A minha mãe diz que vem aí um anjo. O anjo vem a
cavalo e vai subir a montanha, direitinho a Lonesome Creek. No seu alforje,
traz um minúsculo bebé, bem aconchegadinho, seguro e quentinho.
Agora passo as manhãs a correr e a espreitar para o
fundo da colina, onde o riacho fala suave e baixinho, onde as codornizes voam
como setas e fazem o seu chamado. É o meu lugar especial, o lugar onde posso
encontrar um anjo montado numa enorme égua negra.
A minha mãe diz que temos de estar preparados para a
chegada daquele anjo e, por isso, o meu pai foi buscar o berço delicadamente
talhado em madeira de cerejeira e belamente esculpido com vinhas e rosas, feito
para mim quando eu era pequenita.
Depois, lavámos as roupinhas minúsculas — pequenos
gorros, vestidinhos e calções — e estendemo-las ao sol radioso. A minha mãe diz
que eu fui a primeira a usá--las, mas nem consigo sequer imaginar que um dia
fui tão pequena.
No sábado, as minhas tias compareceram à chamada e
trouxeram uma colcha para
costurar. Durante todo o dia, ficaram
sentadas a falar pelos cotovelos e a fazer crescer uma Árvore da Vida, com
vários nomes inscritos e ramos que brotam largos e fortes. As minhas tias dizem
que a nossa família reside neste lugar há cerca de cem anos. Contam histórias
antigas e mantêm costumes antigos. Estão sempre atentas a sinais e leem a sorte
nas folhas das chávenas de chá.
De repente, uma lua cheia começa a elevar-se no céu
sobre Bobcat Ridge. Nessa altura, o meu pai pega no seu banjo e dedilha acordes
que nos fazem bater palmas e marcar o ritmo com os pés.
— É rapaz ou rapariga? — pergunta o meu pai, assim que
as pessoas se vão embora, e a noite ainda está calma.
A minha mãe diz que ninguém sabe — nem mesmo as tias,
apesar de todos os seus conhecimentos. Apenas o anjo conhece a resposta.
Quanto a mim, acho que sei. Pedi à lua cheia que me
trouxesse uma maninha. E vou chamar-lhe “Maninha”. Vou entrançar-lhe bem o
cabelo e escová-lo quase todas as noites.
Quando a manhã chegar, trará uma neblina para nos
aconchegar, como aconchega os seus próprios bebés. Em alturas como esta, as
vacas mantêm-se juntinhas e as galinhas encostam-se às árvores geladas. Este é
um dia complicado para encontrar anjos, porque os ouvidos ouvem mais do que os
olhos conseguem ver.
Por entre a neblina, sinto-me como uma
batedora dos tempos de outrora. E, montanha acima, persigo panteras, ursos e
lobos, que andam a rondar. Se subir um pouco mais, sinto-me uma rainha, porque
fico acima do lugar onde o céu se senta.
Uma coruja riscada pia e ponho-me a correr. A correr
atrás de sombras, desta vez colina abaixo. De regresso a casa, encontro uma
senhora, tão alta como o meu pai, junto de uma enorme égua negra. Usa calções,
traz um alforje ao ombro...
Apresso-me a ir à procura da minha mãe, uma mãe de
cara feliz, com um bebé rosadinho junto de si. Um bebé de dedos pequeninos, mas
de olhos tão grandes como pires de chávenas. Uns olhos que observam tudo o que
o mundo tem para mostrar.
E eu que quase ia perdendo este anjo, o anjo que subiu
a montanha para nos trazer esta preciosa trouxinha. Vou chamar-lhe “maninho”,
um bebé que já amo de todo o meu coração.
Heather Henson
Angel coming
New York, Atheneum Books, 2005
(Tradução e adaptação)
♣♣♣♣
Nota do Autor
Ainda não há muito tempo,
nos Montes Apalaches do Kentucky, se uma criança perguntasse de onde vinham os
bebés, recebia uma resposta absolutamente invulgar. As pessoas falavam de bebés
trazidos pelos caminhos íngremes, aconchegados com toda a segurança dentro de
alforjes, e transportados por um anjo que vinha a cavalo.
Claro que esta versão é tão
credível quanto a da cegonha ou a do bebé encontrado numa horta de couves, mas,
tal como acontece frequentemente no folclore, há ainda assim uma ponta de
verdade no relato: o anjo era verdadeiro.
Em 1925, Mary Breckinridge
criou o Frontier Nursing Service (Serviço
de Enfermagem Fronteiriço) no leste do Kentucky, o primeiro serviço do género
em toda a América. Embora descendesse de uma família sulista aristocrática, e de
ter podido optar por uma vida desafogada, Mary tornou-se enfermeira, porque
queria ajudar os outros. Escolheu o Kentucky porque sabia, tendo lá passado os
seus tempos de menina, que a região tinha uma necessidade desesperada de
cuidados médicos.
Poucos médicos se
aventuravam naquela região remota. Doenças como a difteria e a febre tifoide
estavam a assolar as encostas das montanhas e partos complicados deixavam as
famílias sem mães. Mary sabia que as mulheres e as crianças, em particular,
eram vítimas de uma taxa de mortalidade absurdamente alta, e decidiu fazer
algo. Montou uma clínica e começou a procurar enfermeiras-parteiras que não
tivessem medo da aventura e do trabalho duro — e foi precisamente o que
arranjou.
A princípio, as gentes
orgulhosas das montanhas não sabiam o que pensar da vontade firme destas jovens
mulheres de elegantes uniformes azuis. Com o tempo, porém, aprenderam a confiar
e a contar com estes “anjos a cavalo.” Como parte do seu trabalho, cada “anjo”
tinha a sua própria “rota” ou secção da montanha, e fazia visitas mensais para
saber de cada família, ou visitas semanais se uma mãe estivesse à espera de
bebé para breve. Por vezes, como nesta história, uma visita de rotina podia
até, por sorte, coincidir com o abençoado acontecimento.
O Frontier Nursing Service (Serviço de Enfermagem
Fronteiriço) não é apenas um pormenor desta história: é a continuação do sonho
a que Mary Breckinridge deu início há muitos anos atrás. Hoje já existem um
hospital e uma escola para dar formação a toda uma nova geração de
enfermeiras-parteiras e estas deslocam-se em jipes, em vez de cavalos, para
fazer os domicílios.
No cimo
das montanhas do Kentucky, contudo, o espírito do anjo a cavalo ainda perdura.