Quando
se conta a outrem um segredo este
desmaia: a palavra
torna-se pele
sem leão lá dentro.
Júlio Pomar
Eu não conhecia a instalação com baloiços numa das
entradas da Tate Modern, em Londres. Quando os vi, num fim de semana prolongado
de outubro, fiquei fascinada com aquele espaço de descontração e de interação
num museu com obras tão sérias e representativas da evolução do mundo.
Estando na fila do museu para comprar o bilhete, vi,
com surpresa, o vaivém de Mirene, num dos baloiços. Olhei mais uma vez para
confirmar. Sim, era ela, sem dúvida, a Mirene, a minha aluna do 12º ano.
Quando já tinha o bilhete para visitar a exposição de
Modigliani, parei um bom bocado para ver se ela me via, mas sem sucesso da
minha parte, e não pude sequer acenar-lhe. Continuava a baloiçar-se, parecendo
muito feliz.
A Mirene era uma aluna que sempre considerei diferente
de muitos outros jovens da turma, se bem que cada ser humano tem as suas naturais
especificidades. Ela participava assiduamente em atividades escolares ligadas à
arte, fossem de que tipo fossem. Na escola, eu integrava uma oficina de escrita
e Mirene escrevia pelo menos um conto todos os anos para um concurso do qual
resultava a publicação de uma coletânea.
Embora a equipa organizadora convidasse todos os
participantes a ilustrar a narrativa, quase ninguém o fazia. Alguns alunos procuravam
apenas uma imagem da net e colavam-na no texto de forma displicente. Porém, Mirene fazia acompanhar
a sua história de um desenho original que remetia eficazmente para o conteúdo
da narrativa, sendo o trabalho dela sempre reconhecido e publicado. Todavia,
raramente estava presente na festa do lançamento da coletânea e da entrega dos
prémios. Dizia que morava longe. Que não tinha transporte. Que tinha de ficar
com a irmã mais nova... De facto, quando não tinha aulas, poucas vezes era
vista na escola. E não falava muito de si, como muitos outros alunos, sobretudo
raparigas, a não ser de que gostava, um dia, de emigrar para conhecer novas
realidades geográficas e culturais. Parecia guardar segredos que não
contava porque eram uma parte de si que queria conservar intacta.
Quando, nas aulas de Português, abordávamos temas
ligados à arte, ficava muito concentrada e, mesmo que algum colega lhe dirigisse
a palavra à sorrelfa, nem o ouvia, atenta que estava às imagens e ao que
poderiam significar. Um dia, falou-me do museu d’Orsay que já tinha visitado
para aprender mais sobre a pintura impressionista. Acrescentou que tinha ficado
a conhecer apenas alguns pintores e algumas obras, porque é impossível ir a um
museu e, durante um ou dois dias, apreciar todo o seu acervo. Concordei com ela
e passei a dar-lhe mais valor ainda por esta convicção que considerei adulta e
esclarecida.
Nessa altura falou com muito pormenor de algumas
obras, sobretudo do pintor Toulouse-Lautrec. Estranhei tanta observação e tanto
conhecimento adquirido em tão pouco tempo. Claro que a internet permite
múltiplas visitas, mas via-se que a entrada no museu tinha sido real e não
apenas virtual. Não lhe fiz perguntas sobre outros lugares aonde ela já tinha
ido nem indaguei sobre as circunstâncias, porque pareceu-me que não mostrava
vontade de partilhar esses assuntos naquele dia.
Voltando à minha visita à Tate Modern, depois de
comprar o bilhete, ainda esperei algum tempo que Mirene olhasse e me visse
enquanto se baloiçava, mas estava tão concentrada como nas aulas que mais lhe
agradavam. E, curioso, apesar de ser uma rapariga discreta, dava impulso ao
baloiço e elevava-se mais do que todas as outras pessoas que os utilizavam, na
grande maioria jovens.
Vi-a depois levantar a perna esquerda, no prazer estonteante
de baloiçar. Estranhei a amplitude do movimento porque sempre conheci Mirene
como uma rapariga discreta. Naquele dia, ela vestia uma saia comprida e com
folhos. Reparei que tinha umas sabrinas que lhe adelgaçavam ainda mais os pés
franzinos. Uma delas, a do pé esquerdo, que Mirene mais levantava, foi
cair mais à frente, parecendo voar.
Mirene impulsionava o baloiço, soerguia o braço esquerdo, olhando sempre
para baixo, como se, fascinada, estivesse a ser observada por alguém que
perscrutava, com malícia, o esvoaçar das suas saias. Segurava as cordas
laterais do baloiço, levantando, graciosamente, a mão esquerda. Sorria como se
voasse, livre, e estivesse sozinha na presença de um admirador que a fixava com
curiosos olhos aduladores.
Aquele quadro sugeria-me uma pintura que eu já tinha
visto algures, mas que não sabia identificar claramente.
Subi as escadas rolantes e, já no andar de cima, parei
e observei-a de novo. Se olhasse na minha direção, eu poderia fazer-lhe sinal.
Falaríamos um pouco e podíamos até tomar um café. Se não houvesse tempo, na
semana seguinte, abordaríamos o assunto nas aulas, porque, confesso, fiquei atónita
pelo modo encantatório como Mirene se baloiçava. Alguns instantes depois, sem
olhar sequer para os lados, saltou do baloiço, recolheu, discretamente, a
sabrina do chão e afastou-se, dirigindo-se a uma sala distante da que eu tinha
escolhido e não voltei a encontrá-la naquela tarde, apesar de eu ter
permanecido várias horas no Museu.
No dia seguinte, resolvi ir à Wallace Colection, na
Hertford House, em Manchester Square, onde nunca tinha estado. Queria visitar o
museu, mas interessava-me sobremaneira 'O baloiço' de Fragonard, de que já
tinha ouvido falar num atelier de escrita ligada à pintura, mas de cuja imagem
já não me lembrava nitidamente, embora o baloiço de Mirene me tivesse avivado
algumas memórias. Dirigi-me, então, à sala Fragonard, onde está o famoso quadro
com o baloiço usado por uma bela jovem de chinelinhas e longas vestes rodadas.
Levantando a perna esquerda, a jovem deixa voar a chinelinha, enquanto é
observada por um admirador que, com sensualidade, num plano inferior, espreita a
possível nudez pelo continuado e arrojado baloiçar. Observei o quadro com
atenção e logo o comparei aos movimentos de Mirene no baloiço da Tate Modern,
apesar de o contexto ser completamente diferente. Na Tate, o espaço da
instalação era amplo, despojado e muito visitado; no quadro, o baloiço
situava-se entre um denso arvoredo, penetrado por uma luz harmoniosa, propício
à volúpia sedutora das figuras de volumosas roupagens barrocas, destacando-se a
chinelinha a voar, destapando o pé da jovem que se deliciava a baloiçar-se, na
mira de o admirador que procurava ver destapada a possível nudez esvoaçante. Ah,
disse para mim, voa a chinelinha, tal como voou a sabrina de Mirene.
Na sala Fragonard, muito perto do quadro que muitos
apreciam e outros tantos satirizam, deparei com um pequeno grupo de raparigas,
sentadas no chão, a esboçar as linhas da tela que os compêndios dizem ser uma
obra-prima do rococó. Uma delas era Mirene. Sim, Mirene, a minha aluna de uma
escola de província, a esboçar as linhas que via num quadro de um dos museus de
Londres. Estava tão imersa no desenho que não me viu nem eu a quis interromper.
Parecia alheada de tudo o que se passava à sua volta. Estivemos a poucos
centímetros de distância e os meus joelhos quase tocaram as suas costas, mas
não a quis dispersar nem perturbar a sua mão firme e concentrada. Estava tão
próxima de Mirene que pude observar de perto o famoso quadro, comparando-o com
o desenho dela, antes de continuar a visita. Ainda voltei a essa sala, curiosa
da evolução do esboço que Mirene estava a produzir, tendo podido verificar que
a atitude atenta da minha aluna se mantinha de forma permanente. Regressei à
sala uma terceira vez, mas o grupo já lá não estava. Não voltei a rever Mirene
enquanto permaneci em Londres.
Numa aula, após este episódio, levei o "Baloiço
de Fragonard", poema de Jorge de
Sena, para o analisarmos em conjunto, trabalho que decorreu com o quadro de
Fragonard projetado, sendo assim mais sensível a ligação pintura/escrita. Perante
as duas obras de arte, e quando entreguei a folha com a composição poética aos
alunos, o olhar de Mirene oscilou compulsivamente entre a pintura e o texto.
Nos olhos dela, havia êxtase e curiosidade na análise dos versos de Jorge de Sena:
'Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entreveem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!'
...
No final da aula, ao contrário do que era habitual,
Mirene aproximou-se de mim, dizendo:
- Não conhecia o poema, mas conheço este quadro,
professora. Está na Hertford House, em Londres. Fui lá há poucos dias.
Trabalhei durante o ano num café para poder viajar e visitar alguns museus.
Este ano, optei por Londres. Foi fabuloso. Até me imaginei no quadro "O
baloiço" de Fragonard que tinha visto no museu.
E continuou com fervor:
- Depois de ter visto esse quadro, fui à Tate Modern e
entrei pelo espaço onde existia uma instalação com baloiços que é, li algures,
uma reação à apatia social. Parecia que tudo aquilo tinha vindo ao meu encontro.
Estava pouca gente e usei um só para mim. Era como se estivesse no quadro que
eu tinha conhecido há pouco. E imaginei até que, sentado no chão, havia um
admirador a fitar-me com amor e malícia. Diverti-me imenso. É por isso que
gosto de viajar sozinha para poder dar-me a essas fantasias. Se estivesse com
alguém conhecido por perto, se calhar, já não o faria. No dia seguinte, até
voltei ao museu, onde está "O baloiço' de Fragonard. Queria ver melhor
alguns pormenores que me tinham escapado e fazer um desenho a partir do quadro
original. Tinha pouco tempo, mas consegui fazer um esboço que guardo na minha
caixa dos tesouros valiosos. Vou trazer-lho, professora.
Ouvi-a com muita atenção e não tive coragem de lhe
dizer que tinha estado bem perto dela nesses lugares tão inspiradores. É que
nunca gostei de quebrar o encanto de um baloiço em movimento. 'Como
(se) do mundo nada importa(sse) mais!'