... onde sempre as vi em muitas primaveras.
Ela dorme a sesta - mais longa do que me parece necessário, mas logo me vêm à memória as suas palavras: - cada um sabe de si.
No sofá antigo e baixinho do velho quarto da costura, leio versos breves de uma jovem poeta - Lígia Silva, que trabalha numa loja de bombons.
Há mais de vinte anos, passei uma semana em Moçambique - no Maputo. Estava em África pela primeira vez. Para além de muitos momentos vividos nessa cidade e que não esqueço, recordo-me da conversa com um jovem professor - muito alto e muito magro - que não tinha dinheiro para comprar qualquer livro, mesmo que precisasse muito dele. Quando os livros de que necessitava estavam disponíveis na biblioteca, requisitava-os e então podia usá-los durante o período permitido. Para ele e muitos mais, o livro era assim um objeto útil, precioso, mas quase inacessível. E dizia-o com um ar triste numa larga avenida com muito artesanato, algum vento e o sol quase esmorecendo. Na altura, passavam mulheres de capulana e bacias de laranjas à cabeça. Os olhos eram convocados por tantas pessoas e por tantas coisas, mas, passado todo este tempo, prevalece a imagem do jovem professor que não ganhava para comprar um livro que fosse.
Atravessámos o rio e fomos caminhando até ao quartel da Serra do Pilar. Vejo ainda a multidão a crescer com olhos incrédulos e palavras hesitantes - tal como nós. E inquietações. E dúvidas. E questões.
O regime caiu? Vivemos em liberdade? Já podemos falar mais à vontade? Vamos deixar de ter tanto medo?
Íamos de mãos dadas e tu falavas da guerra colonial que conhecias. Dizias acreditar que ia terminar e assim não haveria tantos mortos, muitas vezes sem saberem porquê. E que os jornais censurados diziam ser mortes por acidente, escondendo que eram vidas perdidas em combate.
E eu lembrava-me de poemas que lia na biblioteca onde tantas vezes vira outros jovens a entrarem de repente e a sentarem-se, como se estivessem a ler ou a estudar, e logo aparecer a polícia à paisana que os levava sem qualquer explicação.
E do professor de história que estava a responder a perguntas na aula e que foi admoestado por permitir a infração da lei do silêncio por parte dos alunos.
E da palavra medo que fazia parte dos meus dias, não sendo nada politizada, como a grande maioria das pessoas, muitas das quais nem iam à escola porque tinham de trabalhar em idade de brincar. Medo da polícia, medo da pide, medo dos trovões, medo dos castigos de Deus, medo dos poderosos, medo dos outros...
Nesse primeiro 25 de Abril, muita gente tinha o transistor encostado ao ouvido para ouvir as notícias de Lisboa. Era uma revolução? Era uma revolta? E «depois do adeus»?
Havia espanto e muitas interrogações nos olhares, mas pressentíamos a mudança, ainda que tardia.
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.
Miguel Torga, in Diário XVI
Sem compasso, não era dia de Páscoa. Logo de manhã, ouvia-se o tilintar da campainha, embora ainda distante. O branco das opas também se avistava ao longe. Talvez ainda chegasse de manhã.
A manhã avançava e às vezes o dia aquecia. Quando começava a cheirar ao assado bem temperado e tostadinho, abrandava o som festivo das aleluias. Devem estar a almoçar e, se calhar, vão demorar. Oxalá não demorem muito.
E quem olhava mais para o relógio eram os rapazes e as raparigas. Eles e elas queriam namorar, porque a tarde avançava. Mas ninguém arredava pé. Vinham para a rua, tentavam adivinhar o tempo que faltava até vir o compasso e vociferavam até se entrava nalguma casa e demorava mais tempo.
Quando o compasso chegava com a Cruz que era dada a beijar, a folhinha com as orações, o saco das esmolas, encaminhando-se para as flores no chão e as colchas melhores à janela a darem as boas-vindas e a celebrarem o Senhor Ressuscitado, já a tarde ia quase a meio.
Era domingo, dia de namoro, e o tempo era pouco para mais delongas. Mas o ritual, esse, era cumprido.
Daí a nada, os jovens desapareciam e o toque das campainhas ia-se afastando.
Talvez para o ano, o compasso viesse de manhã.
- Filha, põe amêndoas na mesa da sala para oferecer amanhã que é domingo de Páscoa.
- Oferecer a quem, mãe?
- Às pessoas do compasso.
- Mãe, devem ter mais sede do que vontade de comer amêndoas doces.
- Assim, podem dar às crianças.
- Mãe, felizmente as crianças já não andam atrás do compasso a pedir amêndoas.
- Pois não. Já não as deixam comer açúcar.
- ...
Quando eu era pequena, ía com a minha mãe às cerimónias de Sexta-feira Santa, que começavam às três da tarde. A igreja estava sempre cheia e engalanada com panos roxos que a escureciam e aqueciam. O padre subia, às vezes com dificuldade pelas vestes e pelo peso da idade, os degraus de pedra estreitos até ao púlpito e de lá fazia o seu sermão. Os fiéis ouviam-no em silêncio que era interrompido por tosses, por algum bocejo logo contido, por ais ou pelo movimento junto de alguém que se sentia mal e tinha de vir cá para fora apanhar ar.
Eu nada entendia do sermão e agora penso que não era só eu. Mesmo as pessoas mais velhas nem sempre o compreendiam, mas era um ritual a que não queriam faltar. Era a sua via sacra, uma forma de levar a sua cruz ao calvário.
Amanhã, se puder, passarei pela igreja. De certeza que está mais arejada. Ainda bem.
Quando éramos pequenas, ela, de pele muito clara, usava óculos de lentes grossas e o cabelo era curto, loiro e aos caracóis. Eu era mais morena, tinha uma trança grossa, negra e comprida. Não brincávamos muito porque ela vivia na rua principal onde passava, de quando em quando, um automóvel. Eu morava junto a um largo da aldeia onde os carros eram de bois, ronceiros e cansados.
Encontrávamo-nos na catequese na casa da senhora Micas Fandinga, tecedeira e catequista. Quando não estava a tecer mantas, tapetes e passadeiras, nos dias bonitos de sol, víamo-la sentada num banquinho no quintal a coser à mão o colchão que encheria de palha no outono.
Se as nossas mães nos deixassem, chegávamos mais cedo, corríamos e brincávamos, enquanto a catequista não nos chamasse a todos para nos sentarmos no banco baixo e corrido e dizermos de cor a lição do catecismo, já sujo de tão antigo e folheado, enquanto os seus pés e mãos faziam trabalhar o tear.
O tempo passou rápido, enquanto a vida foi acontecendo.
Ela partiu há dias. Não sei se chegou a ver as flores branquinhas e miúdas da Páscoa que a chuva abundante ajudou a florir. Já estava no hospital há mais de um mês. Na cerimónia, o padre confundiu-lhe o nome várias vezes.
Dei conta como toda a gente, apesar de estar a recordar as correrias de quando éramos pequenas, enquanto ouvíamos o tear da catequista.
Nesse tempo, as confusões da idade nem existiam nem se esperavam. Festas como a Páscoa, sim.
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa
Os Filhos da Madrugada é um programa de Anabela Mota Ribeiro que passa diariamente, até ao 25 de Abril, às 8 horas da noite, na RTP3. Todos os dias há um novo convidado - alguém que nasceu depois do 25 de Abril e que se destaca pelo trabalho realizado.
Também está disponível na RTP play
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Este cartaz corresponde aos convidados da 1ª série, em 2021 |
Quando hoje de manhã cheguei à velha casa, logo a vi a rebolar-se no chão ao sol e em plena liberdade. Passado algum tempo, já tinha desaparecido do pátio. É assim a Mimosa, de belo pelo amarelado e olhos desconfiados de verde fugidio. Um dia - há já uma data de anos - apareceu no jardim da velha casa e por lá ficou a morar, embora ninguém lhe conheça o poiso. Nem crias. Nem acompanhantes. Nem os dias que demora a regressar quando deixa de ser vista.
Para muitos, é uma gata imprevisível que, de repente, vira feroz como onça. Quem não a conhece e, a confiar no nome, mima-lhe o pelo, mas logo recua no gesto pelo rosnar repentino do felino.
Com o tempo, habituou-se à companhia serena do senhor Delfim e aos restinhos do almoço que ele lhe põe com cuidado no pratinho verde. Seja onde for, esteja onde estiver, quando ela lhe pressente os passos, aproxima-se e vai ficando por perto, sossegada e constante, enquanto ele trata da terra e das plantas.
Comunicam como dois seres solitários e silenciosos que pisam a terra bravia que lhes amacia a vida, sem excesso verborreico.
Antes de eu sair da velha casa, chamei 'Mimosa'! Só para ver se ela estava lá. Não apareceu. Tenho para mim que nunca achou graça ao nome que eu própria lhe dei.
"(...) e vou definitivamente ao encontro de um mundo
que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima
veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração
trémulo sofrendo a incalculável dor que parece ser necessária ao
meu amadurecimento —amadurecimento? Até agora vivi sem ele!
É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a
misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por
aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois
quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? É
uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa
espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra
tem um coração onde circula sangue.
(...)"
Clarice Lispector in UM SOPRO DE VIDA
C.L. foi escritora e jornalista brasileira, nascida em Chechelnyk, na Ucrânia, em 1920. Faleceu no Rio de Janeiro em 1977.
Muitas vezes confunde-se
Já deixei muitos livros a meio ou fechados logo no início, sem os voltar a abrir. Ou porque não gostava. Ou porque não me me diziam nada. Ou, se calhar, por alguma preguiça ou, também, pela escassez de tempo, ou pela correria nada amiga de alguma concentração.
Agora, porém, já não o faço. Se começo um livro, tenho vontade de o ler até ao fim. Não sei se é a idade que vai instalando mais paciência, novos interesses, respeito pelas obras de arte como pode ser um livro. Entro no livro como se entrasse num espaço e num tempo com personagens que acompanho e que me fazem pensar, sorrir, conhecer realidades com as quais, às vezes, me identifico ou com outras das quais me distancio. Não para fugir do meu espaço e do meu tempo ou de quem me rodeia, mas para, através das palavras, que me dão muito prazer, chegar a outras histórias que me fazem reparar melhor - julgo eu - no que se passa à minha volta e no mundo.
E já há tantas coisas e vidas interrompidas que é um privilégio começar a ler um livro e levar a leitura até ao fim.