terça-feira, 19 de julho de 2022

Dias de Londres - no dia seguinte

O calor de ontem mantém-se. Cheguei a pensar vir de táxi de Gatwick até aqui, mas era viagem para duas horas, ficava muito caro e gosto de  comboios, do movimento das estações e de ver as pessoas em viagem.

Quando saí do comboio, tinha a minha filha à minha espera. Mulher adulta, corajosa, serena, que emigrou aos 24 anos para Londres. Sem conhecer ninguém, apenas a senhora portuguesa que lhe tinha alugado o quarto, mas onde esteve pouco tempo, sobretudo porque era muito longe da Universidade que iria frequentar.

A meio da tarde, fomos buscar a Clarinha à escola. Dei comigo a esconder-me atrás de uma árvore da rua para a surpreender e logo abraçar. Da escola primária pública que ela frequenta, iam saindo meninos e meninas, acompanhados, na maior parte, pelas mães, muito jovens apenas com as mãos e o rosto a descoberto. As crianças, de vários tons de pele, iam dizendo, sorridentes, bye uns aos outros e eu ia pensando para quando o final das desigualdades sociais e de tanta discriminação, sobretudo em idade adulta. Ou será que o tempo irá dando lugar à esperança de ser possível banir o que só prejudica e entristece a humanidade?

 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Dias de Londres - primeiro dia

 

No dia anterior a vir para Londres, houve uma forte trovoada. Assustada, acabei de fazer a mala e a minha insegurança duplicou. Como estaria o tempo no dia seguinte, quando o avião subisse com velocidade e se prolongasse nos céus?

 Imaginava forte turbulência nos ares do dia seguinte quando ouvi o rebentar do trovão mais forte. Uma espécie de remate ou de anúncio de possível regresso.

A noite passou intranquila. 

Porém, à hora mais ou menos prevista, aterrei em Gatwick, depois de uma viagem bastante serena, sem cenários mais inseguros como tinha imaginado.

Já na estação, apanhei o comboio com destino a Bedford. Já lá dentro, oiço falar português. Por um telefonema, apercebo-me que um elemento do casal tem um filho também a trabalhar em Londres. Ouve-se a conversa. Do lado de cá, alguém que chegou e não conhece a cidade. Do outro lado, ouve-se uma voz impaciente a dizer que não tem tempo para ir ao hotel. 

Deste lado, o interlocutor tenta amenizar, dizendo que compreende e que em breve podem falar melhor. Do outro lado, ouve-se a voz ainda mais impaciente dizendo que tem a vida dele como eles têm a sua.

Deste lado, a despedida com ar de enfadada desesperança.

Eu volto a cabeça para a paisagem, fingindo desatenção para não aumentar o embaraço do casal. E fico a pensar que, muitas vezes, as boas-vindas nem sequer chegam a pressentir-se nos encontros que se julgavam redentores, embora a ilusão persista quando se está em tão poderosa e bela cidade.

Em breve, na pequena estação já minha conhecida de outras chegadas e partidas, saio e quase logo abraço a minha filha. Sempre o mesmo sorriso bonito e doce. Sempre o cabelo forte um pouco despenteado, agora com uns fiozinhos brancos e reluzentes. 

Não têm carro porque acham desnecessário numa cidade com tão bons transportes públicos. Vamos a pé até casa. Está calor, bem mais do que o costume, tanto como em Portugal. Vamos caminhando e conversando e entremeando o diálogo com recordações e coisas novas que vou descobrindo.

Chegámos. 

Filha, que bom.

Mãe, daqui a pouco são horas de ir buscar a Clarinha à escola. Eu vou, mãe, estás muito afogueada.

Bebi água.

Vou contigo, filha. Quando conhecer melhor o caminho, vais mais depressa e vêm depois ao meu encontro.

Estava feliz por ter vindo ao encontro de uma parte tão boa de mim. E de uma cidade onde não me importava de viver e onde conto ficar três semanas.

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Desculpem ter fechado esta janela durante um mês!

 

Vi agora que o último post foi há precisamente um mês e peço-vos desculpa de nem sequer ter anunciado que ia fechar a janela por algum tempo, mas, talvez seja o meu lado pessimista a entrar em ação, prefiro dizê-lo depois!

Estive em Londres mais de três semanas para estar com a outra parte de mim que lá vive e que já me deu uma neta, agora com 6 anos. Assim, ela pôde dizer avó muitas vezes e eu pude estar mais presente, sem ser apenas imagem e som de Whatsapp ou facetime. 

Não levei computador, que substituí pelo ipad, mas, como o uso pouco, revelou falhas que eu não fui capaz de resolver, mesmo com a ajuda lá em casa.

Porém, fui escrevendo pequenos textos no meu telemóvel quase todos os dias. Foi nascendo uma espécie de diário que em breve começarei a partilhar, apesar de terem sido uns dias dentro do comum. 

Quando podia, sentava-me no sofá e, de forma simples e à minha maneira, era como se entrasse neste espaço de boa comunicação de que gosto muito e que me faz falta. De tal maneira que me leva a agradecer-vos por podermos interagir um bocadinho através das palavras. Obrigada e também é bom estar de volta.


quarta-feira, 15 de junho de 2022

O baloiço de Mirene

 


Quando se conta a outrem um segredo este
desmaia: a palavra
torna-se pele
sem leão lá dentro.

Júlio Pomar

 

Eu não conhecia a instalação com baloiços numa das entradas da Tate Modern, em Londres. Quando os vi, num fim de semana prolongado de outubro, fiquei fascinada com aquele espaço de descontração e de interação num museu com obras tão sérias e representativas da evolução do mundo.

Estando na fila do museu para comprar o bilhete, vi, com surpresa, o vaivém de Mirene, num dos baloiços. Olhei mais uma vez para confirmar. Sim, era ela, sem dúvida, a Mirene, a minha aluna do 12º ano.

Quando já tinha o bilhete para visitar a exposição de Modigliani, parei um bom bocado para ver se ela me via, mas sem sucesso da minha parte, e não pude sequer acenar-lhe. Continuava a baloiçar-se, parecendo muito feliz.

A Mirene era uma aluna que sempre considerei diferente de muitos outros jovens da turma, se bem que cada ser humano tem as suas naturais especificidades. Ela participava assiduamente em atividades escolares ligadas à arte, fossem de que tipo fossem. Na escola, eu integrava uma oficina de escrita e Mirene escrevia pelo menos um conto todos os anos para um concurso do qual resultava a publicação de uma coletânea.

Embora a equipa organizadora convidasse todos os participantes a ilustrar a narrativa, quase ninguém o fazia. Alguns alunos procuravam apenas uma imagem da net e colavam-na no texto de forma displicente. Porém, Mirene fazia acompanhar a sua história de um desenho original que remetia eficazmente para o conteúdo da narrativa, sendo o trabalho dela sempre reconhecido e publicado. Todavia, raramente estava presente na festa do lançamento da coletânea e da entrega dos prémios. Dizia que morava longe. Que não tinha transporte. Que tinha de ficar com a irmã mais nova... De facto, quando não tinha aulas, poucas vezes era vista na escola. E não falava muito de si, como muitos outros alunos, sobretudo raparigas, a não ser de que gostava, um dia, de emigrar para conhecer novas realidades geográficas e culturais. Parecia guardar segredos que não contava porque eram uma parte de si que queria conservar intacta.

Quando, nas aulas de Português, abordávamos temas ligados à arte, ficava muito concentrada e, mesmo que algum colega lhe dirigisse a palavra à sorrelfa, nem o ouvia, atenta que estava às imagens e ao que poderiam significar. Um dia, falou-me do museu d’Orsay que já tinha visitado para aprender mais sobre a pintura impressionista. Acrescentou que tinha ficado a conhecer apenas alguns pintores e algumas obras, porque é impossível ir a um museu e, durante um ou dois dias, apreciar todo o seu acervo. Concordei com ela e passei a dar-lhe mais valor ainda por esta convicção que considerei adulta e esclarecida.

Nessa altura falou com muito pormenor de algumas obras, sobretudo do pintor Toulouse-Lautrec. Estranhei tanta observação e tanto conhecimento adquirido em tão pouco tempo. Claro que a internet permite múltiplas visitas, mas via-se que a entrada no museu tinha sido real e não apenas virtual. Não lhe fiz perguntas sobre outros lugares aonde ela já tinha ido nem indaguei sobre as circunstâncias, porque pareceu-me que não mostrava vontade de partilhar esses assuntos naquele dia.

Voltando à minha visita à Tate Modern, depois de comprar o bilhete, ainda esperei algum tempo que Mirene olhasse e me visse enquanto se baloiçava, mas estava tão concentrada como nas aulas que mais lhe agradavam. E, curioso, apesar de ser uma rapariga discreta, dava impulso ao baloiço e elevava-se mais do que todas as outras pessoas que os utilizavam, na grande maioria jovens.

Vi-a depois levantar a perna esquerda, no prazer estonteante de baloiçar. Estranhei a amplitude do movimento porque sempre conheci Mirene como uma rapariga discreta. Naquele dia, ela vestia uma saia comprida e com folhos. Reparei que tinha umas sabrinas que lhe adelgaçavam ainda mais os pés franzinos. Uma delas, a do pé esquerdo, que Mirene mais levantava, foi cair mais à frente, parecendo voar.  Mirene impulsionava o baloiço, soerguia o braço esquerdo, olhando sempre para baixo, como se, fascinada, estivesse a ser observada por alguém que perscrutava, com malícia, o esvoaçar das suas saias. Segurava as cordas laterais do baloiço, levantando, graciosamente, a mão esquerda. Sorria como se voasse, livre, e estivesse sozinha na presença de um admirador que a fixava com curiosos olhos aduladores. 

Aquele quadro sugeria-me uma pintura que eu já tinha visto algures, mas que não sabia identificar claramente.

Subi as escadas rolantes e, já no andar de cima, parei e observei-a de novo. Se olhasse na minha direção, eu poderia fazer-lhe sinal. Falaríamos um pouco e podíamos até tomar um café. Se não houvesse tempo, na semana seguinte, abordaríamos o assunto nas aulas, porque, confesso, fiquei atónita pelo modo encantatório como Mirene se baloiçava. Alguns instantes depois, sem olhar sequer para os lados, saltou do baloiço, recolheu, discretamente, a sabrina do chão e afastou-se, dirigindo-se a uma sala distante da que eu tinha escolhido e não voltei a encontrá-la naquela tarde, apesar de eu ter permanecido várias horas no Museu.

No dia seguinte, resolvi ir à Wallace Colection, na Hertford House, em Manchester Square, onde nunca tinha estado. Queria visitar o museu, mas interessava-me sobremaneira 'O baloiço' de Fragonard, de que já tinha ouvido falar num atelier de escrita ligada à pintura, mas de cuja imagem já não me lembrava nitidamente, embora o baloiço de Mirene me tivesse avivado algumas memórias. Dirigi-me, então, à sala Fragonard, onde está o famoso quadro com o baloiço usado por uma bela jovem de chinelinhas e longas vestes rodadas. Levantando a perna esquerda, a jovem deixa voar a chinelinha, enquanto é observada por um admirador que, com sensualidade, num plano inferior, espreita a possível nudez pelo continuado e arrojado baloiçar. Observei o quadro com atenção e logo o comparei aos movimentos de Mirene no baloiço da Tate Modern, apesar de o contexto ser completamente diferente. Na Tate, o espaço da instalação era amplo, despojado e muito visitado; no quadro, o baloiço situava-se entre um denso arvoredo, penetrado por uma luz harmoniosa, propício à volúpia sedutora das figuras de volumosas roupagens barrocas, destacando-se a chinelinha a voar, destapando o pé da jovem que se deliciava a baloiçar-se, na mira de o admirador que procurava ver destapada a possível nudez esvoaçante. Ah, disse para mim, voa a chinelinha, tal como voou a sabrina de Mirene.

Na sala Fragonard, muito perto do quadro que muitos apreciam e outros tantos satirizam, deparei com um pequeno grupo de raparigas, sentadas no chão, a esboçar as linhas da tela que os compêndios dizem ser uma obra-prima do rococó. Uma delas era Mirene. Sim, Mirene, a minha aluna de uma escola de província, a esboçar as linhas que via num quadro de um dos museus de Londres. Estava tão imersa no desenho que não me viu nem eu a quis interromper. Parecia alheada de tudo o que se passava à sua volta. Estivemos a poucos centímetros de distância e os meus joelhos quase tocaram as suas costas, mas não a quis dispersar nem perturbar a sua mão firme e concentrada. Estava tão próxima de Mirene que pude observar de perto o famoso quadro, comparando-o com o desenho dela, antes de continuar a visita. Ainda voltei a essa sala, curiosa da evolução do esboço que Mirene estava a produzir, tendo podido verificar que a atitude atenta da minha aluna se mantinha de forma permanente. Regressei à sala uma terceira vez, mas o grupo já lá não estava. Não voltei a rever Mirene enquanto permaneci em Londres.

Numa aula, após este episódio, levei o "Baloiço de Fragonard", poema  de Jorge de Sena, para o analisarmos em conjunto, trabalho que decorreu com o quadro de Fragonard projetado, sendo assim mais sensível a ligação pintura/escrita. Perante as duas obras de arte, e quando entreguei a folha com a composição poética aos alunos, o olhar de Mirene oscilou compulsivamente entre a pintura e o texto. Nos olhos dela, havia êxtase e curiosidade na análise  dos versos de Jorge de Sena:

 

'Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entreveem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!'

...

No final da aula, ao contrário do que era habitual, Mirene aproximou-se de mim, dizendo:

- Não conhecia o poema, mas conheço este quadro, professora. Está na Hertford House, em Londres. Fui lá há poucos dias. Trabalhei durante o ano num café para poder viajar e visitar alguns museus. Este ano, optei por Londres. Foi fabuloso. Até me imaginei no quadro "O baloiço" de Fragonard que tinha visto no museu.

E continuou com fervor:

- Depois de ter visto esse quadro, fui à Tate Modern e entrei pelo espaço onde existia uma instalação com baloiços que é, li algures, uma reação à apatia social. Parecia que tudo aquilo tinha vindo ao meu encontro. Estava pouca gente e usei um só para mim. Era como se estivesse no quadro que eu tinha conhecido há pouco. E imaginei até que, sentado no chão, havia um admirador a fitar-me com amor e malícia. Diverti-me imenso. É por isso que gosto de viajar sozinha para poder dar-me a essas fantasias. Se estivesse com alguém conhecido por perto, se calhar, já não o faria. No dia seguinte, até voltei ao museu, onde está "O baloiço' de Fragonard. Queria ver melhor alguns pormenores que me tinham escapado e fazer um desenho a partir do quadro original. Tinha pouco tempo, mas consegui fazer um esboço que guardo na minha caixa dos tesouros valiosos. Vou trazer-lho, professora.

Ouvi-a com muita atenção e não tive coragem de lhe dizer que tinha estado bem perto dela nesses lugares tão inspiradores. É que nunca gostei de quebrar o encanto de um baloiço em movimento. 'Como (se) do mundo nada importa(sse) mais!'

 


domingo, 12 de junho de 2022

Hoje lembrei-me da palavra riscote

 

Tenho uma tia que foi modista durante muitos anos. A minha irmã e eu, quando éramos pequenas, gostávamos muito de ir para casa dos meus avós, onde ela ainda morava, porque a sala de costura era um lugar muito alegre e onde havia tecidos e carrinhos de linhas de muitas cores e feitios. Preferíamos as tardes, porque era quando estavam as raparigas a quem a minha tia ensinava costura. Enquanto costuravam, iam comentando as coisas que aconteciam com elas, sobretudo se falavam dos rapazes que lhes faziam a corte, e soltavam grandes e juvenis gargalhadas. Para nós, era uma festa.

Pois bem, em cima da mesa onde a minha tia estendia os tecidos para o corte - muitas vezes tirado dos moldes da revista Burda - havia vários riscotes, com que ela marcava, com traços intermitentes e precisos, as linhas que a tesoura grande e bem afiada ia seguir e cortar. 

Às vezes, pedíamos-lhe para marcarmos também com o riscote a roupinha das bonecas que fazíamos com bocadinhos de tecido que sobravam. Depois, olhávamos para as mãos que ficavam mais ásperas e tingidas da cor do riscote. E esfregávamos os dedos para sentir o pozinho colorido  entranhado.

Quando chegássemos a casa, tínhamos de lavar as mãos, sem mais delongas. No dia seguinte, logo que pudéssemos, lá nos escapávamos para a sala onde a minha tia trabalhava e onde não faltava o riscote, que também ajudava a riscar algumas tardes divertidas.

 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Hoje, dia de Camões, super ou não, e de todas as pessoas, incluindo Pessoa

 

Obrigada, Idalina, por mais este belo texto sobre uma pessoa que parecia "como toda a gente", mas que, afinal, não o era. Ou era?

 

"Dia 6

SOBRE FERNANDO PESSOA

Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho
pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem,
como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa
como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento
iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas,
sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos
Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas,
não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões
não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser
Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal.
Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são
iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao
passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance,
outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de ótica, das que
estão sempre a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último
copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à
cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os
espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se
enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem
não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar
para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente,
Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou fundo com infantil
alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que
apareçam nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a
imagem que não era a sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: «Chamo-me Ricardo Reis.» O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido,com aspeto de quem não vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: «Chamo-me Alberto Caeiro.» O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora.

Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que
não há duas sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem
daqueles que exibem saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de
engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: «Chamo-me Álvaro
de Campos», mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do
espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se sentido cansado de ter
sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando
Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho.
Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: «Chamo-
me Bernardo Soares», e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e
alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e
escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito
adiantado nos trabalhos de tradução e poesia, morreu. Os amigos diziam-
lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele não deve ter
acreditado, tanto assim que decidiu morrer aos 47 anos, imagine-se. Um
momento antes de acabar pediu que lhe dessem os óculos: «Dá-me os
óculos», foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém
se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou
desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem
finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia
no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a
certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos
conseguindo saber um pouco mais quem somos".
 
Saramago, José, O Caderno, Porto, Porto Editora, 2018, pp. 54-56