Como acontece há mais de dez anos, saiu a coletânea
de textos de Natal 2022
da Editora Lugar da Palavra.
Partilho o meu texto que foi publicado. Em modo adolescente, falo de algumas pequenas coisas
que considero relevantes, no Natal e não só.
Tenho pena é de (ainda) não as pôr em prática.
Querido diário, para mim, não há estação mais feliz do que o verão. Passar muito tempo com os meus primos é o melhor das férias. As recordações que me ficam desses dias grandes são como peças bonitas de coleção, sei lá, como os bules da minha avó. Ela fala dos seus bules com tanto carinho e alegria que, quando gosto muito de alguma coisa, lembro-me logo deles. Ela diz que gosta dos bules porque lhe contam histórias. Durante muito tempo não entendi o que queria dizer, e agora percebo quando penso nos dias alegres das férias grandes.
Mas não gosto nada do fim de agosto, quando os adultos começam a falar do inverno. É como se as corridas de bicicleta, os gelados a escorrer nas mãos, as tardes na praia acabassem de repente e começassem logo outras coisas sem piada nenhuma, como levantar-me cedo, ter de tomar o pequeno almoço à pressa, ver os meus pais sem paciência...
E acho esquisito os adultos começarem tão cedo a falar dos comeres do Natal. Este ano, os meus primos e eu ouvimos mais uma vez:
- Vamos no bacalhau? Ou compramos polvo? Ou baralhamos o esquema e fazemos francesinhas?
- Cá para mim, não há nada melhor do que batatas cozidas com bacalhau, penca e grelos. Tudo a fumegar nas travessas antigas.
E por aí fora.
Até das sobremesas já se fala:
- E se este ano o pudim fosse à abade de Priscos?
- A aletria e as rabanadas é que não dispenso.
Não há pachorra.
Como os meus pais e os meus tios passam tanto tempo a falar do que se vai comer no Natal, a minha prima mais velha até diz que mais parece a festa da comida. E nos aniversários é a mesma coisa. Podiam antes pensar em atividades diferentes e fixes para todos. Às vezes, damos sugestões, mas ninguém as ouve.
Como posso gostar do Natal, querido diário? Para mais, já sei que vou ver a minha mãe stressada porque não teve tempo de terminar trabalhos urgentes por causa de tudo que teve de fazer. E se se lembra de repente de uma coisa importante de que se esqueceu, lamenta-se, fica mal disposta e em casa faz-se intervalo do espírito natalício.
Ao longo do ano, os meus pais queixam-se da falta de dinheiro, dizem que temos de poupar cada vez mais, que não aguentam a inflação, criticam quem gasta mais do que tem, mas só porque o calendário diz que é Natal, até fazem lista de presentes e de um montão de coisas a mais do supermercado. E que dinheirão é preciso. E que desperdício de coisas. E que poluição às vezes. Como se o planeta aguentasse tudo.
Aposto que, quando passar a febre do Natal, vão ficar mais uma vez chateados ao repararem no dinheiro que gastaram a mais e que faz muita falta.
Quando eu era mais pequena, para se justificarem, os meus pais vinham com aquela de que os presentes eram oferecidos pelo Pai Natal. E era tão bom acreditar nisso, querido diário. Eu sei que também era por amor que me davam os presentes, fazendo de conta que era o Pai Natal, mas o amor não é só dar coisas que se embrulham em papel bonito.
Uma vez, pedi ao Pai Natal o que já tinha pedido ao meu padrinho, em resposta a uma carta que me mandou do Brasil, quando fiz a comunhão solene: gostava de um relógio ou de uns chinelos (ainda estou para perceber este meu pedido) ou de uma boneca. O meu padrinho nunca mais me respondeu. Se não queria dar, por que me perguntou o que eu queria? Às vezes, os adultos nem ouvem nem respondem.
Mas também o Pai Natal não leu o meu pedido ou então esqueceu-se. Acho que foi a partir daí que comecei a desconfiar que ele só existia nas histórias cheias de neve e de ternura. O resto era imaginação e música de Natal.
Nesse tempo, as cartas que eu lhe escrevia eram mesmo bonitas, em letra redondinha e com desenhos a cores alegres para lhe dar força e não desistir da longa viagem. A letra redondinha era para que lesse bem os pedidos e desejos, porque o Pai Natal, como diz a minha avó, já não vai para novo e deve-lhe falhar a vista.
Agora, que esse tempo de magia e ilusão infantil já abrandou, apetece-me dizer que preferia hibernar no Natal, mas ninguém me levaria a sério e diriam logo que são esquisitices de adolescente, o que me ia deixar triste ou furiosa. Ou então que tenho a mania de que posso mudar o mundo, mas que para isso era preciso que todos fizessem a mesma coisa. Eu acho que assim é que o mundo não muda se estivermos à espera que sejam os outros a fazer e se repetirmos sempre as mesmas coisas só porque é tradição.
Uma vez, eu disse que se cada um fizesse todos os dias uma coisa boa pelo ambiente e pela humanidade - nem que fosse pequenina - já valia a pena e que isso podia ser uma sugestão útil para o Natal. Acho que ninguém ouviu, a não ser a minha avó. Sorriu-me e atirou-me um beijinho. Gosto muito da minha avó. Para ela, os netos são o mais importante que há no mundo e arranja sempre tempo e paciência para nós.
Nunca lhe perguntei se gosta do Natal, mas em breve vou querer saber. Não sei o que me vai responder; mas sei que vai olhar para mim com doçura, que me vai ouvir e que não se vai rir de mim nem me vai criticar.
Eu acho até que, a partir daí, vou passar a gostar mais do Natal.