma das miúdas. Enquanto comia, nunca falava. Mastigava devagar, olhava as companheiras de mesa, sorria mas mantinha-se em silêncio. Como achávamos um procedimento estranho, um dia alguém lhe perguntou por que não falava enquanto comia. Respondeu que era um hábito que tinha adquirido.  Era uma forma de descansar um pouco, de retemperar as forças e de saborear os alimentos.
Confesso que o caso dela me vem à memória quando vejo, num qualquer restaurante, alguém a falar muito alto. Apetece dizer: nem saboreia nem deixa saborear.