sábado, 5 de junho de 2021

Maria dos Anjos

 (Rente a uma decisão)

Passado algum tempo, o Manuel chamava-me apenas 'meu anjo', com bastante ternura, o que me agradava. Depois, passou a ser um hábito que deu lugar a alguma ironia, sobretudo quando discordávamos ou nos zangávamos. A inquietação começava a assolar-me, trazendo o medo de escura solidão. Num fim de tarde ruidoso de chuva e trovoada, desentendemo-nos seriamente e Manuel ameaçou-me, nunca deixando de dizer meu anjo... meu anjo... Eu, angelicamente, atribuí a ameaça ao cansaço e à tempestade, porque Manuel pediu-me logo desculpa, repetindo 'meu anjo', agora em tom de bonança. Porém, umas semanas mais tarde, numa noite calma de lua cheia, perante novo desacordo, repetiu e aumentou as ameaças, sem nunca deixar de me chamar meu anjo... meu anjo... agora com frio sarcasmo.

        Com mil demónios, pensei. 

        Foi quando eu, Maria dos Anjos, decidi despir a roupa de anjo, perder o medo e  sair dessa procissão. 

        

 

        Nota 1 - Este pequeno conto foi publicado na coletânea Anjos da Prosa e da Poesia, da Editora Lugar da palavra, 2021, p. 46/48.

  

Nota 2 - Obrigada por me terem acompanhado na história. Um palpite da Bea, num comentário, deu-me uma ideia. Assim, talvez a Adélia e a Maria dos Anjos se encontrem em breve. Por que não? Estas coisas não acontecem só na vida real.


Um bom dia para todos e que os anjos também ajudem!

  

 

  

14 comentários:

  1. E, porque não?
    Ainda há histórias com finais felizes na vida real.
    Gostei muito!
    Obrigada, Mª Dolores!

    Um beijinho.

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    1. Que bom ter vindo,Janita.
      Já tinha saudades.
      Obrigada. bom fim de semana e um beijinho.

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  2. Bom dia
    Não há duvida que esta historia teve um fim inesperado, mas eu continuo a acreditar no meu anjo da guarda e nunca tive quem me chamasse anjo e também nunca chamei a ninguém .
    Quem sabe um destes dias !!

    JR

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    1. E faz muito bem, Joaquim. Aqui o anjo tem também a ver com o nome - Maria dos Anjos.
      Gosto bastante das histórias com fim inesperado, tal como nos filmes. Quando se prevê logo o final, para mim não tem a mesma piada.
      Às vezes, digo meu anjo às minhas filhas e netos, sempre naturalmente.
      Um bom fim de semana, Joaquim.

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  3. Bom dia, Maria:)
    Pois o início da história mais me deu ideia de que iria correr noutro patamar. Mas o escriba é soberano no comando das suas personagens e o final vivia já sob trocadilhos e inversões com o nome.
    Sendo a Maria a autora, pode sempre continuar a história, mudá-la, matá-la de vez. Os blogues são mundos de histórias, um faz de conta que talvez não transpire mas se precisa, não é mesmo?
    Aguardemos pela Maria dos Anjos despida de asas. Tenho para mim que não são elas que pesam, são as humanas incongruências que magoam. Mas o certo é que existem. E não são fortuitas, deste ou daquele, pertencem-nos.
    Uma vez, numa entrevista a Simone Weil, a jornalista perguntou se era feminista já que tanto defendia as mulheres. Simone respondeu - conservo apenas a ideia geral - desejar que o mundo visse o quanto elas são importantes para o seu desenvolvimento e em todos os sectores, desde que os prefiram; e que lhes deve ser dado o mesmo acesso que aos homens. Porém, salvaguardou, nem todas as mulheres são felizes em luta contra alguma coisa, há as que se sentem felizes fazendo o que já as mães faziam e isso não é menos meritório, merecem respeito.
    Digo eu que o mundo das árvores não é apenas feito de altos ciprestes e que há mesmo arbustos encantadores. O respeito e aceitação da diversidade é o melhor exercício de manutenção.
    Um abracinho

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    1. Olá, Bea. Pois, por um comentário, também me pareceu, mas esta escriba(zinha) logo que lhe ocorreu o nome - Maria dos Anjos -, pensou de imediato no final. Custa-me imenso saber que há pessoas ameaçadas e maltratadas pelo companheiro ou companheira. Na maioria dos casos, são homens que o fazem, mas não só.
      No entanto, partilho, no pequenino canto onde me situo, da conclusão da grande Simone Weil, assim como reproduzo, e muito, muita coisa que vi fazer em família, com as naturais evoluções, é claro, sugeridas pelo avançar da vida e do mundo.
      Enquanto isso, como é bom poder partilhar o faz de conta. É como pôr na terra pequenas plantas, que, mesmo sabendo pequenas, são as nossas plantas.
      Outro abracinho, Bea, e feliz fim de semana.


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  4. Olá Mariana, saudades de ler seu blog.

    A algum tempo não consigo ler algo que não seja técnico científico, saudades.


    Abraço,
    Calebe Borges

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    1. Imagino, Calebe. Sempre boa a sua visita.
      Um abraço, bom estudo e bom fim de semana.

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  5. Maravilhoso. Simplesmente belo!:)
    -
    As cartas escritas com nostalgia ...
    -
    Um excelente fim de semana - Beijos

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  6. Um beijinho, querida Cidália, e feliz fim de semana.

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  7. Boa tarde minha querida amiga Maria Dolores, não conhecia esse conto, parabéns pela publicação.

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  8. Bom dia, Luiz
    Escrevi-o recentemente.
    Um bom e feliz domingo, amigo Luiz.

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  9. Li agora os dois capítulos que completam a história e devo dizer-lhe que gostei muito do conto.
    Desculpe não vir diariamente mas por enquanto ainda é pouco o tempo que posso estar no computador. Apesar das melhoras os olhos ainda começam a arder e a chorar quando prolongo o tempo no computador.
    Abraço e saúde

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  10. Olá, querida Elvira. Desculpa? Por amor de Deus. É sempre bem-vinda, mas estas coisas fazem-se quando se pode.
    Fico muito contente de saber que as coisas estão a evoluir bem. Que bom.
    Um abraço, Elvira, e um fim de tarde muito feliz.

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