- Como estás, Zeferino? Que bom rever-te. Há tanto tempo.
- Estou bem, obrigado, e vejo que tu também estás.
- A vida não me tem sido fácil, mas é bom viver.
- A vida não é fácil para ninguém.
Nilda ia reparando na frieza do olhar e das palavras de Zeferino que não lhe dava de bom grado as boas-vindas, mas ela foi forçando o diálogo.
- Costumas vir aqui dançar?
- Só de vez em quando. A minha mulher gosta muito.
- Ela está cá, então?
- Sim, vem ali e vai querer dançar de certeza. Vou indo ao encontro dela. Adeus, Nilda. Gostei de te ver.
Nilda ficou a vê-lo afastar-se. Mancava um pouco. Talvez por sequela deixada pelo acidente na guerra colonial. Daí a nada, os dois já dançavam e pareciam felizes.
Durante um lapso de tempo, Nilda deixou de ouvir o que se passava à sua volta. O pensamento era assolado por imagens da sua vida.
A infância sem sorrisos em casa, as idas a pé para a escola com medo das pedras dos rapazes e da possível vinda do inspetor para ver se as mãos estavam lavadas e as unhas limpas… Mas revia também a D.Rosinha, angélica professora muito devota do menino Jesus de Praga; a D. Berta que puxava as orelhas quando alguém não sabia a tabuada ou errava nas contas; a D. Gracinda que sabia ver o que as meninas faziam bem e tentava desenvolver esses saberes.
O ficar em casa a partir dos dez anos e gostar de ir ao lavadouro para ouvir algumas conversas entre as mulheres; outras eram tristes e afastava-se para não as ouvir.
Já adolescente, os passeios a pé ao domingo com as amigas, ou às festas de Santos padroeiros. E o estrear de meias de vidro e sapatos de tacão: de início, pequenino e fininho, mais alto com o avançar da adolescência. E a preocupação que era, e às vezes risota, quando os saltos ficavam presos entre os paralelos da estrada e os sapatos saíam dos pés. E os rapazes que andavam atrás delas, como diziam. E as virtudes e defeitos que neles viam. E as conversas sobre eles com muitas gargalhadas.
E os sorrisos em casa que não nasciam. E o desamor e indiferença que medravam. E a vida doméstica onde cabia a aprendizagem de rendas e bordados, tudo numa obrigação austera e religiosa. E algumas zangas e ciúmes entre as amigas por causa dos pretendentes. E tão inocentes que quase todos eram!
Até que apareceu o Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida. Para quem e com quem sorria com gosto. Fora o seu único amor? - interrogava-se agora, alheada do bailarico. Viera para dançar e era o seu passado que não lhe deixava de dançar na cabeça.
E aquela decisão de considerar o namoro acabado por desconfiança e receio de desiludir ou ter uma desilusão, motor de mais culpabilidade.
Depois, o Augusto com quem casou e com quem viveu tantos anos e com quem não trocou sorrisos como gostaria.
Sem vontade de dançar, saiu do recinto e, em breve, estava em casa. Telefonou aos filhos para ver se estava tudo bem e foi bater à porta da Rosarinha.