segunda-feira, 18 de março de 2013

domingo, 17 de março de 2013

Era uma vez uma menina/mulher que hoje faz anos…




Foi a primeira filha e o dia do seu nascimento foi muito feliz. A mãe ainda hoje diz: não há palavras!
Como os pais trabalhavam fora, a menina foi para o infantário, mas não gostava e nos primeiros dias chorava muito com os bracinhos presos à volta do pescoço da mãe. E como tinha começado a falar muito cedo, dizia que não queria ficar. Um dia, a mãe também não conteve o choro, embora soubesse que as lágrimas nada resolveriam.
Quando a menina foi para a “sala dos três anos”, já ia para a escola com muito mais vontade e alegria. E brincava, e fazia jogos, e cumpria as tarefas, e corria, e gostava de aprender coisas novas, sempre na sua batinha bege muito bem comportada e no chapeuzinho vermelho para o sol do recreio. E ainda hoje não esquece os exercícios do “Pintinhas Matemático” que a mãe guardou juntamente com os livros, prendinhas carinhosas do Dia do Pai e do Dia da Mãe…
Numa das primeiras fotografias da primária, aparece com o seu cabelinho liso, de corte redondo e com franja. Nesse tempo, já não era a mãe que lho cortava, como acontecia quando era mais pequenina, assim como à irmã. Nessa altura, a franja era curta e incerta por vontade da mãe, que muitas vezes ouvia: a tesoura fugiu das mãos da cabeleireira! Sorria mas continuava a cortar o cabelo assim, porque era assim que gostava.
Mas voltando à fotografia – coladinha no álbum de infância –, lá está ela com os dedinhos sossegados com uns aneizinhos nas mãos pequeninas e concentradas sobre um caderno, onde tudo estava sempre feito e alinhado.
E depois do ensino básico veio o secundário, a Faculdade, um curso de seis anos de muito estudo e muita dedicação. Mas ainda houve tempo para a dança e para o remo, que praticou desde a adolescência até final do curso universitário.
E veio o trabalho, a entrega a uma profissão onde vida e morte muitas vezes se confrontam, o que a leva a dizer aos mais próximos: temos de viver o presente da melhor forma possível.
E no tempo de descanso, adora o rio, e correr ao ar livre, e conhecer novos espaços, e estar com a família e os amigos, e ir ao cinema, e pintar, e dançar, e saborear os bons petiscos, e ouvir música, e usar roupa bonita…
Ah, e, apesar de achar melhor viver-se sem televisão, sempre que pode não perde a novela da noite da SIC! E também diz que o assadinho da mãe é o melhor do mundo! E também reafirma que a paisagem mais linda do mundo é a que é vista do Cais de Gaia. E também acha muito mal que as crianças não comam sopa apenas porque dizem que não querem ou que não gostam.

Parabéns  pelo teu aniversário
E pela menina/mulher que és
Continua a olhar do mundo a Luz
Pelos caminhos que trilhaste
Com muito trabalho e pelos teus próprios pés!

Gondomar, 17 de março 2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Os Pássaros de Londres

Para a E. e para a Z.  
 Seurat
Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres

quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

Mário Cesariny, in "Poemas de Londres"

 

quarta-feira, 13 de março de 2013

Rosa Parks



O dia de Rosa Parks estava a correr bem.
A mãe estava a recuperar da gripe e viera tomar o pequeno-almoço à mesa. O marido, Raymond Parks, um dos melhores barbeiros do condado, tinha sido convidado a fazer algumas horas extra na base militar local. E o primeiro dia de dezembro era sempre especial, porque o Natal estava próximo.
Em breve, na secção dos arranjos de costura, todas iriam estar muito ocupadas. As senhoras de Montgomery, jovens ou idosas, precisariam de pequenos ajustes nos seus vestidos de cerimónia ou nos seus fatos e blusas domingueiros, quer fosse uma flor a bordar ou um debrum de veludo a acrescentar.
E Rosa Parks era a melhor costureira de todas. A agulha e o fio voavam nas suas mãos, qual fada a tecer fios de oiro. As outras costureiras diziam que ela tinha dotes mágicos. Rosa ria:
— Não são dotes mágicos, apenas concentração.
♣♣♣
Havia dias em que Rosa nem sequer almoçava para acabar tudo a tempo. Mas, nesta quinta-feira, o trabalho estava adiantado e a supervisora disse-lhe:
— Por que não vais mais cedo para casa, Rosa? Sei que a tua mãe está doente e que podes precisar de estar com ela.
A supervisora sabia que ela só saía quando o trabalho estivesse feito mas, como estavam apenas no início de dezembro, tinham tempo. Rosa ficou satisfeita. Chegaria mais cedo a casa e, como o marido trabalhava até mais tarde, talvez o surpreendesse com um empadão. Despediu-se das colegas e encaminhou-se para a paragem de autocarro. Procurou uma moeda
no bolso para não ter de pedir troco. Entrou no autocarro, pagou a viagem e saiu de novo, dirigindo-se à porta de trás: os negros não podiam entrar pela porta da frente. Rosa reparou que os lugares reservados a negros estavam todos preenchidos, mas que havia lugares vagos na secção neutra do autocarro, onde negros e brancos se podiam sentar.
O lado esquerdo tinha dois lugares vagos e o direito estava já ocupado por um homem. Rosa sentou-se junto dele. Não se lembrava do seu nome, mas conhecia-o e ao filho dele, Jimmy. Este era visita frequente da Associação de Jovens Afro-Americanos. Trocaram algumas palavras e o autocarro começou a andar.
Rosa procurou não incomodar o pai de Jimmy com as suas sacas. O autocarro ia já cheio e os dois lugares da esquerda estavam agora ocupados por negros. Pensava no jantar desse dia quando ouviu o motorista gritar:
— Já disse que preciso desses lugares!
Surpreendida, Rosa Parks levantou os olhos. Os dois negros já se tinham levantado e dirigido para a parte traseira do autocarro. O pai de Jimmy murmurou:
— Não quero ter problemas. Vou lá para trás.
Rosa levantou-se para o deixar passar mas sentou-se de novo.
— Não dificulte as coisas! — gritou o motorista.
— Por que se mete sempre connosco? — perguntou ela, num tom de voz calmo e determinado.
— Vou chamar a polícia! — ameaçou o homem.
— Faça o que tiver a fazer — continuou Rosa.
Não se sentia amedrontada. Não tencionava abdicar do que sabia estar certo.
Alguns brancos diziam em voz alta que ela devia ser presa e posta fora do autocarro. Alguns negros, temendo algo violento, saíram do autocarro. Outros ficaram, murmurando:
— Aquela é a secção neutra do autocarro. Tem todo o direito de ali estar.
♣♣♣
E ali continuou Rosa Parks.
Enquanto esperava pela polícia, Rosa pensava em todos os homens, mulheres e jovens corajosos que lutavam pelos direitos cívicos. Recordava uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, de 1954, que decretara que “separado” queria dizer “inerentemente desigual”. E sentia-se cansada. Não cansada do trabalho, mas cansada de ter de pôr sempre os brancos em primeiro lugar.
Cansada de descer dos passeios para deixar passar os brancos, cansada de comer em balcões separados, cansada de estudar em escolas separadas. Estava cansada de entradas para “gente de cor”, varandas para “gente de cor”, fontanários para “gente de cor”, e táxis para
“gente de cor”. Estava cansada de chegar sempre primeiro e de ser sempre servida em último lugar. Cansada de “estar separada” e de “não ser igual”.
Pensou na mãe e na avó e sabia que elas queriam que ela fosse forte. Não tinha procurado aquele momento, mas estava preparada para o enfrentar.
Quando o polícia se debruçou sobre ela e perguntou:
— Então, tiazinha, vai sair ou não?
Rosa sentiu-se encorajada pela força das pessoas de cor ao longo de todos aqueles anos e disse:
— Não.
♣♣♣
Jo Ann Robinson estava numa loja quando soube que Rosa Parks tinha sido presa. Estava a comprar macarrão e queijo para acompanhar o peixe que ia servir ao jantar. Uma colega do Conselho Político das Mulheres aproximou-se dela e relatou-lhe o ocorrido. A reação foi:
— Não pode ser! Diz a toda a gente que temos reunião hoje à noite, às dez, no meu escritório.
A Sra. Robinson era professora no Alabama State, a universidade frequentada exclusivamente por negros, e tinha sido recentemente eleita Presidente do Conselho Político das Mulheres. Apressou-se a ir para casa fazer o jantar, arrumar a cozinha e deitar os filhos. Depois, despediu-se do marido e foi para a faculdade.
♣♣♣
As vinte e cinco mulheres ali reunidas rezaram para que a sua fosse a atitude certa. Iam usar a impressora e o papel timbrado do Estado do Alabama sem autorização. Se fossem apanhadas, podiam ser presas. Mas era sua convicção de que estavam a agir para sabotar uma lei injusta. A atitude corajosa de Rosa Parks guiá-las-ia.
Formaram grupos e distribuíram tarefas. Concentraram-se no estêncil, a parte mais difícil. Um só erro implicaria uma página inteira deitada fora. Os panfletos diziam: NINGUÉM ANDA DE AUTOCARRO HOJE. APOIEM MRS. PARKS. ANDEM A PÉ. Tinham sido feitos panfletos em quantidade suficiente para todos os negros de Montgomery. A maioria achava que a decisão do Supremo Tribunal de que a segregação não era sinónima de igualdade os ajudaria, mas estavam enganados.
Pouco depois dessa decisão judicial, Emmett Till, um rapaz de catorze anos do Mississipi, tinha sido linchado e o seu funeral acompanhado por mais de cem mil pessoas. Agora, semanas após a libertação dos seus assassinos, Rosa Parks tinha tomado uma atitude
corajosa e todos estavam decididos a apoiá-la. Todos se reuniram em torno do Reverendo Martin Luther King, Jr., que tinha concordado em liderar o protesto.
— Não viajaremos de autocarro — disse este, no comício. — Andaremos a pé até que a justiça jorre como a água e a igualdade flua como um rio poderoso.
E todos andaram a pé. À chuva, ao sol, de manhã cedo, quando já era noite cerrada, no Natal, na Páscoa, no 4 de Julho, no Dia do Trabalhador, no Dia de Ação de Graças e outra vez no Natal.
De todos os Estados Unidos vieram sapatos, casacos e dinheiro, para que os cidadãos de Montgomery pudessem andar. Todos estavam orgulhosos deste movimento não-violento. A força anímica que os sustinha iria animar ainda muitos protestos nos anos a vir.
A 13 de Novembro de 1956, quase um ano depois da prisão de Rosa Parks, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decretou que a segregação era ilegal. Fosse nos autocarros ou nas escolas.
♣♣♣
Rosa Parks tinha dito “Não” para que o Supremo Tribunal pudesse lembrar ao país que a Constituição não contemplava cidadanias de segunda classe. Somos todos iguais perante a lei e todos temos direito à sua proteção.
A integridade, a dignidade e a força tranquila de Rosa Parks transformaram o seu “Não” num “Sim” à mudança.


Nikki Giovanni; Bryan Collier
Rosa
New York, Square Fish, 2008
(Tradução e adaptação)