domingo, 27 de dezembro de 2020

O menino da lágrima - 1

 

Lurdes Castro - nasceu na Madeira em 1930



Quando Natércia nasceu, a Revolução ainda demoraria quase duas décadas a libertar Abril.

A casa era térrea, as paredes rugosas e caiadas de branco,  entrecortadas por três janelas pequenas com caixilhos de madeira e folhos nas cortininhas. Duas janelas davam para a rua e da outra, lateral, via-se um portão ferrugento, por onde entrava e saía muita gente, quase sempre a falar muito alto e a chamar aos berros pelas crianças que andavam sempre na rua a correr.

A entrada na casa de Natércia fazia-se pelo portão estreito que dava para o pequeno jardim de margaridas, belas-donas, violetas...

Lajes toscas no chão levavam à porta com grade no postigo. À entrada, à esquerda, estava a cozinha; à direita, a sala de jantar.

Logo a seguir, o pequeno quarto de costura, com a velhinha Singer junto à janela e a caixa antiga das linhas, fitas, agulhas, elásticos, botões...

Apesar de escuro, deparava-se logo com o menino da lágrima ao fundo do corredor,  entre o quarto de Natércia e o dos pais. Neste, havia um crucifixo com um Cristo em sofrimento.

O espaço preferido de Natércia era o jardim pela abundância de luz, que fazia falta dentro de casa. Também gostava muito das flores. Um dia, desenhou algumas numa cartolina que ajustou ao quadro do menino da lágrima, tapando-o. A mãe, perante a perturbação do ritual da casa, arrancou a folha e, como a tudo dava serventia, aproveitou-a para forrar a cesta da cozinha, ajustando a parte pintada  de modo a não tingir as batatas, os alhos ou as cebolas.

 Embora habitada há tantos anos, a casa manteve-se quase inalterada, só os vizinhos é que eram outros. Em frente, instalou-se uma família de pele muito clara. As mulheres eram gordas e deslocavam-se devagar, quase sempre com uma criança ao colo a segurar um jogo eletrónico na mãozita papuda.

Continua

sábado, 26 de dezembro de 2020

'O verdadeiro'?

 

Postal enviado pelo Clube das Histórias

 Proposta de tradução:

O verdadeiro espírito de Natal

contém a verdadeira capacidade

de amenizar os corações, 

de fazer tombar as barreiras

de (se) reconciliar

e de construir

as pontes. 

 

Sam Beeson

 

Conversa com o Pai Natal dentro

 

Jóhannes Kjarval - pintor islandês 1885/1972


- Escrevi uma carta ao Pai Natal e ele deu-me o que eu pedi.

- Eu não escrevo, porque não há Pai Natal.

- Isso é que há. Todos os anos o Pai Natal vem a minha casa trazer-me um presente.

- São os teus pais que compram e dizem-te que é o Pai Natal.

- Eu sei que é o Pai Natal e que vem de noite quando estamos a dormir.

- Isso é uma mentira dos adultos.

- Os meus pais não me mentem.

- Se te dizem que há Pai Natal, estão a mentir-te.

- Tu é que não estás a dizer a verdade.

- Já viste alguma vez o Pai Natal?

- Não, mas deixámos biscoitos e leite para o Pai Natal e de manhã só havia  um bocadinho. Foi ele que veio e bebeu porque o meu pai ainda estava a dormir e a minha mãe não gosta de leite.

 


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

BOAS FESTAS!

 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Feliz Natal!

 

Um presépio africano

 

Hoje recebi este excerto do último livro de Ondjaki (um dos 'Herdeiros de Saramago', série que está a passar na RTP 1, à segunda-feira à noite).

Obrigada, Idalina, pela partilha deste terno texto natalício. 



"[…] isso notava-se era nas casas daqueles que iam à missa:

o presépio com o camarada menino Jesus.

 

era na casa dos outros o natal, natal-mesmo; nós, nem árvore não tínhamos

isso foi já depois, anos depois

e se não falassem essa palavra eu nem sabia que já tinha chegado o tal de natal.

 

 

o que eu gostava mais?

o presépio da casa da tia Tó: simples, bonito de só ver e não tocar os cabritos de barro, uma casinha de madeira e o Jesus, deitado na palha, era um bonequinho de plástico com a pilinha de fora

- mas este menino Jesus fica assim com “os documentos” à mostra?

a avó Nhé olhava de desconfiar

- então ele já nasceu vestido, mãe?

a tia Tó me piscava o olho

- pelo menos um paninho a cobrir

 

agora, natal do puro panquê, de comer e beber até ficar a arrotar à toa?, era na casa do tio Chico, só que eu sempre só encontrava “as consequências”, como dizia o senhor Osório, os restos da noite anterior

porque na noite de vinte e quatro cada um ficava na sua casa e embora eu ficasse tantas vezes com o tio Chico, o jantar de natal era em casa com os meus pais, talvez no dia seguinte fôssemos então ao tio Chico

aquilo só faltava ter fila

todo o mundo parece que gostava de visitar as consequências do natal do tio Chico, para mim era bom porque ali tinha prenda garantida, para os mais-velhos era mesmo de comer e beber

a casa do tio Chico mandava muita comida naquele tempo"

 

Ondjaki, O Livro do Deslembramento, Caminho, 2020, pp. 67/68

domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma história de Natal - parte 3

 

Anjolie Ela Menon, nascida em Burnpur, Asansol, Índia, em 1940.

A trança de Sabina

(...)

De Londres, enorme e húmida caixa de Pandora, foi tirando algumas boas amizades, o amor, a licenciatura... E ia, amorosamente, enviando para a Índia muitas  imagens do seu quotidiano através do Skype. Sobretudo para os pais.

Um dia, Sabina pôde anunciar-lhes que ia entrar na especialidade que escolhera: Ginecologia-obstetrícia.

Assim, muitos hojes passaram, muitas estações de metro calcorreou, muitas bibliotecas e cafés frequentou, muitas experiências viu realizadas, muitas teorias ouviu dentro e fora das salas de aula...

Contudo, a trança continuava, longa e escura, mimando as costas morenas de Sabina. Sempre.

Os Diwalis foram-se comemorando - com todas as luzes a celebrar a vitória do bem sobre o mal, durante sucessivos dias festivos. Os Natais  foram igualmente vividos. Até que chegou o dia em que Sabina assistiu, sozinha como especialista, ao  primeiro parto  no UCL Hospital of London.

Era final de uma madrugada. Um bebé demorava a nascer. Por mais que a parteira, pacientemente, insistisse (keep going, keep going...) para que os movimentos da jovem mãe o embalassem, chamando-o à luz do dia, mesmo assim, o nascimento tardava.

Para resolver o problema, entrou na sala de partos uma médica: a doutora Sabina. Aproximou-se serenamente da parturiente, sorriu, analisou, com calma, a situação e,  recorrendo aos cuidados certos, foi dizendo:

- Em breve, o bebé verá a luz do dia. Palavras ditas, ouviu-se o desejado chorinho vigoroso.  Para todos, uma nova luz que Sabina ajudara a nascer.

 

"Presença serena

Que a tormenta amansa";

(...)

 

E, logo a seguir, Sabina colocou a menina recém-nascida no seio da mãe, lembrando-se dos seus pais e de todas as luzes que lhe tinham transmitido até então.

Quando os suspiros sofridos da mãe deram lugar aos sorrisos das sublimadas ou já quase esquecidas dores, saiu do quarto, entrou, silenciosamente, no gabinete e telefonou aos pais. Estavam a celebrar a festa do Diwali. E mais Luz ainda sentiram quando Sabina partilhou a alegria de ter acompanhado, pela primeira vez e como médica de serviço, o nascimento daquele ser tão pequenino e tão completo, que abraçava saudavelmente a luz do dia, procurando alimento e aconchego.

A manhã abria-se, então, à luz de um dia claro desse mês de outubro, coincidindo com a festa das luzes no país natal de Sabina. E com a sua vinda  para Londres havia já alguns anos.

Uma nova vida começava. Sabina tornar-se-ia ainda mais sábia, por isso, ainda mais serena.

Com o tempo, uns fios brancos começaram a clarear a trança que continuava densa e longa. Eram luzes dos seus Diwalis - ou Natais - que celebrava através de cada bebé que ajudava a nascer e, por isso, a encontrar a luz.

 Como se olhasse uma trança de estrelas que, reconhecia, a tinha guiado desde a infância.

 

Maria Dolores Garrido

 Publicado em Lugares e palavras de Natal, Editora Lugar da Palavra, 2015


 

 

Nota: 

Há uns anos, visitei Jaipur, na Índia. 

Há cinco anos, assisti ao nascimento da minha neta, em Londres, no UCL Hospital of London. A médica de serviço era indiana, muito meiga, e tinha uma longa trança. 

Não soube sequer o nome dela, mas em breve entraria nesta história, chamando-se Sabina e vindo de Jaipur!

sábado, 19 de dezembro de 2020

Uma história (com algumas coisas que vi e ouvi) de Natal - parte 2

 

Anjolie Ela Menon (pintora indiana)


A trança de Sabina

     (...)

Sabina partiu da sua cidade de Jaipur num dia do mês de outubro em que se festejava o Diwali - festa de todas as luzes e a que muitos Cristãos chamam o Natal indiano.

Rumo ao aeroporto, Sabina, em silêncio, olhava, com os seus olhos aveludados e negros, as ruas ladeadas de barraquinhas com vistosas iguarias, os cestos de malmequeres amarelos, o sari brilhante da mãe e o fato  claro e largo de linho do pai. Escutava o frenético apitar dos carros, o som ronceiro dos motociclos, o pedalar arrastado e contínuo dos magros condutores de riquexó, a vozearia alegre dos transeuntes que ziguezagueavam, com ousada confiança, através do caos colorido dos lugares.

Os familiares e amigos achavam estranho que Sabina abandonasse a cidade em plena celebração da festa de todas as luzes e de todos os cintilantes fogos de artifício. Sabina concluíra que a decisão não era errada porque todos os dias se iluminam de novas luzes e não apenas nas datas indicados no calendário. Para além disso, as aulas iriam começar na UCL Medical School  e Sabina queria a todas assistir desde o início.

Horas depois, chegava a Londres - cidade onde, aos seus olhos, iam chovendo todas as culturas e etnias. Sabina viera só, mas instalou-se, com outros estudantes, numa rua de nome Pandora. A cidade seria, pois, uma enorme caixa que, pouco a pouco, Sabina abriria para conhecer melhor o que ela continha.

Todas as manhãs, Sabina apanhava o metro para a Universidade, saindo na estação de Euston - onde sempre se ouve música clássica. Na travessia até à rua, concentrava-se naquele belo ritual de início de muitas manhãs e de regresso a casa, tantas vezes cansado.

 Sabina ia-se adaptando à nova cidade, embora se lembrasse muitas vezes da família, dos amigos, do sol, da luz, dos cheiros e sabores da casa dos pais, das cores intensas das ruas e mercados de Jaipur... Essas eram razões para não cortar a trança. Ligava-a à sua cidade natal e ao seu país que, devagar, revia em muitos momentos, embora o seu propósito de concluir o  curso nunca esmorecesse.

Se Camões a tivesse conhecido, também lhe teria dedicado, por certo, alguns dos seus versos

"Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha";

(...)

 

Continua

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Uma história (onde nem tudo foi inventado) de Natal - parte 1

 

Pintura de Anjolie Ela Menon (India, 1940)



A trança de Sabina

 

Muito sabia Sabina já antes de entrar na escola primária.

E o que sabia Sabina muito se devia aos pais que, ao longo da vida, muito tinham aprendido, tendo muita paciência para lhe explicarem o mundo que via crescer à sua volta, enquanto ela crescia também. Deles nunca Sabina tinha ouvido:

- Está calada, porque não percebes nada do assunto.

Pelo contrário, gostavam de perguntar, de responder e que Sabina também perguntasse e respondesse. Sempre lhe diziam que os adultos sabem muitas coisas, mas acrescentavam que  as crianças vão igualmente acumulando montinhos de ideias e de conhecimentos que, juntos, se agigantam como uma montanha dos Himalaias.

E foi assim que Sabina se habituou a olhar, a questionar, a observar, sendo sempre uma das melhores alunas da escola. Gostava muito de aprender, de saber mais, mas não pretendia ser a melhor de todos. Numas áreas seria, noutras não - como sempre lhe tinham dito os pais.

Sabina nascera em Jaipur, cidade - à qual muitos associam a cor rosa -  da Índia, que faz fronteira com o Paquistão, Nepal, Bangladesh.... Estas e muitas outras coisas já muito cedo Sabina sabia.

A jovem crescia sábia e serenamente, com a sua trança que juntava, ondeando-o, o farto cabelo escuro. Tal como era hábito de muitas outras meninas e mulheres indianas.

Quando Sabina acabou o ensino secundário, quis inscrever-se numa Universidade inglesa. Pretendia saber mais, ter acesso a outras experiências e conhecimentos. E viajou até Londres com as poupanças dos pais para a formação da filha. Sempre deles ouvira que a Educação é o melhor investimento.


Continua

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Rio Grande - postal dos correios

 

Neste Natal do 'nosso confinamento',

 a música também pode desconfinar o pensamento e algumas memórias.

 

 

Em tempos também mandei postais de Natal...

 

 ... mas agora, tal como muitas pessoas, é raro fazê-lo.

Felizmente, há quem ainda os escreva, carinhosamente, todos os anos, pela sua própria mão.

Obrigada, Dulce.




quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Natal...

 

Postal enviado pelo Clube das Histórias.

 

Beethoven - Sinfonia No. 6 (Proms 2012) ou Sinfonia Pastoral

Ludwig Van Beethoven - nasceu em Bonn, Alemanha, faz hoje 250 anos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

(A)Normalidades!

 

Há uns tempos, fui ao dentista e o tratamento seria demorado. Não que me estivesse a doer muito, mas estar ali de boca aberta aquele tempo todo não era mesmo nada cómodo nem agradável.

Quando me sento naquela cadeira, habitualmente fecho os olhos e só vou ouvindo.

Ora, nesse dia, para além de fechar os olhos, comecei a imaginar que estava sentada na areia num belo e sereno fim de tarde. Um pouco como se faz às vezes no yoga.

Quando o tratamento terminou, o curto diálogo entre mim e o dentista foi mais ou menos este:

- Então, custou muito?

- Nem por isso, senhor doutor, estive na praia!

O dentista, apesar de me conhecer há muitos anos, olhou-me com a surpresa de quem ouve coisas estranhas de quem habitualmente é 'normal'.

Fixei a expressão dele que achei divertida.

Na semana passada, tive de fazer uma ressonância magnética. Para tentar superar aquela ruideira toda naquele túnel, fechei igualmente os olhos e imaginei-me a observar a minha neta na escolinha. 'Via-a' a correr no recreio, sentadinha a desenhar ou a escrever na sala de aula... 

O tempo parecia passar mais depressa.

No final do exame, a técnica, muito simpaticamente, perguntou-me se estava tudo bem.

Eu sorri, disse que sim, mas nada acrescentei, porque o que eu queria era sair dali o mais depressa possível.

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

"Raisparta a pandemia", ela dirá.

No verão, passo algum tempo de férias em Mindelo, Vila do Conde. Nas esplanadas pertinho do mar, há um tema que é recorrente: o tempo. Que bom, hoje não há vento. A nortada de ontem foi terrível. Que nevoeiro se formou. Hoje está mais frio do que ontem. Não me lembro de um fim de tarde calmo como o de sábado. Foi um dia sem ver o sol...

Há meses que lá não vou e, se as esplanadas estiverem a funcionar (no café do Fernando há uns pregos deliciosos), o estado do tempo deve continuar na ordem do dia, mais os dados da pandemia, mais o confinamento decretado, mais as diferenças entre o Natal que se aproxima e os anteriores.

E não é só lá, é em todo o sítio onde vamos passando e sempre que falamos com alguém, para além do bom dia ou boa tarde! 

Gosto sempre de ver o mar e olhar a praia, mesmo no inverno. 

Neste momento, estou em casa, como milhões de portugueses; na rua, passa apenas um carro de vez em quando e não se ouvem vozes lá fora. No meio de silêncios, ao pensamento vieram-me imagens de maresia, que distam uns quarenta quilómetros.

O mais certo é as esplanadas em Mindelo estarem fechadas. O mar, esse nunca está.

Nestas tardes de confinamento, a praia pertencerá apenas às gaivotas. E à espuma com ondas. E aos sons das águas invernosas...

Ah! É costume haver uma lojista que deixa a loja ao fim da tarde para fotografar o mar. Nunca a ouvi falar do tempo porque quer aproveitar o tempo e ir a tempo de captar a melhor fotografia. Como deve estar a chover neste momento, olhará o mar através da janela mais alta da casa.

Afinada e confinada, fará contas à vida, mas não deve resistir a fotografar as gaivotas na sua avidez ruidosa. Raisparta a pandemia, ela dirá, enquanto colhe imagens de uma tarde cinzenta e fria. Mas nunca só.

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

E hoje esteve sol!


 

Bana - Girassol