Lurdes Castro - nasceu na Madeira em 1930 |
Quando Natércia nasceu, a Revolução ainda demoraria quase duas décadas a libertar Abril.
A casa era térrea, as paredes rugosas e caiadas de branco, entrecortadas por três janelas pequenas com caixilhos de madeira e folhos nas cortininhas. Duas janelas davam para a rua e da outra, lateral, via-se um portão ferrugento, por onde entrava e saía muita gente, quase sempre a falar muito alto e a chamar aos berros pelas crianças que andavam sempre na rua a correr.
A entrada na casa de Natércia fazia-se pelo portão estreito que dava para o pequeno jardim de margaridas, belas-donas, violetas...
Lajes toscas no chão levavam à porta com grade no postigo. À entrada, à esquerda, estava a cozinha; à direita, a sala de jantar.
Logo a seguir, o pequeno quarto de costura, com a velhinha Singer junto à janela e a caixa antiga das linhas, fitas, agulhas, elásticos, botões...
Apesar de escuro, deparava-se logo com o menino da lágrima ao fundo do corredor, entre o quarto de Natércia e o dos pais. Neste, havia um crucifixo com um Cristo em sofrimento.
O espaço preferido de Natércia era o jardim pela abundância de luz, que fazia falta dentro de casa. Também gostava muito das flores. Um dia, desenhou algumas numa cartolina que ajustou ao quadro do menino da lágrima, tapando-o. A mãe, perante a perturbação do ritual da casa, arrancou a folha e, como a tudo dava serventia, aproveitou-a para forrar a cesta da cozinha, ajustando a parte pintada de modo a não tingir as batatas, os alhos ou as cebolas.
Embora habitada há tantos anos, a casa manteve-se quase inalterada, só os vizinhos é que eram outros. Em frente, instalou-se uma família de pele muito clara. As mulheres eram gordas e deslocavam-se devagar, quase sempre com uma criança ao colo a segurar um jogo eletrónico na mãozita papuda.
Continua