sábado, 22 de setembro de 2012
Os valores (des)conhecidos
Ontem, numa aula, veio a propósito a expressão "Valores humanos". Perguntei aos alunos, em bloco, como poderiam tornar mais específico esse conceito abrangente. Repeti a pergunta e continuei a não ter resposta da turma. Reformulei a questão e o silêncio continuou.
Se eu não conhecesse a maioria dos alunos, até pensava que o diálogo entre nós era difícil.
Até que uma aluna disse: "é isso da dignidade e não sei quê?"
Felizmente, depois surgiram outros: solidariedade, honestidade, responsabilidade...
Alguns rostos pareciam dizer que eram palavras que lembravam catequese antiga de que já pouco se falava.
Isto assim não tem jeito!
Acabo de ouvir que entraram pessoas para lugares de direção, no Ministério da Saúde, com dados falsos nos seus curriculos. A palavra frequentemente adotada nestes casos é lapso.
Será lapso dizer que que se tem mestrado ou doutoramento sem os ter feito? Para o comum dos mortais - e honestos - isso é uma grande mentira. E um insulto a quem trabalha muito para fazer pós-graduações.
Nas escolas básicas e secundárias, exigimos que os alunos estudem e não copiem trabalhos da net. Porém, os mais jovens conhecem também o que se passa à sua volta e essas recomendações vão soando a estranho.
Há cada vez mais trabalhos, que são entregues e classificados, que foram feitos por outrem. Há licenciados cujo ganha-pão é fazer trabalhos para alunos universitários que os entregam como se fossem seus. Existem teses de mestrado e doutoramento com plágio. Para não falar de políticos que conseguiram licenciaturas quase sem pôr os pés na Faculdade.
E como os enganos - os tais lapsos - se fazem com um mero e natural encolher de ombros, lá estão os altamente beneficiários de cargos, apenas porque se pertence a um partido poderoso. Ou se conhece A ou B que também detém muito poder e pode fazer um jeito porque também dá jeito.
Isto assim não tem jeito!
A música do taxista
Ela entrou no táxi para uma viagem curta. A luz amarelada do fim da tarde acetinava-lhe os cabelos negros. Os brincos compridos tombavam em ousadia.
Ouviam-se as chamadas constantes para a rua X, nº Y.
Ela ia vendo a paisagem que raramente olhava, porque habitualmente passava a conduzir.
O taxista olhava a cliente pelo retrovisor onde refletiam os seus óculos Ray-Ban.
Quando ela entrou, a música de fundo era o som da rádio. Poucos minutos depois, era jazz, cantado por voz feminina e em língua inglesa.
Ela olhava a paisagem amarelada pelo fim da tarde e início do outono que a música mais harmonizava.
Ele olhava pelo retrovisor e via que a cliente estava a gostar, apesar de se manter em silêncio.
Durante o dia, o taxista já tinha posto Tony Carreira, Xutos e Pontapés, Amália...
Os seus óculos Ray-Ban eram como o algodão: nunca enganavam!
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
A Criança e a Vida
Companheira
do sol e das raízes, cheguei à grande cidade. Numa mão levava o
diploma, na outra, o medo. O resto era a história antiga da minha
solidão e da minha esperança...
A
escola que me deram não era um desses poéticos lugares, brancos e
cheios de flores com que sonhamos no fim do curso: era um velho
primeiro andar, de uma rua suja de sal, pregões e humidade. Os rapazes
que me deram também não tinham nada de comum com esses meninos de bata
branca, normais, nos primeiros dias de aula, e que as mãezinhas nos
entregam como se fossem de porcelana.
Lembro-me desse nosso primeiro encontro, tão comovidamente, que receio não encontrar a palavra exata para o esboçar.
Abri
a porta e eles entraram. Eram quarenta e cinco e faltavam carteiras.
Faltavam muitas carteiras, mesmo quando os sentei três a três e pus
cinco na mesa que me destinaram para secretária. O diretor chegou e
disse: — Este é o seu reino e aqui tem os seus «meninos». E sorria. — Se tiver sarilhos –
há de tê‑los, mas não estranhe – a esquadra da polícia fica no fim da
rua. E eu estou ao seu dispor. Para as necessidades imediatas, aqui tem
isto. Tem de escolher desde o princípio: ou a Senhora, ou eles. Sem
complacências, se quiser sobreviver. Lamento dar-lhe a escória. Mas,
paciência.
Desceu a escada.
E eu fiquei ali, face à nova aventura.
O
silêncio que me envolveu era um silêncio pesado, expectante. E, no
meio do silêncio, eles ali estavam, na manhã que nascia. Esculpidos em
vento e mar. Vinham dos barcos ancorados no cais, do bairro de lata, de
sabe-Deus-donde. Traziam nas mãos, em vez de mala e livros – não sei
porquê, mas traziam – folhas de plátano e ramos de amendoeira florida. O
outono dourava-lhes os cabelos. Eram sementes vivas da mais autêntica
liberdade e não sabiam nada de preconceitos, nem de palavras, nem de
coisa nenhuma.
Olhei-os
também em silêncio. Um por um. Longamente. Depois, peguei na régua que
o diretor acabara de oferecer-me como apoio e dei-a ao que me pareceu
mais velho: Toma! Vai atirar fora. E depois, não sei o que lhes
disse. Mas a fome de ternura era neles como o sol, a chuva e o
desconforto. E como éramos primários, pobres e sozinhos, estabelecemos
desde aquela hora um entendimento lúcido e discreto.
E foi assim que ficámos solidários e Amigos – Para – Sempre.
Aprendi então que a Verdade é uma palavra real.
E a Lealdade, também.
Depois,
muitos vieram: da Europa, da África, das ilhas perdidas do Atlântico.
Mas ali, na escola húmida e despojada, é que aconteceu o milagre que
nunca mais se repetira.
Tenho-me
perguntado muitas vezes porquê. E cada vez vou tendo mais a certeza
que o excesso de conforto destrói o Rosto Iluminado do Homem. Aqueles
não tinham, não esperavam, nem pediam nada: por isso, estavam
disponíveis para tudo. Os passeios que demos, as notícias que
comentámos, os poemas que lemos, a vida que conscientemente os ajudei a
desventrar, foram a sua primeira riqueza e fizeram crescer na
«escória» uma branca flor de fraterna alegria.
Foi
como se um vento de loucura nos tivesse perturbado a todos, e o mundo
estivesse suspenso do que fizéssemos. E nas paredes sujas da sala,
pintámos o sol e pássaros verdes. E nos buracos dos tinteiros partidos
nasceram flores. Eles eram a Terra quente e aprenderam a amá‑la também.
E a pobreza que os esboçava começou a ser um pretexto, não para a sua
derrota, mas para a sua dignidade e a sua força.
A
alegria daqueles rapazes contagiava os indiferentes e as pessoas,
muitas, muitas: poetas, professores, pintores, operários, sentiam que
junto deles as manhãs eram mais claras e a fome mais terrível. Hoje,
alguns serão operários honestos, ardinas apressados, vendedores
ambulantes; outros serão marinheiros, outros, sei lá o que serão! Sei
lá o que a vida fez deles!
Estas
páginas são uma homenagem que lhes devo. Guardei-as, dia após dia, ano
após ano, até os perder nos novos caminhos que tive de pisar, como um
testemunho. Oxalá alguns deles possam ler estas linhas e reencontrar-se
nelas.
Não
eram génios, nem poetas, nem meninos-prodígios. Eram filhos de
pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas...
essenciais-ao-dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos
barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio.
Alimentavam‑se de um bocadinho de pão, de um peixe assado e às vezes
de água. Apenas. Tinham oito, nove, dez, onze, quinze anos, mas
conheciam as mil maneiras de escapar aos polícias, de viajar de borla,
de sobreviver.
Os
dias eram-lhes duros e comprados com muita coragem e destemor. Por
isso custei a entender – ENTENDI!? – como a Poesia foi para eles tão
violenta e tão fácil. Pediam para fazer poemas, como quem pede o pão da
fome. A princípio a medo, ingénuos. Depois, a mergulharem na aventura
da palavra com uma dor e uma lucidez já adultas.
Quando
expus a primeira coletânea de textos destes rapazes, ilustrados por
alguns dos nomes mais válidos da nossa pintura, o ambiente que cercou a
exposição, ao verem a idade dos autores, foi de suspeita e dúvida.
Quando eles apareciam, desgrenhados e sujos – a hilaridade era quase
completa. E eram eles que me confortavam, soberanos: —Deixe lá. Têm a cabeça cheia de vento. Não percebem nada.
E ficava tudo certo, outra vez.
Mas
ensinaram-me que, quando se é humilhado naquilo que em nós é claridade
e certeza, aprende-se mais depressa o sentido exato da liberdade, da
paz, do ódio, do amor e do ridículo do quotidiano. Eles revelaram-me
que a miséria transforma as crianças, mais que os adultos, em anjos
implacáveis de lucidez, e que a fome os ateia e lhes faz crescer nos
olhos brancas e terríveis asas de sonho ou destruição.
E
há, nestes anjos de fogo, uma voz oculta e violenta em que é preciso, é
urgente, meditarmos. Ela pode denunciar, construir ou semear a
alegria, a vergonha ou o remorso.
Ela pode ser a semente da Esperança, da Paz entre os homens.
Ela pode ser o ódio.
Ela pode ser o Amor.
Maria Rosa Colaço
A Criança e a Vida
Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1996
(Adaptação)
Bem ou mal do século?
Há uma expressão antiga de que me lembro às vezes.
A propósito das turmas, alguns professores diziam: é uma turma certinha. Muitas vezes ouvia a expressão e ficava a pensar no que a palavra "certinha" poderia representar: pessoas que falavam todas ao mesmo tempo e no mesmo tom de voz? Pessoas que se sentavam e levantavam ao mesmo tempo? Pessoas que usavam roupa das mesmas cores? Pessoas que diziam as mesmas coisas e aderiam às mesmas ideias?
Agora julgo que ninguém o diz. Cada vez "certinha", neste contexto, é palavra pouco certa. Se é que alguma vez o foi.
Uma das razões é o facto de ser natural a existência de diversidade na sala de aula. De facto, cada aluno tem uma história de vida bem diferente das demais. Algumas bastante difíceis. Muitas vezes só os diretores de turma é que se vão apercebendo de problemas familiares e económicos graves.
O direito à diferença é um bem do século. Porém, tanta desigualdade já é um mal.
A propósito das turmas, alguns professores diziam: é uma turma certinha. Muitas vezes ouvia a expressão e ficava a pensar no que a palavra "certinha" poderia representar: pessoas que falavam todas ao mesmo tempo e no mesmo tom de voz? Pessoas que se sentavam e levantavam ao mesmo tempo? Pessoas que usavam roupa das mesmas cores? Pessoas que diziam as mesmas coisas e aderiam às mesmas ideias?
Agora julgo que ninguém o diz. Cada vez "certinha", neste contexto, é palavra pouco certa. Se é que alguma vez o foi.
Uma das razões é o facto de ser natural a existência de diversidade na sala de aula. De facto, cada aluno tem uma história de vida bem diferente das demais. Algumas bastante difíceis. Muitas vezes só os diretores de turma é que se vão apercebendo de problemas familiares e económicos graves.
O direito à diferença é um bem do século. Porém, tanta desigualdade já é um mal.
terça-feira, 18 de setembro de 2012
O diário de Mariana
Querido diário
18 de setembro 2012
Já tinha saudades de te escrever uma página, querido e amigo diário. Não sei, mas às vezes, apetecia-me dizer tanta coisa que nem sei como começar.
As férias terminaram, já tenho aulas, a turma está maior e a sala de aula hoje parecia mais pequena e mais quente porque está muito calor. Eu por acaso não gosto de estar sempre a dizer mal, mas não acho nada bem que as portas das salas sejam tão pesadas que nem se mantêm abertas. As profs mais velhotas é que se devem ver gregas porque sempre ouvi as minhas tias e as minhas avós a falar dos calores. Ai que calor! Ai que calor!
Eu ainda não conheço bem os outros alunos que entraram para a minha turma. Às vezes, acho que as pessoas pensam que nos conhecemos todos muito bem mas nem por isso.
Amanhã vai ser a avaliação diagnóstica. A minha dêtê já falou dos relatórios que vai receber de todos os profs. Vai ser gastar papel até mais não. Claro que sou eu a dizer isso, porque a dêtê diz sempre: meninos, têm de estudar muito. Não imaginam como é bom quando há sucesso!
Ela até é fixe.
Hoje, depois da escola, fui lanchar com a minha mãe (que mania que ela tem de me dizer: anda lanchar comigo, Mariana, sem me perguntar se posso e se quero!). Por acaso até foi bom porque ouvi uma coisa muito fixe. Uma amiga que ela encontrou disse que andava à procura do pão-de-deus. Pelos vistos é um pão com coco ou açúcar por cima. E o pão era um miminho para o filho que tinha sido eleito delegado. Ela queria esse pão porque ele gosta muito. Achei mesmo altamente.
Eu um dia que tenha filhos vou-lhes fazer muitas festinhas. E não só enquanto são bebés. Eu conheço pessoas que são infelizes toda a vida porque não tiveram miminhos pelo menos quando eram pequenos.
Hoje fico-me por aqui, querido diário, porque estou muito contente e quando estou contente escrevo menos.
Talvez amanhã diga por que estou tão contente.
Muitos abracinhos, querido diário.
Mariana
domingo, 16 de setembro de 2012
No rescaldo das férias
Não me posso queixar. Pude ter férias, dei alguns passeios no nosso belo país, aproximei-me do mar, estive mais tempo e mais perto da minha família mais chegada e fundamental para mim, convivi com amigos também muito importantes na minha vida. E sabia que continuava a ter trabalho e salário ao fim do mês, apesar da supressão de subsídios.
Mas sei que milhares (se calhar, milhões) de portugueses não poderão dizer o mesmo, sobretudo em relação ao trabalho e à possibilidade de deslocações, ainda que curtas. Ontem, as ruas de muitas cidades mostraram-no bem. Com ou sem cor partidária, as pessoas manifestaram-se pacificamente, mostrando os seus rostos para que os governantes saibam que o país tem identidade e não é uma massa amorfa a quem se aplicam sucessivas experiências.
Eu não participei das manifestações, mas, ao ver as reportagens, senti que os cidadãos não podem continuar sempre do outro lado. E louvei quem foi porque o país é de todos e não apenas de alguns que mal conhecem as realidades profundas.
Dos cartazes que vi - mostrados pelas televisões - chamou-me a atenção um com um espelho. Segurava-o uma jovem, com uma bolinha vermelha no nariz, e que dizia com um sorriso empático e expressivo: "Sorria, estar a ser roubado"
As inquietações manifestadas pelas pessoas, para além de muitos desgovernos, nasciam do desemprego, da necessidade de emigração, da redução de salários, da falta de esperança, da descrença nos governantes...
Oxalá os políticos tenham visto estas imagens (a tática habitual é dizer que não viram o que não lhes interessa) e tenham alguma sensibilidade para as ter em conta em algumas medidas, até agora tomadas às cegas.
Sei que muitos portugueses nem férias puderam ter. Até o mar, que está tão próximo, foi-se tornando mais distante.
Será que um dia se poderá dizer: Sorria, não está a ser roubado!?
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
LISBOA
No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas
subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.
"Mas aqui", disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
"aqui estão ois políticos". Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
com um binóculo a olhar para o mar.
Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos
muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
"Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?"
Tomas Transtromer
http://www.livrariapoetria.com/livro.php?m=2&l=2704
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