Esta história, quase toda real, foi publicada, este ano,
no livro Lugares e Palavras de Natal, Editora Lugar da Palavra
Dezembro
estava a correr, tal como novembro e outubro haviam corrido. Com vários outonos
a interligar-se, surgiu uma viagem inesperada, a fazer o mais recatadamente
possível, com duração prevista de três meses. Apesar de longa, aceitou-a de bom
grado e foi dando os passos necessários para que os percursos fossem amenos,
para ela e para quem com ela viajava.
Nos
anos anteriores, e antes que chegasse dezembro, já costumava ter prontos os
presentes para a família (mesmo havendo o divertido ‘amigo secreto’) e para
amigos. Há muito que deixara de gostar
de ir às lojas em alturas do Natal. Se lá entrasse várias semanas antes das
Festas, nem saberia o que escolher pela profusão de coisas nas prateleiras; se
fosse quase nas vésperas, o frenesim de pessoas a vasculhar o que restava tirava-lhe
a motivação. Fazendo ela própria os presentes, podia também ir ao encontro de quem
os iria receber.
Contudo,
neste Natal, tudo seria diferente pela viagem em curso. No entanto, as ideias para
os presentes continuavam-lhe na cabeça, mas, feito, visto e palpável, permanecia
apenas o início de uns trabalhos em tecido e em crochet, na cestinha, que se
mantinha sossegada e onde se misturavam os novelos, as agulhas, a tesoura… Ah,
e também lá estava o livro que andava a ler. Até a leitura não tinha avançado,
como bem mostrava o marcador que parecia colado às mesmas páginas. E tal não
acontecia por falta de tempo, mas por serem cansativos bastantes dias da viagem.
E
pensava como eram bons os Natais na velha casa de A-Ver-O-Rio em que a família
sempre se reunia. Como todos juntos eram numerosos, as panelas para a ceia tinham
de ser grandes. Para a canja, para as batatas, para o bacalhau, para as
hortaliças, para o molho de Natal - prevendo-se sempre o saboroso farrapo velho
do dia seguinte.
Numa
mesa ao canto da sala, as sobremesas exalavam o perfume consolador e natalício da
canela, vindo de iguarias que cada um ia trazendo: rabanadas, aletria, bolinhos
de abóbora, bolo-rei…
Mas
era na cozinha que reinava a peça capital: o fogão a lenha, que o patriarca da
casa antigamente mandou instalar para aquecer a alma e o coração da amada
matriarca, cujos gostos gostava de satisfazer.
Como
o fogão era aceso quase só pelo Natal, às vezes, parecia adormecido por alguma
inabilidade ou falta de lenha ou por esta ter sido guardada ainda húmida; noutras
ocasiões, parecia um dragão ardentemente enfurecido, fazendo saltar água a ferver
pela boca das panelas… Eram momentos de
algum embaraço e aflição, mas que passavam a peripécia contada com graça,
quando já estavam todos sentados para a ceia e as travessas a fumegar sobre a
mesa farta, alegre e ruidosa. E ainda mais pela festiva vozearia das crianças,
ansiosas pela brincadeira e pela abertura das prendas.
Fazia-lhe
falta o Natal em família, apesar da trabalheira desses dias. Vivê-lo-ia, este
ano, à distância daquele espaço familiar bonançoso, mas fechado por causa do
frio, do vento e da chuva. Estaria próxima só em pensamento, porque não poderia
interromper a viagem até ao desejado bom porto, que esperava encontrar logo a
seguir ao Natal, para, em 2025, poder estar de novo à volta do fogão de lenha e
à mesa com toda a família.
E,
até lá, revigorada e com tempo, concluiria os presentes que tinha apenas começado.
E terminaria a leitura do livro. E leria mais. E escreveria mais. E sorriria
mais. E viveria mais.
Olhou
o relógio. Estava na hora. Tomou banho, lavou o cabelo - que continuava forte,
mas que se tornara mais fino - hidratou bem o corpo, vestiu o seu vestido
preferido, pôs os brincos com a pedra a condizer, usou o perfume de que mais
gostava, bebeu um copo de água, viu-se ao espelho e sorriu à imagem que via.
Estava
próximo o final previsto da viagem, iniciada três meses antes. E saiu, com alegre
e firme esperança, para o seu último tratamento.