terça-feira, 20 de agosto de 2024

Eu amo-o, senhora enfermeira!


Do que Alcina menos gostava no hospital era das noites Custava-lhe a luz forte e comprida da parede em frente, que ficava acesa até muito tarde. Também a vozearia das enfermeiras e das auxiliares a perturbava.  Porém, não fazia críticas, porque, desde pequena, a isso não fora habituada e a reação implicava sempre ralhetes e o pior era fazerem-lhe crer que ela não tinha direito a opinião.

Nesses momentos, fechava os olhos, parecia dormir, mas estava bem acordada. Deixava fluir o pensamento, com muitos avanços e recuos. Era então que muitos dias do passado lhe afloravam ao pensamento. E lá se desenhavam momentos sem nenhuma cor de qualquer carinho. Vinham também monólogos antigos que não deixavam tempo nem permissão para qualquer resposta ou defesa.

E a falta que lhe faziam mimos, beijos e abraços. Se ao menos tivesse  tido uma tia ou uma avó que a acarinhassem, mas nem isso!

Só o médico que a acompanhava no hospital parecia compreendê-la. Mais vale tarde do que nunca - pensava ela. Ele tratava-a pelo nome, ouvia-a e olhava-a com atenção e ela sentia que era bom ter nascido.

Numa noite, em que as insónias a faziam virar e revirar na cama vezes sem conta, já com dores no corpo e no pensamento, a mão premiu, repentinamente, a campainha de chamada.

A enfermeira de serviço entrou, acendeu a luz e perguntou:

- Quem tocou?

- Fui eu - disse D. Alcina,  com voz fraca e quebrada. 

- O que se passa? De que precisa? 

- Peço  desculpa, senhora enfermeira, mas eu amo-o.

- Não entendi - respondeu a enfermeira, conchegando-lhe a roupa da cama, enquanto perguntava apressada e perplexa:

- Você gosta de quem?

D. Alcina, olhando-a, pensou: ‘você’ não entenderia e disse, fechando os olhos:

- Desculpe, senhora enfermeira, estava a sonhar!! 


2 comentários:

  1. Para quem trabalha de noite, essas, custam sempre muito a passar. Eu trabalhei por turnos, diurnos e noturnos, e sei do que falo.
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    Saudações poéticas e amigas.
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    Poema: “ Lágrimas, Amor e Saudade “
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  2. Imagino que não seja fácil. Aqui também se trata de solidão e de falta de empatia, embora reconheça que auxiliares e enfermeiros não tenham a vida fácil.
    Bom domingo, Ricardo

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