segunda-feira, 26 de julho de 2021

A língua francesa, os gatos e je t'aime.

 

Todos estranhámos. Uns mais do que outros, é verdade. Ela entrou na reunião a falar francês e assim continuou até ao fim. No início, as pessoas entreolharam-se, sorriram, e alguém perguntou até por que não falava português como toda a gente. Ela respondeu, convicta, que naquele dia preferia usar a língua francesa e assim continuámos. Todos nós que estamos aqui sabemos francês, acrescentou, para pôr ponto final ao assunto.

Toda a gente sabia que ela era excêntrica, que vivia só e rodeada de gatos. Tinha-os às dezenas no quintal e como a porta da cozinha estava sempre aberta, os bichanos circulavam pela casa toda à vontade. Dormiam onde queriam, saltavam onde podiam e brincavam com tudo o que encontravam que era quase tudo porque tudo estava à mão, ou melhor, ao alcance da patita. Era assim que se sentia bem. Já feliz, não sabia bem se era, porque preferia tratar dos gatos a pensar nisso. O pensamento ficava para o trabalho.

Pois bem, os assuntos agendados para a reunião foram tratados e no final ela despediu-se, usando sempre a língua francesa: au revoir, je vous aime.

Como se afastou logo, não ouviu um comentário: 

Gostava de saber se alguma vez esta mulher ouviu um 'Je t'aime'. 

                   Sabia, no entanto, que ela nunca lho diria.

 

8 comentários:

  1. Viver rodeada(o) de gatos não me parece muito favorável. Os gatos deixam cheiro, marca de garras e pelo por tudo quanto é sítio. Um ainda torna possível o arrumo e arejamento; uma data deles fazem da casa um gatil. Ora, viver num gatil não me parece bem. Mas cada um é ele só.
    Há casos assim, em que um je t'aime não existiu em língua de gente e fica-se uma pessoa, neste caso a dita senhora, pela mansidão esquiva dos gatos. Que lhes passa nos olhos não sei que encanto felino e atraente que cativa e sem substituir ameiga e torna vivível.
    E existem situações de desencontro amoroso - também pode ser o caso -, sofrimentos escondidos a que os gatos dão resposta incompleta mas espontânea.
    E existirão outras e novas hipóteses. Porque há muito gato com dono. E assim.
    Seria inconsciente o pormenor da fala francesa.
    Bom dia.

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  2. Olá, Bea. Claro que ficcionei um bocadinho, mas apenas um bocadinho. Julgo que a senhora já cá não está, nem o odor a gatil. A língua francesa, para além dos gatos, seria outra paixão.
    Às vezes, há fenómenos humanos que causam estranheza. Se calhar, por muitos desencontros camuflados ou escondidos ao longo da vida. Ou por tanta coisa que só cada um conhece.
    O bocadinho de vida desta senhora às vezes vem-me à memória. Hoje partilhei-o.
    Boa segunda-feira.

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  3. Muito bom...Gostei bastante do texto!
    --
    Feliz dia dos Avós...
    -
    Beijo e uma excelente semana.

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  4. Boa tarde minha querida amiga Maria. Tenho uma prima que vive plenamente dessa forma. Boa semana e com muita saúde.

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    1. Olá, amigo Luiz
      É caso para dizer: se vive bem assim, ela saberá a razão.
      Um abraço.

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  5. Olá Maria, saudades de ler seus posts.
    Bom, eu gosto de animais, mas gatos... tenho um certo receio, pois eles acabam devorando a fauna que nos rodeia.
    Sobre o francês, eu não entendo nada, mas acho formidável, mas pouco me dou com o português, quiçá italiano e inglês :D

    Forte abraço,
    Calebe Borges
    🔬🌿🌎🌳🍀☘👨‍💻

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  6. Obrigaaadaa, Calebe. Que bom.
    Tenho uma cadela, mas gato só tive uma vez. Prefiro os cães.
    Sobre as línguas, é como tudo. Uns têm mais jeito do que outros. Mas também sabem mais de outras coisas.
    Um grande abraço, querido Calebe.

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