Antes da pandemia, ia com alguma frequência a Londres sobretudo para ajudar a minha filha. Este conto foi escrito lá e algumas coisas, como a casa, são reais. O resto foi-me surgindo pela rua de que sempre gostei e cujo nome achava inspirador: Pandora Road. Já não vivem lá.
Para não maçar muito, dividi o texto em partes mais pequenas. Esta é a primeira.
Que
o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
José Saramago, Poema à boca fechada
A campainha da porta tocou. Era uma voz feminina. Eu estava sozinha em casa e compreendia mal a língua inglesa. Pedi, pelo intercomunicador, se podia falar mais alto e mais devagar. A pessoa tinha vindo morar para aquela rua e pretendia conhecer os vizinhos mais próximos. Sugeri-lhe que voltasse ao fim da tarde ou na manhã seguinte, porque estaríamos todos em casa. Os dias passaram, nada vi ou ouvi fora do habitual e a campainha não voltou a tocar.
A rua é bastante sossegada e muito semelhante a muitas zonas residenciais perto do centro de Londres: uns poucos degraus a separar a casa da rua, uns vasos ou pequenos canteiros de flores variadas e contentores para os lixos domésticos de forma a não servirem de alimento às raposas que vagueiam e regougam pela calada da noite.
Pois bem, numa segunda-feira, fiquei sozinha durante o dia, como de costume. Enquanto organizava a casa, lembrava-me de que a campainha podia voltar a tocar e espreitava, de vez em quando, pela janela alta do quarto, donde, se me pusesse em bicos de pés, tinha uma visão da rua. A outra janela, mais larga e menos alta, dava para o pequeno jardim das traseiras, que mantinha sempre as mesmas cadeiras de palhinha escura, os mesmos arbustos, os mesmos vasos com flores, um dos quais tombado havia muito tempo. Observava as casas da frente para ver se via ou ouvia alguém que pudesse ter tocado à porta. Acabava por desistir quase sempre porque o espaço da rua que abarcava era bastante reduzido.
Passou-se mais uma semana e logo a seguir veio outra, chegando o dia previsto para regressar a Portugal. De vez em quando, vinha-me à cabeça o toque da campainha seguido da voz de quem não chegara a conhecer; mas esqueci o caso durante uns tempos, porque, no meu país, esperavam-me afazeres acumulados.