Texto meu publicado na página 36
Como era eu quando nasci?
- Mãe, como era eu quando nasci?
- Filha, eras compridinha e sossegada. Já mais crescida, sentavas-te no pedal da máquina de costura a fazer roupinha para as bonecas.
- Mãe, em que dia da semana vim ao mundo?
- Julho ia muito quente e conheceste a luz do dia a meio da tarde de um domingo, filha, de muitas dores. Aliviou-mas a parteira, a senhora Ana Restiva. Quando chegou a nossa casa, a água já estava quente e a bacia no quarto com uma toalha ao lado. Depois de deitar uma colher de açúcar na água, lavou-te e deu-te a beber um pouco dessa água:
'Bebe, minha menina, água de cu lavado, para não correres o fado'.
- Isso fê-la sorrir, mãe?
- Filha, a vida era dura e nem a graças achava graça. Tínhamos de ir buscar a água à fonte, lavar a roupa ao ribeiro... A tua irmã era muito pequenina e, passado um ano, nasceu o teu irmão Manuel, que só viveu uns dias. Chorei muito. A gente não ia ao médico como agora e havia muitas doenças.
- Todas as noites, mãe, o procurávamos no céu estrelado. Escolhíamos a estrela mais brilhante e dizíamos que era ele a sorrir.
- Adormecia-vos com a cantiga que a minha mãe nos cantava e quase caía de cansaço:
'Dorme, dorme, meu menino, que a mãezinha logo vem, foi lavar os teus paninhos à ribeira de Belém'.
- Mãe, muitas mulheres da família eram tão sérias. 'Muito riso, pouco siso', repetiam.
- Filha, a vida era dura, já te disse.
- Mas muitas vizinhas falavam alto e davam gargalhadas.
- E trabalhavam tanto. E levavam tanta pancada dos maridos.
- Algumas batiam muito nos filhos.
- E também nas outras mulheres, quando se zangavam.
- Elas gostariam era de bater em quem as agredia em casa. Agora compreendo o riso forte para sustentarem o siso. Parece-me vê-las e ouvi-las entre as ruínas das casas onde moravam.
- Diziam palavrões em todas as frases.
- Não lhes oiço os palavrões, mãe, mas pressinto-lhes perguntas que nunca fizeram por desconhecerem o amoroso sossego e um tempo sereno para elas próprias, mesmo em dias longos de verão.
Mãe, a vida é tão breve e tantas vezes tão dura!