sábado, 12 de junho de 2021

O meu avô, o rio e a trovoada

 

Não cheguei a conhecer os meus avós maternos, porque não tiveram uma vida longa, mas pude viver muitos anos perto dos meus avós paternos.

O pai do meu pai era alto, forte e tinha uns risonhos olhos azuis. A minha avó era pequenina e redondinha. Sempre me lembro de lhe ver o cabelo grisalho. Porém, nas fotografias enquanto jovem, o cabelo era preto e de perfeitos caracóis.

Ela gostava muito de ouvir rádio, enquanto fazia os trabalhos domésticos, e de contar histórias românticas que lhe tinham agradado.

Já as histórias do meu avô eram quase sempre vividas por ele. Nem sempre era o herói, mas com notada presença, também do seu lado aventureiro e alegre. Começava sempre as narrativas da mesma maneira: Uma ocasião...

Quando era jovem, ele vivia de um lado do rio e a minha avó, a sua namorada, morava na outra margem.

Como havia muito menos pontes do que atualmente, a maior parte das pessoas atravessava o rio em barcos pequeninos de madeira, a remos. Tal como o meu avô. 

O barqueiro remava de pé com grande habilidade e conhecimento das marés, mas, quando o rio andava muito cheio e com correntes muito fortes,  as águas ganhavam velocidade e empurravam o barco, podendo até causar alguma tragédia.

Numa dessas tardes de domingo em que o meu avô ia namorar, o barco esteve quase a afundar-se por causa de um remoinho das águas. Os passageiros começaram a gritar com medo. 

O meu avô, que já estava mais habituado àquelas travessias difíceis, começou a rir-se e as pessoas, assustadas e aflitas, ficaram tão zangadas com ele que até o barqueiro teve de pedir silêncio porque, se assim continuassem, podiam ir todos para o mar. 

Eu acho que não era mar que o meu avô queria dizer, mas como a minha mãe podia ouvir, ele fazia adaptações. 

De uma outra vez, também numa tarde de domingo, o único passageiro que havia para atravessar o rio era o meu avô.

O barqueiro estava com gripe e, quando já tinham iniciado a travessia do rio, começou a chover tanto, tanto, tanto, que o homem pôs-se a tremer de tal maneira de frio que nem segurava bem os remos. Tossia e espirrava quase sem parar. Foi então que o meu avô lhe disse para se sentar e que ele próprio levava o barco, embora a sua prática de remar fosse menos que pouca.

O barqueiro ficou receoso, mas como estava muito aflito, acabou por aceitar.

A chuva não parava de cair. O barco pouco avançava. O meu avô remava, remava, esforçando-se para não perder o rumo, mas as águas barrentas tinham mais força do que ele.

No entanto, chegaram sãos e salvos à outra margem, embora ficassem a um quilómetro do pequeno cais.

Às vezes, o meu avô dizia 500 metros, outras já eram dois quilómetros, mas eu e os meus irmãos estávamos tão habituados a essas variações nas histórias repetidas que até achávamos piada. Queríamos era que ele continuasse a contá-las e a estar connosco.

E então quando havia trovoada, era mesmo bom tê-lo por perto. A sua presença aliviava o medo.

Quando os relâmpagos afogueavam o céu e os estrondos tremendos dos trovões rebentavam, a minha mãe reunia-nos e pedia, fervorosa, à Santa Bárbara que aliviasse a tormenta, mas o ambiente pesava e enegrecia.

Nesses  momentos, eu olhava para o meu avô e ele dizia:

- Vai começar a chover e a trovoada já passa.

E passava mesmo. Parecia magia.

Eu achava que ele adivinhava o tempo, porque não tinha experiência para saber o que a experiência ensina.

Era mesmo querido o meu avô.

Por estes dias, tem trovejado por estas bandas. 

Como o meu avô já cá não está, pelo sim, pelo não, hoje vou pedir à minha mãe que me ensine a oração a Santa Bárbara.

 

21 comentários:

  1. Bom dia
    infelizmente não conheci nenhum dos meus avós, nem paternos nem maternos.
    Mas de tantas vezes rezar a oração de Santa Barbara , com a minha mãe , ainda a sei , mas já não vale muito a pena , pois o meu neto não quer saber dessas coisas .

    JR

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  2. Bom dia, Joaquim.
    Os avós fazem sempre falta, mas a vida é mesmo assim.
    Na minha infância, também repeti, com a minha mãe, essa oração, mas nunca a aprendi de cor.
    Sabe que as gerações mais novas não acham muita piada a estas coisas. Têm tantas outras para as substituírem. 'O mundo é composto de mudança' e às vezes é para melhor.
    Um dia feliz e descansado, Joaquim.

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  3. Conheci os meus avós maternos. Conheci também a minha avó paterna. Todos faleceram antes de eu chegar aos 15/16 anos de idade. Lembro-me muito bem deles. Os antigos eram pessoas iletradas (a grande maioria delas) mas com uma inteligência superior. Eram sem dúvida pessoas sábias. Também me recorda da minha avó e minha mãe (também já falecida ) rezarem a Santa Bárbara quando trovejava. Acreditavam que ajudava.
    .
    Feliz fim de semana
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  4. Sim, concordo consigo. A minha avó paterna, por exemplo, era analfabeta, mas fazia muito bem contas de cabeça.
    Porém, o meu avô materno, diz a minha mãe, lia muitas vezes o jornal, o que era muito bom.
    Era um tempo em que, infelizmente, a educação e instrução pouco interessavam a quem deviam interessar.
    Um dia feliz, Ricardo.

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  5. Infelizmente, não tenho essas gratas referências para contar.
    Só conheci o meu avô materno, pessoa austera e muito calado, a quem eu pedia a bênção e beijava a mão direita que ele me estendia, após eu ter proferido as solenes palavras: "Sua bênção, avô".
    Partiu quando eu tinha somente doze anos de idade.

    Gostei tanto do seu Avô...

    Beijinhos e obrigada por estes momentos.

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    1. Gostei tanto, Janita, que tivesse dito que gostou do meu avô. Deixou-nos muitas saudades e quando falámos dele, vêm sempre à baila as histórias engraçadas que ele contava.
      Quanto a familiares austeros, também os tive, ai não. E também de pedir a benção sem nada de confianças.
      O meu avô paterno deu para contrabalançar um pouco.
      Um beijinho e um domingo feliz, Janita.

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  6. Gostei bastante de ler as estórias do seu Pai. Antigamente haviam muito mais que contar do que actualmente. Outros tempos.

    Também o ditado" Só se lembram de Santa Barbata quanto troveja" :) Verdade!
    -
    Coisas de uma Vida
    *
    Bom fim de semana!
    Beijos

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    1. As histórias foram vividas e contadas pelo meu avô, Cidália, e não pelo meu pai.
      Sim, também há ditados engraçados em que entra a trovoada e a santa Bárbara.
      Um dia destes, vou procurar alguns.
      Um beijinho e bom domingo.

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  7. Minha avó paterna, Piedade, morreu quando eu tinha seis anos. Vivia connosco e eu adorava-a. Engraçado que sendo tão pequenina me lembro dela, como se ela estivesse agora na minha frente. O corpo redondo envolto em roupas pretas, com uma pequena bolsa de pano que usava à cintura entre a saia rodada preta e a alva camisa de baixo com ela chamava. Os meus avós maternos só vi uma vez quando vieram do norte passar o Natal com os filhos e depois dos 14 anos, quando minha avó morreu de cancro na garganta e tive de cuidar do meu avó que sofrera um AVC que lhe afetara o cérebro e que me chamava sempre Ana por julgar que eu era uma filha que tinha morrido. Meus pais trabalhavam, e ele não podia estar sozinho. Assim era eu como neta mais velha que cuidava dele.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Que bom, Elvira, ter essas boas recordações da sua avó. Gostava mesmo dela para se lembrar tão bem, já que era tão pequena.
      A figura da sua avó materna faz-me lembrar várias mulheres que me habituei a ver em pequena. A bolsa de pano à cintura era outra marca comum.
      Então, foi cuidadora bem cedo do seu avô. E não deve ter sido nada fácil, também pela doença dele.
      Um beijinho, Elvira, e um domingo bem descansado e feliz.

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  8. Não se garantem resultados mas saber a oração também não prejudica. É património cultural, aposto que é antiga. Se a aprender, escreva-a aqui para nós copiarmos, ok? Acho as orações antigas um mimo.
    As histórias do seu avô deviam ser interessantes. Decerto teve muitas ocasiões:).

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  9. Ontem, ia com o propósito de escrever a oração a Santa Bárbara. Porém, o fim de tarde não foi propício. Nem puxei o assunto. Filha, tenho mesmo de me deitar. Dói-me a cabeça.
    Ficará para um destes dias.
    Tenho uma amiga que escreveu muitas orações, ditadas pela mãe. Também já registei versos - quase sempre religiosos - que a minha mãe escreveu ou sabe de cor.
    Concordo que, quanto aos resultados, não se sabe, mas que são património a preservar, acho que sim.
    Bom domingo, Bea, com mimos bons a saber a domingo.

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  10. Os domingos, em geral, sabem-me a nada:). Mas é de há muito. Talvez os dias de nada também façam falta, não é Maria.
    Boa tarde.

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    1. Às vezes, sabe-me muito bem saber que não tenho programa. Ontem também foi um dia assim. Como estava calor, ainda melhor me soube. Hoje, já não será assim, penso eu. Só espero é que o possa cumprir sem correrias.
      Um dia a saber bem, Bea.

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  11. Boa tarde minha querida amiga Maria. Sou grato a Deus pois eu tive a oportunidade de conhecer os meus avós maternos e paternos. Impossível não lembrar do carinho de todos eles.

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  12. Que bom, Luiz. Nem toda a gente tem essa dádiva. E para mais deixaram boas recordações.
    Um abraço, amigo Luiz.

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  13. Tão bom ter raízes, tão bom ter tido um avó a contar-nos histórias, tão bom ter boas recordações de infância...

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  14. Obrigada, Justine.
    Sim, também acho, embora haja outras menos boas, é claro.
    Um dia bom com bons momentos.

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  15. As histórias dos avós são sempre encantadoras...
    Bom resto de semana, amiga Maria Dolores.
    Beijo.

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  16. Nem sempre, Jaime, mas, felizmente, também as há cheias de encanto.
    Abraço e bom fim de tarde.

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  17. A minha mãe também rezava a Santa Bárbara.
    Também gostava muito dos meus avós paternos, mas vivia longe deles. Dos maternos, apenas tenho uma ligeira lembrança da minha avó. O meu avô não conheci. Morreu muito novo.

    Gostei das histórias.

    Beijinhos:))

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