quarta-feira, 11 de abril de 2012

"Programas escabrosos"

Há dias, uma diseuse de poesia mostrava-se muito satisfeita por ser convidada  para, em lares de idosos, dizer poemas. E dizia alto e bom som: é uma maneira de afastar os velhos dos programas escabrosos que passam na televisão.

De facto, muitos desses programas de longas manhãs e tardes, têm largas audiências por não haver muitas  alternativas para quem os vê. Alguns dos apresentadores falam aos berros, muitos convidados só contam desgraças, o diálogo estabelecido com os espectadores é básico e oco...

Botero
Às vezes, também as pessoas que estão no estúdio têm de fazer movimentos que nem ao diabo lembra. É costume haver no público muitas mulheres já com bastante idade. Claro que é melhor estarem lá do que em casa, de roupão, a morrer de solidão e tristeza, mas, no regresso a casa, pouco sobrará para contar. Se houver a quem contar.

Não sei que poemas a tal diseuse tem partilhado, mas não o deve ter feito aos berros nem deve ter escolhido palavras de desgraça. E pode ser que ajude a encontrar alternativas mais felizes.

"Eu amo-te"

Ah-nuld, o macaco
Durante os últimos dez anos tenho orientado passeios ecológicos e de vida selvagem na Costa Rica. Embora tenha tido inúmeros encontros hilariantes com macacos, preguiças, jaguares e outros animais exóticos da floresta tropical, há uma viagem que se destaca entre todas quando o nosso grupo teve o privilégio de testemunhar um acontecimento verdadeiramente extraordinário.
Nessa viagem em particular, o nosso grupo de entusiastas da vida selvagem incluía Jim e o seu filho adolescente Andy. Pai e filho não eram o que podemos chamar de clientes típicos. Jim era um antigo militar de modos austeros, nos seus cinquenta e muitos anos, que não falava muito, mas que parecia entrar frequentemente em confronto com o filho. Eu tinha pena de Andy, cujo entusiasmo pela aventura chocava com a carapaça dura e modos controladores de Jim. Uma vez, Jim chegou mesmo a ser rude com ele, puxando-o asperamente pelo braço quando Andy se deixou ficar para trás tentando apanhar uma rã venenosa de cor vermelha e azul. Ninguém proferiu palavra, mas quase todos os do grupo passaram a evitar Jim depois desse episódio.
Tentei passar um tempo extra com Andy. Ele confessou-me que estava morto por ver um jaguar. Então esgueirávamo-nos, tarde na noite, já depois de todos terem ido para a cama, para ir procurar rãs e outros animais noturnos. Era o nosso pequeno segredo.
Mais ou menos a meio da viagem, numa área remota do Parque Nacional do Corcovado, o nosso grupo encontrou um bandode vinte macacos capuchinho de cara branca e parámos para observar. Os capuchinhos de cara branca são frequentemente usados em filmes, porque são extremamente espertos e têm um comportamento muito semelhante ao dos humanos. Mas embora estes macacos sejam, por norma, bastante amistosos e sociáveis, este bando incluía um macho alfa, que era invulgarmente agressivo. Era muito territorial e até ao final da tarde já tínhamos presenciado várias escaramuças violentas. Quando algum dos outros macacos se aproximava demasiado, ele corria em direção aos outros arreganhando os dentes, chegando mesmo a embater contra eles. Pusemos-lhe a alcunha de Ah-nuld, em homenagem a Arnold Schwarzenegger.
Mantendo uma distância respeitosa, seguimos o bando de macacos à medida que eles iam pilhando através da floresta, parando ocasionalmente para se regalar com figos maduros que pendiam de algumas árvores. Na retaguarda do bando encontrava-se um macaquinho bastante jovem, que não teria mais de 1 metro de altura, cuja mãe andava já a ensinar-lhe como trepar aos ramos e seguir os outros. De quando em quando, a mãe conseguia levá-lo do tronco de uma árvore mais larga até um ramo mais afastado. Isto era o mais difícil de fazer para o macaquinho. Parava, choramingava, recuava e avançava, analisando qualquer outra opção antes de finalmente dar o salto para além do tronco. O nosso grupo batia palmas entusiasticamente sempre que ele conseguia.
Depois de algum tempo, o macaquinho começou a ficar cansado e a deixar-se ficar para trás. Quanto mais afastado ficava, mais alto ele choramingava e gemia, para conseguir a atenção da mãe. Esta parava e esperava por ele, mas nunca voltou para trás. Finalmente, o macaquinho bebé chegou a uma árvore grande, que era demasiado larga para ele conseguir ultrapassar. O seu choro tornou-se cada vez mais alto até que, por fim, a mãe recuou uns passos e permitiu que ele usasse as suas costas como uma espécie de ponte. Uma vez a salvo o filhote, ela continuou na retaguarda do bando, com o pequeno macaco cansado, ainda a choramingar, agarrado fortemente às suas costas.
Mas o choro continuou, cada vez mais alto e irritante, até que despertou a atenção do macho alfa que liderava o bando o terrífico Ah-nuld. Arreganhando os dentes e silvando furiosamente, o grande macho dirigiu-se para a mãe e a cria, deitando fogo pelos olhos. Aquela assumiu uma postura defensiva e emitiu um forte rosnado. Todos nós suspendemos a respiração, sem saber o que Ah-nuld iria fazer, mas esperando o pior.
Quando Ah-nuld se abeirou de mãe e do filhote, a sua face suavizou-se. Olhou diretamente para o macaquinho bebé, como se o visse pela primeira vez. De seguida, Ah-nuld acercou-se da cria aterrorizada, tomou delicadamente a minúscula cara do bebé entre as mãos e depositou-lhe um beijo na testa. O bebé parou de chorar imediatamente. Ah-nuld ficou ali, embalando suavemente a cabeça do macaquinho, e afagando-lhe amorosamente o pelo com os dentes.
Imagem retirada da net
O nosso grupo deixou escapar um suspiro coletivo de alívio. Estávamos tão rendidos à ternura do momento que quase não nos apercebemos de Jim, o nosso Ah-nuld, a soluçar discretamente. Ninguém disse uma palavra, talvez por delicadeza, embora eu suspeite que, lá no fundo, todos nós ficámos felizes ao vê-lo amolecer um pouco. Sussurrando com entusiasmo, fizemos o percurso de regresso à cabana. Depois do jantar, sentei-me com Jim e alguns outros na varanda, a balançar nas redes e a escutar os sons da floresta tropical, tão lindos e variados como se de uma sinfonia se tratasse.
A paz foi quebrada quando Andy se dirigiu para o alpendre e Jim se esticou para agarrá-lo, segurando bruscamente o braço do rapaz. Andy ficou tenso. O coração caiu-me aos pés, pois estava à espera de outra luta entre os dois. Todos os olhares se fixaram ansiosamente no pai e no filho. Então Jim puxou Andy até ele, deu-lhe um abraço e disse “Estou tão feliz por estarmos a fazer esta viagem juntos! Sempre quis que tivesses uma experiência deste tipo. Andy, eu sei que muitas vezes nem te dás conta, mas eu amo-te.” Chocado, Andy olhou para o pai, como se fosse a primeira vez que o tinha ouvido dizer “Eu amo-te”. Mais tarde, viemos a saber que efetivamente assim era.
Josh Cohen
Jack Canfield; Mark Victor Hansen; Steve Zikman
Chicken soup for the nature lover’s soul
Florida, HCI, 2004
(Tradução e adaptação)



terça-feira, 10 de abril de 2012

Aprendi agora esta palavra: nomofobia


Pelos vistos, nomofobia é o receio de privação do uso do telemóvel.

Nomofóbica não sou, mas gosto de saber que tenho comigo o telemóvel, em caso de precisar dele. Porém,  ponho o som tão baixo que muitas vezes nem o oiço.

É que faz-me impressão o toque estridente do telemóvel em locais de lazer, em qualquer reunião, no comboio, em cerimónias religiosas, no restaurante, em sala de espera, em casamento, em funeral...
Muitas vezes, as pessoas pegam no telemóvel e saem, atrapalhadamente, a correr do local, enquanto ele vai lançando sons cada vez mais agudos. Outras vezes, não saem do sítio, olham atentamente o visor para identificar quem chama e só um tempinho depois é que atendem, sem reparar sequer no frete que estão a causar às pessoas.

Recordo-me que uma vez pensava com prazer na viagem de comboio Lisboa-Porto. Poderia ler, olhar a paisagem, descansar, pôr algumas ideias em ordem... O que me esperava, porém, eram alguns companheiros de carruagem a pôr chamadas telefónicas em dia. Ele eram negócios, ele eram conversas de família... diálogos infindáveis que só os surdos não ouviriam e só os santos não achariam castigo.

Imagem retirada da net
Uma outra vez, encontrava-me num hotel no Douro. Sentei-me ao sol, tendo o céu azul e o verde das vinhas sonhadamente perto. Até apetecia respirar fundo e agradecer a maravilha. Daí a nada, foram chegando mais pessoas. Uma delas fazia anos e começou a contactar, via telemóvel, a família e amigos. Como se não bastasse, outras tantas chamadas recebia. Quando o telefone tocava, eu só dizia: não é possível!

Assim sendo, estaremos rodeados de nomofóbicos? Ou será uma maneira de afastar o toque de outras fobias?


Ela disse: é ouro!


A chuva começou a cair. E ela, que planta as couves, as alfaces... que semeia a salsa, as ervilhas, as favas... vendo a chuva a cair, disse: é ouro que vem do céu.

E até as ervas aromáticas ganharam mais sabor! Não sei se pela atenção se pelo aconchego, renovado, da raiz.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

As trepadeiras cruzam-se no Céu


Tal como cães

Há dias, ouvi que uma mulher idosa foi mortalmente colhida numa autoestrada. No entanto, o acesso a peões foi considerado impossível. Nesse mesmo dia, ouvi uma atriz  referir, com revolta, os velhos que são deixados nas estradas. 
Lembrei-me dos cães que são abandonados nesses espaços  de alta velocidade. Para não mais regressarem.
Os velhos. Tal como cães.

Todos os dias, concluimos coisas e começamos outras


Isto passa-se com as pequenas coisas ou com tarefas de maior relevância. Dizemos: hoje, vou fazer esta parte; depois, começo outra. É como ir arrumando algumas gavetas. E como é bom quando se conclui a arrumação e aquele espaço fica mais organizado. Até se encontram coisas que há muito se julgavam perdidas.
É como pôr nova terra num canteiro para nascerem novas flores.
Os dias são ciclos que vamos mantendo, concluindo coisas e reiniciando outras. E, neste processo, é mágico olhar à nossa volta e ver imagens que também julgávamos perdidas.
Ainda que saibamos que há sempre gavetas que continuam por arrumar.

Um brinde aos "noivos"

Brindámos aos noivos de há sessenta e quatro anos. Nesse ano, no dia 8 de abril, casaram-se. Ele, elegante, de fato preto; ela, elegante também, de fato branco e um ramo de jarros de mimosa brancura. 
Foram viver para uma casa pequenina. Não perguntei, mas de certeza que havia lugar para flores. Nem que fosse em vasos.
Gosto de ver a fotografia desse dia em que os meus pais se casaram. Ambos jovens e risonhos.
Ontem, brindámos ao seu casamento de mais de seis décadas. 
Eles falaram da vida que iniciaram em comum com muito poucas coisas. 
Já ficou combinado: quando celebrarem sessenta e cinco anos de casados haverá festa. Oxalá continuemos todos a sorrir, mesmo com as diferenças que vão vincando os rostos.

domingo, 8 de abril de 2012

PÁSCOA


Hokusai 
  
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.

Miguel Torga: Poesia Completa

 

sábado, 7 de abril de 2012

Os meus óculos partiram-se e o mundo ficou menos nítido

Mas será que o mundo está menos nítido ou será da falta dos óculos?
Pus uns óculos mais antigos que às vezes utilizo, porque ainda vejo bem com eles. Ou melhor, via, porque, apesar de o mundo se tornar mais nítido, ainda tem pouca nitidez.
Que chatice, em ano sem subsídio, vou ver de comprar novos óculos.
Mas será que o mundo está baço apenas porque não vejo bem sem óculos?
No entanto, estou a escrever com os óculos que usei durante uns anos.
Será que o mundo foi ficando mais baço ou o problema é só da minha vista?
Não posso responder claramente porque parti os meus óculos.
Hoje mesmo, vou tentar arranjar novos óculos.
Na esperança de ver que o mundo não perdeu nitidez e o problema é  só da minha vista.
Será?

Um dia



 Monet
              Um dia, mortos, gastos, voltaremos

              A viver livres como os animais

              E mesmo tão cansados floriremos

              Irmãos vivos do mar e dos pinhais

              

              O vento levará os mil cansaços

              Dos gestos agitados, irreais

              E há-de voltar aos nossos membros lassos

              A leve rapidez dos animais.

              

              Só então poderemos caminhar

              Através do mistério que se embala

              No verde dos pinhais, na voz do mar,

              E em nós germinará a sua fala.



Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 6 de abril de 2012

PIETÁ

Pietá -Michelangelo

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga, Poesia Completa,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 117.

Cafezinho e lapso


Ele é um jovem americano que está a aprender português. Perguntou: porquê cafezinho? É menos quantidade de café? Foi-lhe explicado que é um diminutivo habitual quando dizemos certas palavras em sinal de carinho.
Ele perguntou (julgo com ironia) se se aplicava a outras palavras: aeroportozinho, pilotozinho, chãozinho… Deu risota.
Ontem, uma das palavras mais repetidas nas televisões era lapso – a propósito do prolongamento do período em que os funcionários públicos não vão receber subsídio de férias nem de Natal. A maioria, é claro, porque prevê-se que instituições como a TAP e a CGD continuem como dantes. A este propósito, na altura da decisão da manutenção dos subsídios, alguns ministros disseram que não se tratava de regime de exceção mas de uma adaptação. Também deu risota, mas com riso amarelo, como é bom de ver.
Voltando à palavra lapso, se o jovem americano a conhecesse, talvez perguntasse se se podia dizer lapsozinho!
Se fosse ao Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, veria que a palavra provém do “latim lapsus ‘escorregadela’. 1. Ato de escorregar, de cair em falta. 2. Falta, erro, engano, por distração, descuido ou esquecimento. Falha”…
Os governantes que utiliza(ra)m a palavra ‘lapso’ insistem, imaculadamente, que ter dito que os subsídios não seriam aplicados  durante dois anos foi um lapso. Um erro? Não, um lapso? Um engano? Não, um lapso. Uma falha? Não, um lapso.
Os humoristas vão ter assunto. Nós, os funcionários públicos de brandos costumes, vamos comentando estes erros enquanto tomamos o nosso cafezinho.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Se às Vezes Digo que as Flores Sorriem

 Renoir

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXI"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Seleção (natural?)




Em grande grupo





Entre a segurança e a ousadia


Quase todas as cores


Sobre um rio carregado


Sob um céu pesado