terça-feira, 5 de abril de 2016

O solitário da rua



Simplex

Há vários dias que queria escrever, mas o trabalho da Repartição e compromissos familiares apenas lhe tinham reservado curtos momentos de sossego.
Não é que tivesse grandes histórias a contar. As mesmas coisas simples de sempre. Se calhar, complicadas ou inúteis para os que nelas nem reparavam.
Às vezes, olhava as pessoas que atendia na Repartição e, apenas por intuição, logo lhe parecia ver se eram pessoas que tinham sido amadas na infância ou não. Talvez fosse um perfeito disparate, mas julgava quase sempre acertar. Apesar de dizer que muitas vezes se enganava. Havia momentos em que via nas pessoas - e muitas vezes nos homens já de uma certa idade - a influência da educação ministrada pelas mães. E tal era motivo para escrever se tivesse tempo e o computador por perto.
Uma outra coisa que lhe vinha aflorando muitas vezes ao pensamento era o preconceito que o levava a não dizer nunca que era feliz. E era-o, de facto, à sua maneira, apesar da idade da reforma estar à porta. Gostava do que fazia. Não ligava muito às críticas que se ouviam sobre os funcionários públicos. Gostava de atender bem as pessoas e com a eficácia possível. Reconhecia a importância do conceito Simplex e de não enredar o tempo dos cidadãos nem de os tratar como se fossem de segunda, simplesmente porque não sabiam preencher bem os documentos. 
Custava-lhe dizer que gostava da vida que levava, porque, se o dissesse, parecia esquecer os problemas de fome, de miséria, de medo, de terror que persistiam e se avolumavam velozmente.
Crescera no freio religioso que rejeitava qualquer excesso de satisfação. Nem que fosse aparente.
Quando podia, gostava de tratar do jardim, de ler, de ir ao cinema, de seguir os assuntos da atualidade, mas nunca se habituara a dizer que gostava da vida que tinha - uma ousadia que poderia dar azar. E, no entanto, o correr dos seus dias dava-lhe prazer.
Hoje deu consigo a pensar que à sua vida também devia chegar o conceito Simplex. E sorriu, enquanto acertava um relógio que não usava há muito tempo.

Xutos & Pontapés - homem do leme (letra)

A história do vestido vermelho

  Recupero hoje uma pequena história
que ouvi há uns tempos. 
Apesar de não parecer,
parece ter sido verdadeira!
 
Não era muito saudosista, mas às vezes falava de coisas que tinha vivido, nas histórias que contava.
Os netos pediam: avó, conta uma história. E ela contava. E nunca contava da mesma maneira. A neta mais pequenina, muito observadora, dizia logo: avó, enganaste-te, a história não é assim. Tinha, então, de se lembrar das palavras já ditas e de que não se podia desviar.
Um dia, a neta de dez anos disse: avó, conta a história do capuchinho vermelho mas à tua maneira. Ela, talvez por já ser mais crescida, gostava de pormenores diferentes ou de histórias verdadeiras. E a avó disse então: em vez do capuchinho vermelho, vou contar-te a história do vestido vermelho. É verdadeira.
- Mas começa por Era uma vez como eu gosto?
- Sim, pode começar. Era uma vez uma menina que gostava muito de roupa colorida. Desde pequena que assim era. Era uma festa quando a mãe lhe comprava uma peça de roupa nova e vistosa.
Cresceu, tornou-se mulher e manteve o gosto por vestidos, saias, blusas… com muita cor.
Foi sempre boa aluna, tirou um curso e começou a dar aulas numa escola. Ficou tão contente por poder começar a trabalhar que, no primeiro dia, levou o vestido de que gostava mais: um vestido vermelho. Quando chegou à escola, foi chamada ao diretor que lhe disse, muito sério, que era proibido entrar numa sala de aulas de vestido vermelho.
- Ó avó, essa história é inventada. Inventas cada coisa!
- Mas olha que é verdadeira!
- Só se for para ti, avó. Queres enganar-me? Esqueces-te que já tenho 10 anos? Para inventar prefiro a playstation!

A avó imaginou-se ainda com corpo de menina e a cabeça cheia de sonhos a vestir o vestido vermelho. Que conservava há mais de 38 anos. 
Apesar de já não lhe servir, contava uma das histórias mais verdadeiras da sua vida.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Meryl Streep - Atriz ou lenda?


terça-feira, 29 de março de 2016

Vi hoje no Expresso curto

"O QUE EU ANDO A LER
“Começa pela página 36”, dizia a mensagem, e eu comecei. “Morro todos os dias/especialmente depois do lanche/quando pego no regador fininho/onde despejo o dilúvio dos olhos/e vou regando as plantas/à espera da descendência”.

Cláudia R. Sampaio, 34 anos, publicou o seu terceiro livro, “Ver no Escuro”, pela Tinta-da-China. É poesia de choque, mas um choque silencioso e íntimo, que se rebela devagar mesmo quando se revela depressa.

“Sempre me recusei a arder como os outros./Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita/mais a vento de sul ou de norte/mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!/Porque pior que a desdita loucura/é toda a gente andar em brasa/mas ninguém chegar a incêndio”.

É frequente recomendar poesia neste Curto, até porque a obra portuguesa agora editada é francamente nova. Nova não por ser recente, mas ser, na linguagem, deste tempo. É o caso de Cláudia R. Sampaio, mesmo quando escreve sobre os sentimentos mais antigos de sempre.

“Quando for embora não deixarei migalha de mim”, escreve, “vou e não esqueço”.

Pedro Santos Guerreiro 

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A margem

Ando feita de crisântemos
luz, banhos de ouro
e perfumes franceses.
Nota-se assim que falo
que um outro eu me substituiu.
Sou agora quase feita de
anúncio de tv,
cara de porcelana e alma
de fermento.

Sonhei.

Os demónios da boca seca
fizeram-me levantar da cama e
suspensa por um fio de vida
redimi-me à margem solta
de um suspiro que ainda
falta.


Desfez-se-me o fermento e
a alma, encolhida,
coube-me perfeitamente na
fronha da almofada.


Cláudia R. Sampaio

segunda-feira, 28 de março de 2016

Mafaldinha e a primavera


Diário de Mariana




Família, Compasso, Versos da minha Avó...
Daí a nada, a mesa estava sem louça suja. Só ficaram bolos e amêndoas. O meu tio abriu a porta toda e um grupo de homens entrou. Um trazia uma cruz, outro tinha um saquinho para as ofertas, outro vinha com umas folhas e imagens e os outros já não sei porque começaram todos a falar e eu distraí-me. 


Toda a gente se conhecia e um deles perguntou quem lia a oração. Todos se viraram para a minha tia brasileira. Um depois disse assim: Muito bem; assim, a leitura é em língua mais doce.
A gente gosta tanto de ouvir os brasileiros a falar. Não sei é por que é que eles não nos entendem muitas vezes. Uma vez, a minha irmã mais velha foi ao Rio de Janeiro, falou português e responderam-lhe em italiano. E falavam todos a mesma língua. Que esquisito.
Antes de saírem, a minha tia perguntou se queriam amêndoas. Eles disseram que não porque agora não há crianças na rua, como antigamente.
Depois, fomos ao Monte Crasto, porque a minha avó tinha saudades de lá ir.
A minha avó tem quase noventa anos e sabe muitos versos. Começa a dizer os poemas sem nunca se enganar nem se esquecer. Então, quando estávamos todos sentados, o meu avô disse todo orgulhoso: ó mulher, diz os versos que sabes sobre o Monte Crasto. E ela disse-os logo. E ainda antes contou: Um dia, quando eu era pequena, a minha tia Ana chegou a casa com uns versos de uma amiga dela de Quintela, aqui em Gondomar. Era uma senhora muito sábia, que gostava muito de ler e de fazer versos. Perguntou quem queria ficar com a folhinha. Eu quero, tia, disse eu.
E disse os versos que tinha aprendido há mais de oitenta anos.
Eu acho que vou aprender nem que seja algumas quadras, porque não sei versos de cor. Não vou conseguir é saber tantos como a minha avó.
Um abracinho, querido diário
Mariana



domingo, 27 de março de 2016

Diário de Mariana



Afinal, o que se passa?
Querido diário,
Estou mesmo confusa. Tenho uns primos a viver há muitos anos na Bélgica e dizem que nunca viram coisa assim em Bruxelas. Explosões num aeroporto, numa estação de metro e toda a gente cheia de medo.
Uns tios do Brasil estão a passar uns dias em nossa casa. Estão sempre a perguntar se há mais notícias do Brasil porque lá a coisa também está preta e as pessoas andam muito zangadas e muito revoltadas com o governo.
Um dia destes, à mesa, falámos de um ataque que por um bocadinho não aconteceu outra vez em Paris. A minha mãe está sempre com medo que em Londres aconteça a mesma coisa e atinja a minha irmã. E a Clarinha, é claro. E também o meu cunhado. Se houver qualquer coisa de estranho no metro, acho que nem repara, porque vai sempre a ler. O pior é quando há muito barulho. Nem quero pensar.
Acho horrível este terror em que as pessoas vivem. O melhor é não se pensar muito no assunto. Eu acho.
Hoje é dia de Páscoa e vamos passá-lo em família. Os meus primos são muito fixes. Já sei que vamos ver vídeos de quando as minhas irmãs e os meus primos eram pequenos. Eu, nessa altura, ainda não existia.Agora também não sei se existo, porque a minha mãe diz-me muitas vezes: Mariana, tu não existes!!
 Mesmo sendo Páscoa, não vou comer amêndoas. Foi uma promessa que fiz a mim própria. Às vezes, tenho destas coisas. E, se calhar, nem digo a ninguém. A gente também não tem de dizer tudo.
Mas contigo, querido diário, sou sincera. Para mim, és como uma amêndoa bem gostosa  - estou a falar brasileiro! Deve ser influência dos meus tios que estão em nossa casa. Já aprendi várias palavras que em português não usamos. Daqui a pouco conto. Não se pode contar tudo de uma vez.
Mas isto que se passa no mundo não me sai da cabeça. Até os coelhinhos de Páscoa devem andar assustados e de dentinhos mais afiadinhos.
Um abracinho e Feliz Páscoa
Mariana