quarta-feira, 9 de junho de 2021

DOMINGOS MIRA FLOR

 

“Sim, podemos passear depois na Cordoaria, ir à praça Carlos Alberto e a Cedofeita”.

“Fico feliz por aceitar o meu convite. Obrigado pelo café”.

 E já do lado de cá da sua varanda, Domingos recordava a doçura do diálogo a que quase se desabituara. Revia os braços redondos da vizinha, as ancas largas, o cabelo farto com vestígios de caracóis de menina, embora já grisalhos. E os olhos dela que sorriam quando a boca se comprazia com o que ouvia ou com uma curta peripécia contada. Ela lembrava-lhe quadros de Botero, de quem tinha visto uma exposição, numa das suas poucas viagens, num domingo chuvoso e meditativo.

A curta visita havia-lhe trazido uma serena e clara alegria. Até se esquecia da antiga recomendação da mãe: "Devemos ser discretos, carago!".

Como seria se tratasse a vizinha por tu? Que encantos profundos poderia com ela partilhar? A sua vida parecia-lhe até então um canteiro de salsa pisada pelos gatos; viçoso ficava agora pela proximidade de uma mulher cujo nome apenas soubera nesse dia: Mira Flor. Estranho nome para flor que nem ousara mirar durante tanto tempo. Cobiçou secretamente a astúcia do seu gato. E lembrou-se do semicerrar de olhos quando as costas da sua mão esquerda tocaram na macia mão direita, enquanto ela tirava a chávena do tabuleiro. A curta travessia da rua parecia-lhe a concretização de uma linha do horizonte que não pensara transpor.

Os passeios de Domingos e Flor passaram a ser frequentes. Voltavam, por vezes, aos mesmos lugares. Como Domingos fazia com os livros que amava de paixão.

E, algum tempo depois, quem passasse pela varanda de Domingos veria dois pijamas novos a secar e uns pares de meias escuras. Junto das viçosas begónias, o gato dormia. Era vê-lo bem descansado!

Às vezes, a porta de uma das varandas fechava-se – estendendo-se a paisagem interior à viva e penetrada intimidade. Nem o gato tinha permissão de entrar.

E mais não ouso dizer. Também a minha mãe me ensinou a ser discreta, carago!

 

 (Parte 3)

 

Esta história foi publicada em 

Lugares e Palavras do Porto, Editora Lugar da Palavra, 2014, p. 9/11

 


 O antes desta história: 

Um dia, uma colega de trabalho, que vivia perto do Largo de S. Domingos, no Porto, falou-me de um homem que passava muito tempo na sua varanda usando camisa de noite.

Pronto, havia uma personagem. O resto veio por acréscimo ao olhar as varandas do belo Largo junto à bela Igreja barroca da Misericórdia.

 

A todos desejo um dia com boas histórias.

 

12 comentários:

  1. Bom dia
    Um gato atrevido , mas amigo .
    Carago !!

    JR

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  2. Gostei do seu comentário, Joaquim. Faz bem a boa disposição.
    Boa tarde de 4ª f.

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  3. Ora bolas. E eu a pensar que a Maria andava a inventar a história para nós, seres do digital. Mas tem bom fim, carago:).

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  4. Ah ah ah! Boa! Respondeu mesmo à moda do Porto, Bea!!
    Por acaso, continuei esta história para o meu pai, numa altura em que já estava muito doente, mas não sei onde a tenho. Se a encontrar, lembro-me logo das suas palavras e partilho-a.
    Uma tarde com muitos momentos bons e felizes.

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  5. Não sei como há-de isso ser, mas obrigada na mesma.

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  6. Boa tarde. Texto maravilhoso e que enriquece minha literatura aqui no Brasil. Obrigado pela partilha.

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  7. Decerto que o gato, ao entrar, ia respeitar a intimidade e nem olhava. Elogio a imaginação inserta no conto. Acredito que o livro seja muito interessante de ler.
    .
    Abraço de amizade.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  8. A mim, soube-me a pouco.
    Adorei e confesso que também me senti um pouco desiludida pela história já ter siso publicada e eu a pensar que estava a ler, capítulo a capítulo, todos os dias de manhãzinha que era quando a Dolores a escrevia sentada à mesa da cozinha, fresca e airosa, com uma boa chávena de café ao lado, para lhe espevitar a imaginação.

    Quando quiser pode trazer mais, sejam frescas ou repescadas, tanto faz.
    Beijinhos e uma boa noite de sono.

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    1. Oh! Querida Janita, por um lado, fiquei contente por ter gostado, por outro lado um pouco triste por ter desiludido.
      Eu tenho a mania de explicar as coisas, mas, desta vez, só avisei no fim que tinha escrito o conto e publicado há uns anitos.
      Como já disse à Bea, continuei, háa bastante tempo, a história para ocupar um bocadinho o meu pai que estava bastante doente. Não sei onde a guardei porque está em papel.
      Seja como for, atendendo a tão querida generosidade, acho que a vou continuar um dia destes.
      E tentarei não pôr as coisas a acabar mal, como também tenho a mania de fazer.
      Um xi-coração, Janita, e um dia feriado bem feriado.

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