quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O ‘Ka inacabado de Mangali


“Ó avó, manda-me para a escola, vá lá.”
Enquanto dá colheradas de leite à avó, Mangali diz “Ó avó, por favor pede ao meu pai que me mande para a escola. Se tu lhe dissesses, avó, tenho a certeza que ele me mandaria para a escola”.
Deitada para trás, exausta, sem saber se vai conseguir engolir ou não, a avó reúne todas as suas forças e engole o leite. Com olhos turvos olha fixamente para Mangali. Pobre avó, já nem sequer tem força suficiente para falar. Lágrimas oscilam no canto dos seus olhos, mas não caem.
"Avó! Avó!Avó!!!”
Quando vê que a Avó não consegue falar, Mangali fica aflita. Se ao menos conseguisse falar-lhes! Se ao menos a avó pudesse dizer uma palavrinha ao pai. Algo como 'Filho, Mangali cuida de todas as minhas necessidades. Ela é apenas uma criança e passa tantos trabalhos por minha causa! Manda-a para a escola, querido. Seria uma bênção para ti também.'
Na mente ainda inocente de Mangali o apelo é sempre visto desta maneira: 'Se a avó dissesse isto, de certeza que aconteceria!' Mas a pobre já não consegue falar; limita-se a olhar para todos fixamente e em silêncio.
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
Vivem em Kathmandu mas a casa de Mangali não é em Kathmandu. Ela nasceu nas quentes planícies do sul, a que chamam Tarai. É filha de um pobre Tharu, um homem malvado que costumava bater na mãe dela. Incapaz de aguentar a pancada, esta fugiu em segredo quando Mangali era ainda bem pequena, deixando-a para trás, indefesa, na sua infância perdida. Por vezes, Mangali transportava os bebés das pessoas da casta superior. Outras vezes esfregava os tachos e as panelas de alguém, ou lavava copos no salão de chá.
Então, um dia, o pai mandou-a, como criada, para a casa da avó.
"Avó! Avó!! Avó!!!"
A avó olha fixamente para Mangali. Sem palavras. Mangali fica cada vez mais inquieta. Se alguma coisa acontecesse à avó, o que faria? Há tanta gente, carros e estradas em Kathmandu que Mangali desorientar-se-ia se algo lhe acontecesse! Estremece de medo e o mundo parece-lhe negro, muito negro…
"Avó! Fala, vá lá! Avozinha!"
Mas a avó ainda assim não fala. Não consegue falar.
Depois do leite, Mangali dá-lhe bagos de romã. Sempre muito devagar, parando vezes sem conta, a avó vai comendo. Os seus olhos estão fixos nos olhos de Mangali. E aqueles olhos avisam 'Tenho uma coisa para dizer'. Mas nada conseguem dizer.
Na linguagem da dor, Mangali extravasa o sofrimento dos seus olhos para os da avó: “Quando o meu pai veio comigo para Kathmandu, disse que tu poderias mandar-me para a escola. Mas ninguém o fez. Pelo contrário, as únicas coisas que ouço são ‘Vem aqui, vai acolá, dá banho à avó. Limpa o chão. Lava os pratos. Faz isto, Mangali, faz aquilo, Mangali. Não faças isso, Mangali!’ É tão difícil para mim, avó!”
Pondo a boca à beira do ouvido da avó, Mangali dá voz ao seu apelo:
“Diz-lhes que não abusem de mim! Ontem, quando eu queria ver televisão, eles ralharam-me. Quando canto, riem-se de mim. O teu filho e a tua nora ouvem o que tu dizes. O teu neto e a tua neta ligam ao que tu dizes. Avó, por favor, diz-lhes só uma palavrinha, vá lá!”
Mas a Avó não diz nada. Ela não consegue falar de todo. Lágrimas brilham ao canto dos seus olhos turvos que estão literalmente colados nos de Mangali.
Mangali massaja as doloridas barrigas da perna da avó. Reagindo ao movimento suave, esta adormece e começa a ressonar. Os olhos transbordando de lágrimas, Mangali extravasa toda a dor que vai na sua alma:
"Hoje Pratima deu-me um pontapé. Depois de lhe ter engraxado os sapatos, experimentei-os. E Pratima deu-me um pontapé".
Depois de ter dito isto, Mangali começou a chorar, as lágrimas a caírem copiosamente. Agarrando a mão da avó, diz entre soluços:
"Diz-lhes que não me batam e pede ao teu filho que me mande para a escola. Se tu lhe dissesses, avó, tenho a certeza que ele me mandaria para a escola.”
Como que tentando dizer algo, os lábios da avó moveram-se lentamente. Mas não se ouviu qualquer fala. Fosse o que fosse que a avó tinha tentado dizer, o som logo se desvaneceu nos seus lábios.
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
A mãe e o pai desta casa saem para o trabalho. Os filhos, Pratima e Puja, saem para a escola. Mangali e a avó ficam todo o dia sozinhas. A todo o momento, a avó precisa de ir à sanita mas, como está acamada, não pode. E Mangali lava-a vezes sem conta.
Presa à cabeceira da avó por uma corda invisível, Mangali está confinada a uma fortaleza invisível. Não tem oportunidade de partir. E nem sequer tem hipótese de respirar um pouco de ar livre, porque a Avó geme frequentemente. Nada muda, seja de manhã, de tarde ou à noite, ontem, hoje ou amanhã.
Um dia, quando se preparava para dar água à avó com uma colher, Mangali disse "Avó, encontrei um caderninho velho e comecei a estudar. Fica melhor! Depois de estudar, queria tanto ler-te histórias dos livros!”
Mas a avó olhava fixamente para Mangali. Sempre do mesmo modo.
Na mão de Mangali havia um caderninho velho e uma caneta de aparo gasta, que ela tinha encontrado, no dia anterior, no cesto dos papéis do quarto de Pratima. No caderno estava um grande 'Ka' maiúsculo, a primeira letra do alfabeto. Em todas as páginas do caderninho, Mangali escreveu 'ka' atrás de 'ka'. Ao olhar para os seus próprios 'ka's em ziguezague, ela sente-se feliz e orgulhosa. O caderno está coberto de muitíssimos 'ka's.
"Avó, escrevi todos estes 'ka's. Olha, avó, olha. Consegues ver quantos 'ka's eu escrevi?"
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
No dia anterior, levando o caderninho na mão, Mangali tinha-se inclinado sobre a face da avó. As lágrimas tinham caído sobre a cara da avó, e o coração desta tinha-se enternecido. Lágrimas brilharam também no canto dos seus olhos.
"Avó, diz ao meu pai que me mande para a escola!"
Mexendo os lábios com grande esforço, falando com uma respiração fraca e ofegante, a avó disse, finalmente "Está bem, Mangali, vou dizer-lhe amanhã".
Mangali estava tão feliz que o seu coração se elevou aos céus como um papagaio de papel!
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
Mas a avó morreu nessa mesma noite. Quando acordou, Mangali apercebeu-se que havia prantos por toda a casa.
A mente de Mangali batia forte e nervosamente. Levando o caderno na mão, foi para a beira da avó. Os olhos desta, os olhos aos quais ela tinha mostrado os seus 'ka's, tinham-‑se fechado para nunca mais se abrirem. A avó tinha morrido sem ter a oportunidade de dizer ao filho que mandasse Mangali para a escola.
"Ó, avó, porque partiste sem me mandar para a escola?"
A avó estava hirta, como que a dormir em paz.
Com os olhos a transbordar de lágrimas, Mangali estava de pé ao seu lado.
E ainda guardava na mão o caderninho coberto de 'ka's.
Khagendra Sangraula
Mangali’s unfinished ‘Ka’
Kathmandu, FinePrint, 2002
(Tradução e adaptação)

domingo, 13 de janeiro de 2013

Pessoa(s), sem "Sombras" de dúvida!


Chovia mas a noite prometia. Estávamos em grupo, éramos amigos e o espaço onde nos encontrávamos era belíssimo: Teatro Nacional de S. João, no Porto, para a última representação da peça "Sombras" de Ricardo Pais.

"A nossa tristeza é uma imensa alegria" é a frase-chave do belo cartaz/catálogo (que guardo sempre na caixa das boas recordações). É pena (ai este jeito sombrio de achar que falta sempre alguma coisa!!! ) não constarem do cartaz alguns dos textos representados, como o monólogo inicial - dito de forma torrencial e emotiva por Emília Silvestre - que nos situa na Lisboa de Pessoa e abre uma janela à solidão.
A bela sala estava cheia. Quando as luzes/sombras começaram a abrir-se perante os nossos olhos de expectativa e silêncio, ouviu-se a voz quente e plena da fadista Raquel Tavares, desenhando-se a sua silhueta com uma guitarra portuguesa nas mãos.

Uma quinzena de artistas em palco (fadistas, atores, bailarinos, músicos) deram voz a textos que são referência na Literatura portuguesa: Castro de António Ferreira, Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett...
O poder sugestivo das cores e efeitos visuais eram outros sinais de significação: imagens em contra-luz, destaque de elementos do rosto humano, da natureza, focando-se a beleza do que muitas vezes está bem perto de nós.

O palco era revelador de pedaços da nossa tristeza sem esconder a alegria, a ironia, a aventura, a ousadia que também nos caracterizam.

Os textos eram lidos e representados de forma exímia. Mário Laginha, ao piano, acompanhou quase todas as representações que uniam tradição e Modernidade.

Os bailarinos - um deles também músico - juntavam diferentes tipos de dança, despindo-se  de preconceitos e dando corpo ao movimento com o movimento do próprio corpo.

Um belo espetáculo. Realço a criatividade necessária para a junção de texto, imagem, música, dança - uma combinação perfeita para encontrarmos um todo luminoso, ainda que o título seja "Sombras". Poder-se-á dizer: do caos nasceram belas "Sombras" que ficam, após a realização de tantos trabalhos  por tantas pessoas, realçando os produtores de obras de arte.
Em época em que tantas luzes se apagam, foi bom assistir a uma peça em que os artistas mostraram a sua versatilidade e perfeita comunicação em palco e com o público.
Trabalhos assim  ajudam a que a imensa tristeza de que também somos feitos possa assumir formas de maior alegria. 

No regresso, um relâmpago repentino rapidamente se abriu e apagou todas as luzes da estrada. Ficaram apenas sombras e luzes dos faróis dos carros. E esta, hein?

PS - Já em casa, um amigo envia um mail: o monólogo inicial (Senhor António:
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo...
) é de Fernando Pessoa. 


Sim, o poeta da Mensagem não poderia faltar. Ele que foi o Mestre na representação da alma portuguesa. Sem "Sombras" de dúvidas.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A tarde de sábado de D. Carolina

Imagem da net

Todos os sábados, pelas duas da tarde, fechava a porta, descia a rua e dirigia-se ao pequeno cabeleireiro habitual. Entrava, sorria, saudava as cabeleireiras e as clientes habituais, sentava-se, abria o fecho éclair de uma malinha de plástico, tirava de lá o tricot ou o crochet e começava a tecer o seu trabalho. Uma cabeleireira trazia-lhe um banquinho para pôr as pernas. De outra forma, como seria difícil voltar para casa; ai, assim é bem melhor. Obrigada e que mãozinhas quentinhas e macias.

Num tempo de menos confusão, as cabeleireiras arranjavam o cabelo branco de D. Carolina. Sempre de risco ao lado e esticadinho. Está bem melhor assim, Faty. Não gosto que os meus netos me vejam mal arranjada. Não quero parecer mais velha.

Voltava a sentar-se e retomava o seu trabalho manual. Pelas cinco horas, empurrava, devagarinho, o banquinho, punha os pés no chão, arrumava o trabalho no saquinho de plástico, levantava-se e regressava a casa. As cabeleireiras davam-lhe o braço até à porta, porque, depois de estar tanto tempo parada, os primeiros passos de D. Carolina eram bem mais difíceis do que os primeiros que deu quando o seu cabelo era loiro e aos caracóis.

Pela rua acima, recordava os assuntos que ouvira. Um dia, chegou a contar as clientes que viu serem penteadas. As que eram delicadas, as que contavam a sua semana como se estivessem a escrever numa agenda de horas marcadas... 

Muitos dos temas até os esquecia depressa.A renda ou a malha também não aumentavam por aí além, mas a tarde de sábado era a preferida de D. Carolina. Nem dava pelo tempo passar. 

Era assim todos os sábados. E nem era preciso pôr lembrete no frigorífico.

Às vezes sonho com ele

Monet

Gostava de o visitar quando era pequena. Eu morava junto a uma casa muito antiga onde os meus avós maternos tinham vivido e onde haviam nascido os seus treze filhos. Era uma casa de lavoura, com uma grande varanda onde havia uns bancos compridos que só eram usados ao domingo. Na parte de baixo da casa, havia bois, porcos,  galinhas,  coelhos...

A minha irmã e eu gostávamos de ir brincar para essa casa. Não na varanda, nem na cozinha, nem nas divisões da casa, porque a azáfama era sempre muita e não havia tempo para se tolerarem brincadeiras de crianças.

Brincávamos no alpendre ou no palheiro. Aqui, o chão era de madeira esburacada, mas os buracos estavam tapados pela palha.

Como o telhado do palheiro era apenas apoiado em traves de madeira, quando havia vento, ouvia-se o seu assobiar e bocados de palha saltitavam também. No inverno, a chuva entrava pelas frestas e a palha ficava molhada como se tivesse andado à chuva.

Quando a palha estava bem seca, gostávamos de correr e de saltar, porque, mesmo que caíssemos, a palha amortecia qualquer queda.

Um dia, uma de nós, correndo sobre a palha, enfiou um pé num dos buracos do palheiro. A partir daí, éramos mais cuidadosas, andando mais devagar e sobre tábuas mais seguras.

Porém, foi tal o susto, ao perceber que havia buracos no palheiro, que ainda agora sonho com ele.

No sonho, a minha irmã e eu aparecemos com o bibe que contava, bordada em cores garridas, perto da bainha, a história da carochinha. 

Felizmente há momentos da nossa infância que não caem em buracos.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Corações da ESG



Árvores (ainda) de Natal

Trabalhos de Natal - ESG