quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Um bom momento


PENTAX Image
Fernando Pessoa, numa rua da Bulgária

A turma fazia a correção do último teste de Português. Num dos textos para análise, era referido o poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa.
A professora, com ar de enlevo e motivação, disse que gostava muito do início deste poema. E citou de cor:

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". 


A turma, habitualmente sossegada, aproveitava, no entanto, qualquer paragem ou abrandamento para conversas paralelas.
E assim aconteceu, mais uma vez.
A professora, então, disse: Acho que me vou sentar. Parece que não existo porque ninguém me ouve.
Foi quando uma voz do fundo da sala se elevou:
- Mas, professora, ... para além disso, tem em si todos os sonhos do mundo!
A professora sorriu, continuou a aula, enquanto pensava para si que fora, de facto, um bom momento.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Dobradinha em quatro

Catalina Alwin
Na escola, continuava uma campanha de solidariedade para ajudar uma aluna que ficara com graves sequelas após uma operação que, aparentemente, não traria quaisquer complicações. Sem ajudas exteriores, dificilmente os pais  poderiam fazer frente a todas as despesas.
A comunidade escolar mobilizou-se, graças a um grupo de professores.
Houve recolha de donativos, lanches, saraus, etc. e o objetivo era comum: angariar fundos para ajudar Maria, que deixara de ser autónoma.
E os olhos de muitos sorriam perante alguns jovens que tomavam iniciativas para ajudarem a colega de escola, de muitos até desconhecida. 
O tempo foi passando, muitos professores e alunos chegavam à escola pela primeira vez, outros tantos iam saindo. Algumas atividades, porém, persistiam porque muitos continuavam a acreditar no valor da solidariedade.

Assim, uma vez por mês, um rapaz, pré-universitário, excelente aluno, no final da aula, aproximava-se discretamente da diretora de turma e dizia: É para a Maria, abrindo a mão, sem alarde. A professora agradecia, reconhecendo a generosidade e acrescentando que, no intervalo seguinte, entregaria o donativo ao grupo dinamizador. O grupo iria também apreciar muito este gesto. E ele dizia: eu apenas gosto de ajudar, entregando a pequena nota. Dobradinha em quatro.
Felizmente (ainda) há jovens assim.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Namoro(s)



Chuva miudinha
Luísa - O dia de namorados vai estar bom para namorar. Com esta chuva!
A cliente mais velha - Se fosse no meu tempo, já não se podia namorar!
A cliente mais nova - Era o que faltava!
Luísa - Como assim?
A cliente mais velha - É que namorávamos à porta.
Luísa - Era da maneira que entravam e fechavam a porta!
A cliente mais velha - Seria bom seria mas não era!
Namorava à porta e a minha mãe acendia a luz.
A cliente mais nova - E a lâmpada não fundia?!
A cliente mais velha - Não, mas o Manel dizia que um dia qualquer partia a lâmpada!
Luísa - Que desconsolo! 
E, por falar em namoro, hoje o cabelo é liso ou com caracóis?


Grande caudal

sábado, 13 de fevereiro de 2016

"É Isto o Amor"



Almada Negreiros
 
Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.


Nuno Júdice, in 'Pedro, Lembrando Inês'

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A chuva na nossa direção



    A chuva de hoje levou-me até à minha infância ou juventude (por mais distantes que fiquem, bastante próximas parecem!). A nossa casa ficava situada junto a uma casa de lavoura, também familiar,  e muitos campos à volta.
Havia também outras casas e da minha memória não desaparecem duas altas moradias: uma de azulejo azul e outra de azulejo verde. A de azulejo verde tinha um  mirante onde agora (julgo que) ninguém vai e a azul está revestida a pedra granítica e (julgo também que) as vozes que a preenchiam e mantinham viva foram desaparecendo.
Era o tempo de as raparigas fazerem uma boa parte da lida da casa e de se aproximarem, com mais tempo, da janela e da própria natureza. Ao longe, havia uma árvore muito alta cujos ramos nos mostravam a intensidade do vento. A minha mãe dizia: hoje, sopra vento da serra. Ou então: hoje, o vento vem do lado do mar.
Em dias de chuva miudinha tocada pelo vento, víamos a precipitação ao longe e parecia correr na nossa direção, preenchendo o espaço entre a erva dos campos e o cinzento do céu. Ficávamos a olhar, embora fosse frequente aquela aproximação.
Os campos ficavam mais húmidos, as árvores pingavam pérolos de água, as pessoas abrigavam-se em casa, fugindo da chuva que chegara em diagonal ou fazendo ondas que o vento desenhava.
De uma outra janela víamos a casa de lavoura, a casa verde e a casa azul. Como seres que sossegavam e cuja presença mais se notava quando a chuva chegava, mansa, miúda e persistente. E parecia que nada mudaria de cor.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Com e sem máscaras

Há alguns anos (éramos todos vivos e, apesar das naturais incerteza, tudo parecia menos incerto), fui a Podence, freguesia do concelho de Macedo de Cavaleiros. Não era Carnaval. O passeio era um dos habituais a Trás-Os-Montes. Falávamos muito do frio seco, da comida saborosa e fumegante, dos velhos sentados à porta sempre prontos para conversar um bocadinho, das aldeias que se iam desmoronando, deixando adivinhar histórias antigas ainda entranhadas nas ruínas...

No dia em que fomos a Podence, visitámos o museu - julgo que Casa do Careto. Vale a pena, Tomámos nas mãos pesadas máscaras de madeira. Eram caras. E logo ouvimos: é tudo feito à mão.

Não voltei a Podence. Ontem, vi imagens na televisão. Mostravam as provocações feitas pelos mascarados. Ninguém levará a mal, com certeza. De outro modo, não se iria lá nesta época. E existe aproximação, contacto, criatividade e não apenas imitação, confronto com a realidade. Também esta se revela sob muitas máscaras. Só que usadas de modo mais neutro e subtil.

As de Podence são exuberantes e garridas. Neste momento, muitos dos que as transportam de modo festivo e brejeiro olharão o tempo. Ou talvez não, porque é Carnaval e, mesmo com chuva, ninguém leva a mal.

S. Paulo - Brasil

Fotos tiradas sábado passado

Camélias com rendas ao pé