Querido diário,
A minha mãe costuma
dizer que não há fome que não dê em fartura.
Na verdade, ainda há
pouco te escrevi e estou contigo outra vez. Ontem à noite, tive uma ideia e não
sosseguei enquanto não escrevi uma história para o concurso “Uma história com um livro dentro”.
Tens uma coisa em
comum com a minha cadela: não falas e eu gostava que dissesses alguma coisa
para eu saber a tua opinião!
Seja como for, vou
contar-te a história que escrevi, desta vez sem o Gi. Escrevi-a sozinha. Se
fosse com a Bia, se calhar ficava com uma linguagem mais cuidada, como a minha
professora de Português costuma dizer, mas tive muita vontade de a escrever e
só terminei quando a história também me pareceu que chegava ao fim.
Oxalá gostes, porque,
apesar de seres apenas um diário, és o meu diário e representas um papel muito
importante na minha vida. Sem ti, eu teria as ideias mais desarrumadas e, se
calhar, andava tristonha. Acredita porque é mesmo assim.
Aqui vai, então,
embora ainda não tenha título. Penso que não faz mal, porque não se pode
escrever tudo de repente e de uma vez.. As palavras são como as plantas que as
mães põem no jardim e que vão dando sempre novas flores que se podem colher em
qualquer altura.
Um
abracinho, querido diário
Mariana
Imagem da net
Sem
título à vista
Quando Mariana chegou
a Londres, para visitar a irmã do meio, a chuva começou a cair intensamente.
Chovia tanto que a mãe e a irmã não queriam sair da estação do metro. Mariana
estava a ficar impaciente: vinham a Londres para se abrigarem da chuva? Queria
era passear nas ruas, tirar fotografias e… estar com a irmã e o cunhado, é
claro. Se ficassem molhadas, logo secavam. Então, a casa não tinha aquecimento?
Ainda lá ficaram uma
boa meia hora, porque a mãe de Mariana dizia que não estava para apanhar uma
gripe ou constipação e que as coisas não se fazem a correr nem à chuva.
Pelo meio-dia, Mariana
viu dois braços a acenar do lado de fora da estação. Era a irmã que vinha ao
seu encontro, porque começava a estranhar a demora. Que saíssem porque a chuva
ia passar, com certeza; tinham de aproveitar o tempo porque os dias estavam
mais curtos e daí a pouco era noite. Tudo isto depois da troca de abraços e
beijinhos, enquanto a mãe de Mariana se voltava para a filha que vivia em
Londres e exclamava muito orgulhosa: minha rica filha.
Logo que saíram da
estação de Liverpool Street, apanharam um autocarro e foram almoçar ao
Boroughmarket. Mariana não conhecia quase nada de Londres e não queria refilar.
De certeza que as irmãs e a mãe não lhe dariam razão, por isso optou por olhar
à sua volta e não fazer exigências. A mãe ainda disse:
- Mariana, estás tão
esquisita. Não falas nem ris, como é costume!
A adolescente encolheu
os ombros, porque não lhe apetecia mesmo falar. Também não compreendia bem
porquê. Estava feliz por estar com a irmã, que já não via há meses, a não ser
pelo skype, e, ainda assim, não muitas, porque a irmã dedicava-se muito ao
trabalho e tinha pouco tempo.
Mariana fixou, então,
o olhar numa criança de trotinete, com roupa e sapatos cor –de-rosa. A menina
parecia uma princesa. Viu um par apaixonado, com sorriso cúmplice e de mãos
dadas, que parou para se abraçar…
Quando se aproximavam
do mercado, os cheiros da comida faziam-se sentir com intensidade. Havia
barraquinhas com comida de muitos países, com nomes estranhos, mas com um
aspeto que fazia crescer água na boca. Mariana queria comer logo uma sanduiche,
mas a mãe e as irmãs não concordaram.
Era quase sempre
assim. Elas, como mais velhas e mais conhecedoras do mundo, é que
decidiam sempre. Como a chuva persistia, ainda ao menos que o mercado tinha uma
área coberta, porque as pessoas eram imensas. A mãe de Mariana até disse: o
mercado seria bem melhor sem estas hordas de turistas, mas o que é certo é que
também andamos a passear. Mariana não sabia muito bem o que queria dizer a
palavra “hordas” mas devia significar bandos de gente.
Foram andando junto às
barraquinhas do mel, das compotas, das sanduiches de carne exótica, do pão, dos
sumos naturais, da comida vegetariana… quando, de repente, Mariana vê, sentado
no chão, numa esquina do mercado, um sem-abrigo a ler, tranquilamente, um
livro. Que fixe, pensou Mariana, uma boa ideia para escrever a minha história com um livro dentro.
Parou a olhar o homem
que nem pareceu reparar. Já devia estar habituado a que as pessoas olhassem
para ele. E para o cão que estava a dormir ao seu lado. Isso é que Mariana
achava estranho: um cão a dormir a toda a hora! Isso já tinha visto muitas
vezes, mas um sem-abrigo a ler tão concentrado é que ainda não.
Disse à irmã mais
velha: vou tirar uma fotografia porque o sem-abrigo a ler está a dar-me uma
ideia para um trabalho da escola. Porém, as irmãs logo se opuseram: nem penses,
Mariana, em fazer uma coisa dessas. E não olhes tanto. Parece que nunca
visitaste uma grande cidade. Sim, Mariana já tinha visitado outras capitais:
Lisboa, Madrid, Paris…e via muitas coisas que também se encontram nas aldeias:
as folhas das árvores a esvoaçar pelo chão, uma criança a tentar agarrar uma
bola de sabão…
Um sem-abrigo a ler um
livro é que nunca tinha visto. Vinha-lhe até um desejo curioso. Ou seria
mórbido? Queria ver o título do livro, o tempo que o sem-abrigo demorava a ler
cada página, se passava várias folhas ou se lia uma de cada vez e até ao fim,
se molhava o dedo com saliva para mudar de página, se parecia entusiasmado com
o desenrolar da história, se lia algum bocadinho em voz alta, se parecia gostar
muito e voltava atrás…
Estava com estas
vontades e pensamentos, quando olhou à sua volta e só viu as tais hordas de
turistas..Toda a gente passava com alguma coisa de comer na mão. A mãe e as
irmãs tinham desaparecido. Não conhecia ninguém e tudo lhe era estranho. A
chuva continuava a cair desalmadamente. O sem-abrigo lia como se estivesse
sozinho num deserto. Nada o fazia mexer. De repente, um relâmpago acende uma
luz repentina e fugidia. O sem-abrigo estremece e o cão também. Com a mesma
serenidade, o homem levanta-se para procurar um sítio menos exposto ao
temporal. Com a ponta do dedo, dobra a pontinha da página e pousa, fechado, o
livro.
Mariana não sabia o
que fazer, porque, com a trovoada, ficava sempre aterrorizada.
O sem-abrigo, sem
olhar para ninguém, pegou em tudo ao mesmo tempo, incluindo o cão adormecido, e
mudou-se. Mariana viu o título: Amada
vida de Alice Munro, um livro de contos da escritora que recebeu o Prémio
Nobel de Literatura 2013.
Como Mariana
continuava sozinha e muito próxima, o sem-abrigo perguntou-lhe em bom português:
ó rapariga, nunca viste um livro? Vê lá se queres espreitar para dentro
da história! Olha que este livro tem muitas!
Mariana sentiu vontade
de lhe responder, mas as irmãs e a mãe chegavam, com ar preocupado, por terem
deixado também de a ver por entre aquela multidão, em hora de almoço de um
sábado de chuva.
Mariana sentiu-se
aliviada. Por que ficaste para trás, Mariana? – perguntaram as irmãs em
uníssono.
- Já tenho uma ideia
para a minha história com um livro dentro, disse Mariana.
As irmãs sorriram e a
mãe também, enquanto dizia: e nem tiveste medo da trovoada!
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