Tenho uma amiga que gosta muito de ler autores de língua espanhola. De vez em quando, envia excertos que são pérolas, como o que hoje partilho. Como também ando a ler o livro, já sou fã do polícia Melchor Marin, que foi convidado a fazer um discurso, coisa a que não estava nada habituado!
Tenho pena é de não poder ler muito tempo seguido, porque há páginas cuja história não apetece mesmo nada interromper.
Obrigada, Idalina, por tão boas sugestões.
Oxalá gostem também.
"- Chamo-me Melchor Marín e sou polícia – apresenta-se. – Muitos de vocês já me conhecem. Fui jurado do prémio e por isso pediram-me que dissesse algumas palavras. Por isso e porque mais ninguém queria fazê-lo. – Melchor levanta um pouco os olhos na direção do auditório: quando preparava o discurso, pensou que seria bom começar com uma piada, para que os jovens se rissem; mas ninguém se riu. Talvez não tivesse graça ou ninguém o tenha ouvido. O alvoroço continua a ser considerável, mesmo que os professores percorram os corredores de cima a baixo tentando silenciá-lo. – E também porque gosto de ler romances – continua. – Isto não é muito comum, acho. O que quero dizer é que não é muito habitual os polícias lerem romances, certamente porque os meus colegas pensam que é mais útil e mais divertido ler sobre coisas reais do que sobre coisas inventadas. Talvez tenham razão e por isso percebo que alguns, às vezes, se riam de mim. Ao princípio, quando era mais novo, isso aborrecia-me; agora já não, porque me dei conta de que um homem que se aborrece porque os outros se riem dele não é um homem. – Melchor limpa a garganta, volta a olhar com apreensão para a plateia e repara que um silêncio quase perfeito se apoderou dela; por instantes pensa que aconteceu alguma coisa, ou que alguém importante acaba de irromper na sala. – Quando era miúdo não gostava de ler – prossegue. – Gostava de me armar em gandulo, como toda a gente. – Aqui ouvem-se alguns risos: coibidos, isolados, trocistas, inseguros. – Descobri os romances na cadeia, quando era mais ou menos como vocês, como os mais velhos de vocês, pelo menos, talvez um pouco mais velho. A cadeia é um lugar muito mau, não vos recomendo. – Agora a risota é geral, e, um pouco surpreendido, Melchor deixa de falar e aguarda que se faça silêncio novamente. Retoma a frase do princípio e termina-a: - Mas, às vezes, até num lugar tão mau acontecem coisas boas. Por exemplo, Cervantes teve a ideia para o Dom Quixote numa cadeia; bom, é o que dizem, eu não sei porque não li o Quixote. Se calhar fiz mal, ao fim e ao cabo toda a gente diz que é um romance muito bom. Mas, não sei porquê, sempre pensei que não me estava destinado, e outra coisa que aprendi com os anos é que uma pessoa só deve ler os romances que lhe estão destinados.
Mas voltemos à cadeia. Comecei a ler romances por causa de um homem que conheci ali. Chamava-se Gilles e os guardas chamavam-lhe Guille, mas, como era francês, os reclusos chamava-lhe o Francês. É uma das melhores pessoas que conheci na vida, apesar de estar na cadeia por ter matado à martelada a mulher e um amigo dela. Este verão tornei a vê-lo, em Barcelona, e estava apaixonado, que é o que de melhor nos pode acontecer. – Melchor faz uma pausa, sente a boca seca e compreende que foi o medo que a secou. Infelizmente, ninguém se lembrou de deixar um copo de água no atril e, entre o silêncio, tente infundir coragem a si próprio, dizendo que já falta pouco para acabar. – O caso é que o Francês era o bibliotecário da cadeia e passava o dia a ler. Eu queria ser como ele, de modo que me pus a ler romances. A verdade é que de início não me agradaram muito, mas depois li Os Miseráveis, o romance de Victor Hugo. É muito famoso, não sei se ouviram falar dele… Eu li-o porque um dia o vi na mesa do Francês e me lembrei da minha mãe, que se queixava sempre das minhas más notas na escola e me dizia: «Se queres ser um miserável como eu, não estudes.» - Os risos obrigam-no novamente a parar, mas ele não se atreve a olhar para a plateia e, assim que o silêncio se instala, continua a falar. – De modo que li Os Miseráveis e, nesse momento, tudo mudou. Gostaria muito de vos dizer como mudou, mas a verdade é que não sei, não sou capaz de explicar. Durante anos pensei que foi por esse romance falar de mim, mas mais tarde vim para a Terra Alta e conheci a minha mulher, que me disse que todos os romances bons falam de nós. Tinha razão, claro, quando se tratava de livros a minha mulher tinha sempre razão, chamava-se Olga e era bibliotecária aqui ao lado, na Biblioteca Municipal, alguns de vós ainda se devem lembrar dela; graças a Olga comecei a colaborar na biblioteca, a levar-vos livros para a piscina no verão e coisas do género… Bom, acho que me perdi. – Durante os dois ou três segundos em que Melchor permanece calado, na sala não se ouve nem uma mosca. – Ah, sim, estava a dizer-vos que, segundo a minha mulher, todos os bons romances falam de nós. E também dizia que Os Miseráveis não era diferente, que não falava especificamente para mim. Claro que só dizia isso ao princípio, depois de nos casarmos mudou de ideias, começou a pensar que, se calhar, eu tinha razão e que Os Miseráveis era realmente um romance especial, não porque falasse de mim, mas porque falava de nós, dela e de mim. É que eu e a minha mulher nos amávamos muito… Enfim, tudo isto é muito complicado, como veem, e eu não me dou muito bem com discursos. Felizmente, este já está a acabar. De modo que, para terminar, dir-vos-ei outra coisa que aprendi a ler romances. O que aprendi é que os romances não servem para nada. Nem sequer contam as coisas como elas são, mas como poderiam ter sido, ou como gostaríamos que fossem. Por isso nos salvam a vida. – Melchor cala-se, absorto, e o auditório fica expectante, duvidando se ele já terminou ou não; finalmente, ele acrescenta, quase como se o fizesse para si próprio: - Bom, isso é tudo o que vos queria dizer: que os romances não servem para nada, exceto para salvar vidas".
Cercas, Javier, Independência, 2022, Porto Editora, pp. 318-320.